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O Nacionalismo Japonês aponês aponês aponês Contemporâneo

4.4. Considerações Finais da Parte

Nesta primeira parte da tese, então, foi traçado um contexto histórico geral a partir do início da Era Meiji, no final do século XIX, quando o Japão passou a se modernizar e a se ocidentalizar, em várias dimensões das relações sociais das mais diversas naturezas. Uma vez que o Japão passou a fazer parte do elenco principal das grandes potências mundiais ao longo da primeira metade do século XX e, ao se perceber como sendo a única nação não-branca, o Japão passou a se preocupar em demonstrar o quanto era suficientemente ocidental apesar de ser oriental, para fazer parte do seleto clube dos imperialistas. Uma das principais preocupações que o Japão tinha era de manter a sua imagem positiva internacionalmente, como foi abordado no capítulo 1. Para tal, a questão da migração nipônica pelo mundo afora – Ásia, Américas e Brasil – estava intimamente relacionada com a construção da imagem do Japão internacionalmente, como vimos no capítulo 2.

“Ele judiava de um

menino, porque as duas mães eram inimigas”. No Brasil, os colegas também zombavam, chamando-o de

‘japonês’ e ‘perna-de-

pau’ por ser ruim de

O capítulo 3 procurou delinear o ambiente acadêmico no Japão, antes e depois da Segunda Guerra Mundial. Podemos dizer que, de um modo geral, o marxismo que foi politicamente suprimido durante a Segunda Guerra Mundial, rapidamente se tornou foco de grande interesse teórico entre os sociólogos japoneses depois da guerra. Além disso, à medida que a industrialização do Japão alcançou o seu pico nos meados dos anos 1960, os sociólogos começaram a adotar a “teoria parsoniana”. Seguindo a tendência da sociologia americana, a teoria de Talcott PARSONS70 (1902-1979) atraiu a atenção da nova

geração de teóricos sociais japoneses que buscavam entender sua sociedade industrializada e vários problemas sociais decorrentes. Essa linha “funcionalista- estruturalista” foi aplicada a vários temas como “modernização e mudanças sociais” (TOMINAGA 1965), “psicologia social” (SAKUTA 1972), “pequenos grupos” (AOI 1980) e

“sistemas sociais” (YOSHIDA 1974). O funcionalismo estrutural continuou sendo o

principal paradigma sociológico até o final dos anos 1970 (SHIOBARA et alii 1997).

Contudo, ao mesmo tempo, ele não estava imune a críticas dos marxistas, weberianos e fenomenologistas e também da Sociologia americana, que contribuiu para o seu declínio nos anos 1980 (NAKAO 1998).

O marxismo, assim como a teoria da modernização, pretendia ser uma teoria universalista. Embora muitas vezes tenha sido evocada retoricamente, a teoria marxista não era efetivamente empregada nas análises concretas. A pesquisa empírica, ao mesmo tempo, não dialogava com a teoria. Entre os dois pólos de “universalismo” e “particularidade” concreta, o marxismo não conseguiu oferecer uma análise da sociedade japonesa contemporânea que a enquadrasse entre os países industrializados. Nesse sentido, muitas análises concretas reproduzem as teorias problemáticas da singularidade japonesa (LIE 1996:21).

Os usos ideológicos do nihonjinron [teorias da japonicidade] como “nacionalismo científico” antes e durante a Guerra do Pacífico foram mencionados por CRAWCOUR

(1982). Tendo em vista que o Japão é uma civilização que possui uma história de vários séculos, é fácil escolher seletivamente aspectos particulares da tradição japonesa que são

70 Talcott P

ARSONS foi um dos sociólogos mais conhecidos nos Estados Unidos e no mundo. Seus estudos influenciaram toda uma geração nos anos 1950 e 1960. Parsons lecionou na Universidade de Harvard de 1927 a 1973. Ele produziu um sistema teórico geral para analisar a sociedade que veio a ser chamado de “Funcionalismo Estrutural”.

associados ao fenômeno presente (como o sucesso econômico do Japão). A imagem do Japão como uma entidade singular tende a dar ao fenômeno uma qualidade sacralizada. Ao mesmo tempo, o retrato do Ocidente decadente como um resultado inevitável da cultura ocidental proporciona crédito à idéia de que cultura é uma propriedade racial ou biológica. Por muito tempo, o governo japonês tem manejado a promoção de certas imagens do Japão. Isso pode ser visto de várias maneiras. Uma é o papel ativo do governo nacional em controlar os livros didáticos e educação (como vimos anteriormente). Os problemas de doutrinação e censura no período de pré-guerra é bem conhecido. O governo japonês também tem um grande interesse em apresentar a imagem holística da sociedade japonesa no exterior. Por algum tempo o governo japonês também tem canalizado dinheiro através do Ministério da Educação para disponibilizar os clássicos do nihonjinron em inglês. Aí se incluem obras de NAKAMURA (1960), NISHIDA

