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2ª Subsecção Ilicitude.

IV. Requisitos da acção de defesa.

Com a defesa do agredido converte-se o próprio agressor em vítima e o agredido em autor. Para ser legítima, a defesa há-de ser objectivamente necessária: "o modo e a dimensão da defesa estabelecem-se de acordo com o modo e a dimensão da agressão". O agredido pode defender-se com tudo o que seja necessário, mas só com o que for

necessário. A defesa só será pois legítima se se apresentar como indispensável

(unumgänglich), imprescindível (unerläßlich), actuando o defendente com os meios exigíveis para a salvaguarda de um interesse jurídico, portanto, com o meio menos gravoso para o agressor. O juízo sobre a adequação do meio defensivo depende do

conjunto das circunstâncias (a "Kampflage") em que se desenrolam tanto a agressão

como a acção de defesa, devendo ter-se especialmente em consideração a intensidade da agressão, a força e a perigosidade do agressor e as possibilidades de defesa do defendente: contra um agressor de 130 quilos, que bate repetidamente com a cabeça da vítima na capota do automóvel, pode o agredido defender-se à facada (BGHSt 27, 336). No caso do acórdão do STJ de 10 de Fevereiro de 1994, BMJ-434-286, o defendente, de 77 anos, repeliu uma agressão actual e ilícita (tiro de arma de fogo contra ameaças de agressão corporal, antecedidas de insultos), mas provou-se que o fez em situação de medo prolongado, convencido de que a vítima, homem forte, de 30 anos, o ia atacar, bem como a sua mulher, com mais de 90, na sua própria casa.

“A necessidade de defesa há-de apurar-se segundo a totalidade das circunstâncias em que ocorre a agressão e, em particular, com base na intensidade daquela, da perigosidade do agressor e da forma de agir”. Cf. o acórdão do STJ de 4 de Novembro de 1993, referido pelo acórdão do STJ de 7 de Dezembro de 1999, BMJ-492-159. "O juízo de necessidade reporta-se ao momento da agressão, tem natureza ex ante, e nele deve ser avaliada objectivamente toda a dinâmica do acontecimento, merecendo todavia

especial atenção as características pessoais do agressor (idade, compleição física, perigosidade), os instrumentos de que dispõe, a intensidade e a surpresa do ataque, em contraposição com as características pessoais do defendente (o porte físico, a experiência em situações de confronto) e os instrumentos de defesa de que poderia lançar mão" (Figueiredo Dias, Textos, p. 185).

Onde em princípio se rejeita o exemplo de Lucky Luke, que disparava mais rápido do que a sua própria sombra! Há situações em que é possível não usar logo a arma de fogo que está à mão, dando ao

meio de defesa uma utilização gradual ou escalonada, podendo inclusivamente começar-se com uma ameaça verbal ou um tiro de aviso. Pode, no entanto, o defendente ver-se na necessidade de visar logo o agressor se com o aviso se perder tempo, piorando a situação de quem se defende ou tornando definitivamente impossível a defesa. Nesse caso, o disparo deverá ser dirigido a zonas do corpo do agressor que não sejam vitais: as pernas, o braço, etc. A fuga do defendente não tem qualquer influência na defesa necessária, fugir não é defender-se. Acontece também, por vezes, que há vários indivíduos simultaneamente em situação de legítima defesa. Se um deles pode, eficazmente, usar um meio menos gravoso, se o mais forte — por ex., um praticante de luta livre — tem à sua disposição o meio menos gravoso que é a defesa corporal, não deve o outro defendente, o mais fraco, usar a pistola que traz consigo. Finalmente, se houver ocasião de chamar a polícia, é isso que se deve fazer.