(1960), WATSUJI (1962) e HATANO (1963) – todos publicados pelo governo japonês. Em

geral, também tem-se dado apoio para outras entidades não-oficiais (como a Comissão Nacional do Japão para a UNESCO) para traduzir para o inglês muitos clássicos do nihonjinron, enquanto deliberadamente não se financiam ou apóiam tradições de obras de marxistas e outros documentos sobre o conflito na sociedade japonesa (MOUER & SUGIMOTO 1986a:177).

Pudemos notar também que a maioria dos símbolos nacionais japoneses está profundamente relacionada à legitimação do esforço despendido na guerra, e que por isso mesmo, muitos de seus conterrâneos acabam rejeitando esse patriotismo, o que dificulta a unificação do país. Assim, argumentou BEFU (1992), na falta de grandes símbolos nacionais eficientes que possam definir a identidade cultural e nacional, o nihonjinron vem a preencher essa lacuna de modo bastante conveniente. Isto é, justamente pelo fato de os símbolos nacionais não serem suficientes para a unificação do país, esse discurso sobre o nacionalismo vem a ser tão eficiente para criar um orgulho pela nação. Por sua vez, exatamente pelo fato de haver uma ausência de símbolos físicos nacionais significativos, há uma maleabilidade no uso que se faz do nihonjinron. Os escritos dos anos imediatamente depois da Segunda Guerra Mundial apontaram que a singularidade japonesa era problemática. Mas nas décadas seguintes, o Japão começou a prosperar economicamente, tornando-se mundialmente notório através das muitas publicações que

procuraram explicar o sucesso baseado nos mesmos princípios da singularidade japonesa, tão enfatizada no nihonjinron, com forte apelo nacionalista e conservador, atingindo tanto os não-acadêmicos quanto os acadêmicos.

O nihonjinron se tornou então um grande ponto de referência para justificar as políticas conservadoras do Partido Democrata Liberal (PDL). Este fato passa a ser óbvio quando examinamos as publicações em que nihonjinron aparecem. Eles são primariamente uma mídia de orientação pró-estabelecimento, observam MOUER &

SUGIMOTO (1986a:170). Quando os aspectos singulares dos processos políticos japoneses

são isolados das práticas políticas encontradas em outros países, todo o sistema político é então referido como uma linha singularmente japonesa e as tomadas de decisões são baseadas nas noções tradicionais de consenso, que acabam sendo legitimadas por muitos cidadãos.

A vida das pessoas é moldada e controlada por estereótipos e pelos mitos nacionais aos quais elas estão expostas. As decisões dos líderes políticos e outros na posição de autoridade são sempre baseadas nesses estereótipos, particularmente quando uma sociedade está em algum tipo de crise, incluindo a busca por uma identidade. O nihonjinron trouxe a muitos japoneses uma imagem estreita e fixa do mundo de fora. Isso também tem sido usado ideologicamente para mobilizar os japoneses nas questões domésticas, limitando assim as escolhas dos japoneses. Isso não quer dizer que cada sociedade não tenha seus próprios mitos nacionais que sejam comparáveis ao nihonjinron. Nem sugere que os cidadãos não devam ser socializados para ver o mundo como ele é. Entretanto, como uma teoria, nihonjinron tende a minimizar a importância ou a necessidade de controle e coerção. Como ideologia, contudo, ele tende a enfatizar a existência de expedientes artificiais que mobilizam e direcionam as pessoas.

Nos anos 1980, o número de livros de nihonjinron publicado no Japão diminuiu. Isso pode estar relacionado com a melhora do status do Japão internacionalmente, à medida que reduziu a necessidade de enfatizar constantemente a singularidade da sociedade japonesa no sentido de se estabelecer uma identidade nacional aceitável (MOUER & SUGIMOTO 1986b:9). Mas isso não significa que o nihonjinron esteja

desaparecendo: essas teorias de japonicidade ainda são muito bem vindas e teorias mais sofisticadas têm surgido, explorando, por exemplo, o conceito de ‘ie’ (sistema familiar)

como uma norma contínua na sociedade japonesa ou como o padrão singular da civilização japonesa (MURAKAMI et alii 1979). Não importa o quanto pareça sofisticado: a questão fundamental do nihonjinron ainda é compartilhada, como o aspecto da homogeneidade, orientação grupal e comparação intuitiva com o Ocidente supostamente monolítico.

Desta perspectiva, então, o modelo de grupo é substituído por “antolhos culturais” para muitos japoneses o que os leva a pensar que eles são tão singulares que não seria possível sobreviver no exterior. Embora o Japão seja uma das grandes democracias do pós-guerra, parece que os apoios oficiais e não-oficiais dados ao nihonjinron pelo governo, líderes empresariais e administrativos, políticos conservadores e a mídia em massa servem para criar barreiras psicológicas que são invisíveis, porém eficientes para prevenir a migração. Apenas quando todos os japoneses se sentirem confortáveis em se mover internacionalmente e aceitarem os imigrantes na sociedade japonesa é que poderemos discutir de modo significativo em que medida a sociedade japonesa é caracterizada singularmente por altos níveis de consenso social (MOUER & SUGIMOTO

1986a:403).

Um dos desdobramentos do uso político do nihonjinron pode ser observado nas várias facetas do nacionalismo japonês contemporâneo, como foi apresentado através de alguns grandes temas controversos como o hino e a bandeira nacional, o santuário xintoísta Yasukuni e a questão dos livros didáticos de História, como vimos no capítulo 4. Por trás de temas aparentemente tão díspares como esses, há muitas conexões com a história de guerra do passado japonês que se quer “esquecer”. Mas não basta apenas não olhar para resolver os problemas nem apenas mostrar o lado belo e louvável do Japão, as diversas expressões artísticas que revelam as nuances da natureza e suas relações com o homem, que de fato são riquíssimas, pois o país não é feito apenas disso. É importante estarmos cientes desta variedade de temas como foi abordado aqui: desde as circunstâncias históricas do início da era moderna no Japão, marcada pelo pela Restauração Meiji (1868), as questões raciais no contexto colonial, as ciências sociais japonesas e o nihonjinron, para pensarmos em termos de circulação de idéias e formação de imagens e imaginários – tanto de si quanto do “Outro”, assim como a questão do nacionalismo japonês contemporâneo. Esses temas – sem mencionar outros – são

importantes, no seu conjunto, para compreendermos melhor sobre “o que é ser estrangeiro/a no Japão”, “o que é ser brasileiro/a descendente de japoneses nesse país” e como se constitui então a sua identidade dentro desse contexto.

Posto isso, passo para a Parte II da tese, que irá abordar mais especificamente os estrangeiros na sociedade japonesa, no contexto das migrações internacionais no período atual, digo, a partir dos meados dos anos 80.

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Parte II

A Heterogeneidade da Sociedade

da

Japonesa Contemporânea

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Capítulo 5

Capítulo 5Capítulo 5

Capítulo 5

Os Grupos Minoritários

Os Grupos Minoritários

Os Grupos Minoritários

Os Grupos Minoritários

e

e e

e

A Diversidade Interna

A Diversidade Interna

A Diversidade Interna

A Diversidade Interna

da Sociedade Japonesa

da Sociedade Japonesa

da Sociedade Japonesa

da Sociedade Japonesa

“The government really shapes whole issue of identity [...] Over time, people will begin to answer [the race question] in more complex ways”. – Mary WATERS.71

Apesar da história de heterogeneidade e diversidade, o mito racial do japonês é amplamente compartilhado no Japão atual. As pessoas do Japão são comumente retratadas como um grupo étnico singular. Os japoneses sem cidadania plena, tal como os

71 “O governo realmente molda toda a questão da identidade (...) ao longo do tempo, as pessoas começarão a responder (à questão racial) de modos cada vez mais complexos”. Mary Waters é socióloga de Harvard University, citada por RODRIGUEZ (2000).

estrangeiros e as pessoas com ancestrais étnicos múltiplos, são renegados ao status de ‘forasteiro’ (outsider).