Já anteriormente referimos a tendência para não admitir a legítima defesa (excluindo-a) contra agressões insignificantes, como no caso do furto das maçãs. Todavia, não será sinónimo de agressão insignificante a crassa desproporção dos bens, existindo esta, por ex., no caso do furtum usus ou mesmo no caso do furto da propriedade de um automóvel, mas em que o bem jurídico do agressor a ser lesado pela necessária acção de defesa é a substancial integridade física do ladrão ou mesmo, eventualmente, a sua vida. Agressão insignificante não é o equivalente de crassa desproporção. (Prof. Taipa de Carvalho, p. 487). Para o mesmo autor, não sendo a agressão dolosa e culposa intervirá, como também já se acentuou, um direito de necessidade defensivo: o interesse lesado pelo defendente não será então muito superior ao interesse defendido. As agressões de crianças, doentes mentais notórios e de pessoas manifestamente embriagadas terão assim um tratamento particularizado. Nos casos em que o agente pretende criar uma situação de legítima defesa para, impunemente, atingir o agressor, há quem entenda que, para lá da falta de vontade de defesa, não se verifica a própria necessidade de defesa — o direito entraria em contradição consigo mesmo se permitisse tais acções defensivas. Poderia sempre invocar-se o abuso do direito. Se a provocação não é intencional, mas apenas

negligente, deve-se evitar a legítima defesa agressiva. Mas do conceito de necessidade resulta, por último, que não está em causa uma proporcionalidade dos bens jurídicos — tanto a propriedade como o domicílio podem ser defendidos com os meios necessários para repelir a agressão, ainda que, nas concretas circunstâncias, o defendente deva servir- se, unicamente, do meio menos gravoso para a sustar.

Não será adequada como acção de defesa a reacção de quem foi intencionalmente fechado numa cave e que aproveita para destruir as garrafas de vinho do proprietário. Na verdade, nenhuma relação existe entre a agressão e a apontada reacção de quem foi privado da sua liberdade.

A defesa é necessária se e na medida em que, por um lado, é adequada ao afastamento da agressão e, por outro, representa o meio menos gravoso para o agressor.

Saber se é necessária uma vontade de defesa foi objecto de larga controvérsia, por detrás da qual se encontravam, dum lado, os partidários da ilicitude objectiva, do outro, os da doutrina do ilícito pessoal. O conceito objectivista é definido pelo desvalor de resultado, mas o ilícito como desvalor de acção e com os elementos pessoais (subjectivos) que lhe estão associados passou a influenciar largos sectores da doutrina. Hoje em dia entende- se, predominantemente, que o ilícito é desvalor de resultado mas é também desvalor de acção e ambos têm o mesmo peso na sua conformação. Deste modo, se A, dolosamente, cometeu homicídio na pessoa de B a conduta só estará justificada se à situação de defesa e à acção de defesa se juntar o elemento subjectivo do tipo permissivo que é a vontade de defesa, pois só assim se afasta o desvalor de acção, i. e, a vontade de realização do crime. O acórdão do STJ de 19 de Janeiro de 1999, no BMJ-483-57, parece ser o exemplo de uma orientação pacífica no sentido de se exigir que o agredido aja com intenção de se defender de uma agressão — portanto, que o animus defendendi é requisito da legítima defesa.

A defesa deve, portanto, ser subjectivamente conduzida pela vontade de defesa, não lhe bastam os critérios objectivos anteriormente assinalados. É necessário que o agente tenha

consciência de que se encontra perante uma agressão a um bem jurídico próprio ou de

terceiro, e que actue com animus defendendi, ou seja, com o intuito de preservar o bem jurídico ameaçado (cf. Figueiredo Dias, Legítima defesa, Pólis). Frequentemente, os autores distinguem entre a defesa de protecção e a agressiva, no primeiro caso, se, por