“Minoria” é um conceito que surgiu na Europa para designar grupos de pessoas que vivem num solo que ocuparam desde tempos remotos, mas que por mudança de fronteiras se tornaram politicamente subordinados a Estados nacionais diversos. Desde o século XVIII e principalmente no século XIX, os Estados-nação, idealmente tendiam a reconhecer como cidadãos apenas aqueles classificáveis como nacionais. Ao termo mais geral – “minoria” – se acrescenta um adjetivo quase sempre correspondente ao tipo de distinção que está em jogo. Existem, então, minorias ‘nacionais’, ‘raciais’, ‘étnicas’, ‘religiosas’ etc. Essa tipologia mostra como é confuso o conceito de minoria e, principalmente, reflete as dúvidas relativas às características que conferem a um determinado grupo o status de minoria. Não há consenso entre os autores que trataram do

“Minoria” ou “Grupo Minoritário” é “quase sempre usado como sinônimo de grupo étnico, racial, ou mesmo religioso. É definido a partir de características físicas, culturais, ou ambas, dependendo da sua origem. As minorias são subgrupos dentro de uma sociedade que se distinguem do grupo dominante no poder (quase sempre designado como maioria) por diferenças de raça, língua, costumes, nacionalidade, religião etc. (seja um só desses fatores, seja qualquer combinação deles). As minorias se consideram e são consideradas diferentes do grupo dominante e, por essa razão, não participam integralmente da vida social. A dificuldade em conceituar minoria está relacionada com a complexidade da situação empírica e com a variedade de casos que servem de embasamento da definição”.

problema das minorias teoricamente, mas algumas características definidoras mais gerais costumam ser enfatizadas: [1] sua posição subordinada, [2] tratamento ou status diferencial (imposto consciente ou inconscientemente pelo grupo dominante), e [3] a manutenção de limites – inclusivos, exclusivos, ou ambos – que mantém o grupo separado dos demais72.

Posto isto, quais são então os grupos minoritários que compõem a diversidade interna negligenciada pelo nihonjinron [teorias de japonicidade]? Apresentarei aqui, alguns dos principais grupos minoritários existentes no Japão: os “Burakumin”, “Coreanos no Japão”, “Ryukyuano” ou “Okinawano” ou “Okinawajin”, “Ainu” e “Nikkeijin” (este último, por ser o tema central da tese, será abordado no final). No discurso discriminatório aos burakumin, tenta-se argumentar que eles não são japoneses, para justificar a diferença e a discriminação através de seus antepassados, acusados de serem forasteiros e párias. Os ainus, no Hokkaidō, ao norte do Japão, assim como os okinawanos ao sul do país, além de outros coreanos, chineses, taiwaneses e outros asiáticos dos territórios ocupados pelo imperialismo japonês, juntos constituem o grupo dos “colonizados”, isto é, são populações de diferentes partes, porém geograficamente próximas ao alcance do Japão, que compartilharam o mesmo período colonial do final do século XIX e ao longo da primeira metade do século XX. Perante a insistência de implantar o sistema de imperialização, isto é, a padronização dos súditos ao Imperador japonês, diferentes regiões da Ásia sofreram agressões militares japonesas. Entretanto, ao mesmo tempo, cada uma dessas regiões colonizadas pelos japoneses, tem seus respectivos passados, assim como diferentes relações históricas com o Japão.

Dada a pertinência, neste capítulo sobre minorias do Japão, abordo também a questão do registro de estrangeiros ou não-japoneses que encontram uma série de barreiras a vários grupos que não fazem parte da maioria dos japoneses com cidadania plena. O [1] “Registro Familiar” 戸籍 [Koseki], [2] “Registro Residencial” 住民票 [Jūmin-hyō], [3] “Registro de Estrangeiro” 外国人登録[Gaikokujin Tōroku] e a [4] “Lei da Nacionalidade” 国 籍 法 [Kokusekihō] japonesa são os mecanismos burocráticos

72

Veja WIRTH (1945); WAGLEY & HARRIS (1958); BANTON (1977, 1983, 1987); MALIK (1996); ARENDT (2004[1949]).

analisados, que constituem os instrumentos de controle do Estado nipônico, para definir quem é e quem não é “japonês”. O problema fica maior à medida que vem aumentando o número de casamentos internacionais, entre japoneses e não-japoneses. Isso nos indica que o Japão de hoje é inegavelmente uma sociedade multicultural. E é exatamente isso que desafia a ideologia nacional que se pauta insistentemente na idéia de que o Japão é uma sociedade homogênea e singular.

5.1. Burakumin

Os Burakumin 部 落 民 são considerados os párias, os “intocáveis”, em certa medida comparáveis aos da Índia, que são considerados inferiores, condenados a um status quase subumano. Segundo Mikiso HANE (1982:139), alguns autores tentaram

explicar sua origem: uns indicaram que eram imigrantes provenientes da Coréia, que vieram ao Japão, entre os séculos IV e VII. Eles eram artesãos e trabalhadores manuais com status de quase escravos e, não sendo japoneses, eles eram segregados e tratados pelos japoneses como inferiores. Outros afirmaram que eles eram descendentes de prisioneiros coreanos trazidos ao Japão pelas forças expedicionárias entre os séculos IV e VI, enquanto que outros apontavam que eram descendentes de ainu. De qualquer modo, a crença de que os burakumin são de origem racial diferente da japonesa persistiu no período pós-guerra. Entretanto, os estudiosos mais recentes têm rejeitado essas teorias, alegando que não há evidência de que burakumin sejam diferentes dos japoneses. Dentre eles, há quem justifique dizendo que, se as teorias inferiorizavam os burakumin pela sua origem coreana, nos tempos antigos os imigrantes coreanos não eram tratados como inferiores. Ao contrário, eles detinham um alto status social e houve muitos casos de casamento com famílias nobres e aristocráticas.

Contudo, desde tempos remotos, no Japão há uma aversão a certas associações com a morte, uma vez que a idéia de “pureza” e “poluição” é bastante presente entre os japoneses. Era costume, por exemplo, remover as pessoas que estavam morrendo da casa, pois assim não poluiriam o local. Nesse sentido, os cerimoniais xintoístas ainda têm uma

importante função de limpar as pessoas, lugares e coisas. As pessoas que lidam com pessoas e animais mortos são então relacionadas àquelas que fazem trabalho sujo.

O advento do Budismo no início do século VI reforçou o preconceito contra aqueles que lidavam com os animais mortos, uma vez que o budismo condenava a matança e o consumo de carne animal. Isso se somou à idéia de pureza e poluição, que tem uma longa história no Japão associada ao xintoísmo e doutrinas budistas. Além disso, ao analisar a cumplicidade do budismo japonês na opressão sobre essa população burakumin e também ao verificar como as próprias religiões nipônicas irão contribuir para a liberação política atual da mesma, ALLDRITT (2000) apontou que os preceitos

budistas como “carma” serviram para justificar o fato de se ter essa vida miserável, nesta “encarnação”.

Assim, as pessoas que trabalhavam em curtume e/ou lidavam com couro animal foram chamadas de “eta” 穢多 [os poluídos] ou “hinin” 非人 [não-humano]. Algumas ocupações foram associadas a essas categorias como a dos produtores de equipamentos militares que usavam couro nos seus trabalhos, sapateiros, lixeiros ou varredores, mendigos, vadios. Aqueles que eram repudiados por sofrerem de determinadas doenças também foram classificados dentro dessas categorias.

“Impureza ou sujeira é aquilo que não pode ser incluído, se quiser manter um

padrão.”

Quando Tokugawa 徳川 estabeleceu sua autoridade no século XVII, a ordem social foi congelada, dividindo a população, de um modo geral, em quatro classes: samurais, camponeses, artesãos e comerciantes. Mas, na verdade, eram mais que essas quatro: no topo da sociedade estavam os membros da corte, aristocracia e senhores feudais, e na base da estrutura social, estavam os párias, que se ocupavam de trabalhos considerados “poluídos”. A segregação e discriminação em relação aos párias foram institucionalizadas por muitos senhores feudais (chamados de daimyō 大 名 ), por iniciativa própria, antes mesmo que o governo de Tokugawa congelasse a ordem social japonesa. Após essa definição é que, pela primeira vez, essa categoria foi fixada e institucionalizada em nível nacional.

Nos primeiros anos da era de Tokugawa (1603-1868)73, uma pessoa poderia ser rebaixada à condição de hinin 非人 [não-humano] quando quebrasse alguma regra ou cometesse crime, violasse as leis, tabus e/ou os costumes de um lugar. Os descendentes dessas pessoas também carregavam essa condição, mesmo quando eles se ocupavam de trabalhos considerados “limpos”. Havia também fazendeiros, pescadores, tecelões, tintureiros e trabalhadores que pertenciam ao grupo do hinin. Além das ocupações já associadas aos eta 穢多 [os poluídos], os policiais de baixo escalão, guardas de prisões, os executores de criminosos também foram logo relacionados a esse grupo.

Uma tentativa de explicar a forte discriminação para com os burakumins pauta-se na idéia de se ter uma classe de bode expiatório ou uma válvula de segurança para as pessoas comuns, canalizando suas frustrações geradas dentro uma ordem social restritiva. Esse sistema de classes pode ter sido criado a partir da visão confucionista de uma ordem hierárquica, que o governo Tokugawa adotou quando construiu o seu sistema social. Assim, como o governo permitia que os samurais abusassem dos plebeus, eles permitiram que os plebeus abusassem, por sua vez, dos burakumins. O tratamento discriminatório em relação aos eta que foi sancionado pelas autoridades e essa noção de que os burakumins