ex., o defendente se limita a levantar ou a exibir a arma, fazendo ver ao adversário o que o espera. O defendente pode até evitar o ataque, escapando à agressão, ou pedir a ajuda de outrem, por ex., da polícia. A forma agressiva corresponde ao dito "a melhor defesa é o ataque". As situações têm a ver, naturalmente, com a necessidade de defesa. Voltaremos ao assunto a propósito da provocação intencional (pré-ordenada), nos casos em que o agente pretende criar uma situação de legítima defesa para, impunemente, lesar um bem do agressor. "Dado que a principal intenção do agente é, não defender-se, mas sim atacar o outro indivíduo, não se encontra satisfeito o indicado elemento subjectivo" (Figueiredo Dias). Já se viu que, nestes casos, a conduta deve considerar-se sempre ilícita. Outra questão liga-se com as consequências do "desconhecimento da situação objectiva justificante". De acordo com o artigo 38º, nº 4, Código Penal é punível, com a pena aplicável à tentativa, o facto praticado sem conhecimento da existência de consentimento do ofendido susceptível de excluir a responsabilidade criminal. Na sua interpretação corrente, a solução do Código aplica-se ao consentimento e em todos os outros casos em que o agente actua sem conhecer uma situação justificadora realmente existente. Segundo o Prof. Figueiredo Dias, entrar-se-ia em contradição normativa se o Código, que aceita em princípio a punibilidade da tentativa impossível, “deixasse de punir, também a título de tentativa, aquele que actuou numa situação efectivamente justificante, mas sem como tal a conhecer” (Pressupostos da punição, p. 61). A solução é correntemente aceite pelos autores alemães. Cf., por todos, Kühl, StrafR, p. 167. A situação contrária, a de alguém agir com vontade de defesa sem que se verifiquem os pressupostos objectivos da legítima defesa, leva, como já se viu, à figura da legítima defesa putativa.

Também a jurisprudência aponta como requisitos da legítima defesa: — A existência de uma

agressão a quaisquer interesses, sejam pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro. — Agressão essa que deve ser actual no sentido de estar em desenvolvimento ou iminente. — E ilícita, no sentido geral de o seu autor não ter o direito de o fazer, não se exigindo que ele actue com dolo, com culpa ou mesmo que seja imputável. — Defesa circunscrevendo-se ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão, paralisando a actuação do agressor aqui se incluindo a impossibilidade de recorrer à força pública. —Animus defendendi, ou seja o intuito de defesa por parte do defendente. Acentua-se que não é requisito da legítima defesa a proporcionalidade entre o bem agredido e o defendido devendo entender-se não ser exigível do defendente rápida e minuciosa valoração dos bens em jogo; os casos de manifesta e grande desproporção entre o bem agredido e o defendido podendo ser resolvidos através do abuso de direito. Igualmente se acentua a necessidade racional do meio empregado, requisito este que, não devendo ser afastado, deve antes ser visto sob a perspectiva do excesso de legítima defesa. (Cf., entre

outros, os acórdãos do STJ de 5 de Junho de 1991, BMJ-408-180; e de 19 de Julho de 1992, BMJ-419- 589).

CASO nº 23-A: A, que foi contactado na sua residência por um vigilante nocturno de uma escola,

pedindo-lhe auxílio em virtude de a escola estar a ser assaltada por quatro indivíduos e não ter conseguido contactar as autoridades policiais e que dispara um tiro sobre um dos assaltantes que perseguia, o qual o enfrenta empunhando uma faca - tiro que vem a ser a causa determinante da morte do assaltante - actua no exercício de um direito - a legítima defesa e, por isso, não pode ser criminalmente punido (ac. do STJ de 5 de Junho de 1991, BMJ-408-180).

CASO nº 23-B. Agiu em legítima defesa o agente policial trajando à civil que pretendendo interferir

em defesa de um indivíduo que estava a ser agredido por outros três, foi por estes rodeado em disposição de o agredirem, um deles empunhando uma faca, e recuou, e disparou sem êxito um tiro de revólver para intimidação e, em estado de perturbação, disparou outro tiro contra a perna esquerda daquele que empunhava a faca, prostrando-o no solo e provocando-lhe lesões determinantes de 30 dias de doença. Mas

já não agiu em legítima defesa quando disparou o terceiro tiro contra a região malar de outro dos

mencionados indivíduos que tinha na mão um rádio portátil e distava um metro e meio, provocando-lhe a morte, por não ter o propósito de defesa nem subsistir o perigo de agressão iminente (acórdão do STJ de 20 de Novembro de 1991, BMJ-411-244).

Um dos problemas mais relevantes do direito de justificação é o de saber se se pode salvar um simples bem patrimonial (com excepção, naturalmente, dos de valor insignificante) à custa do sacrifício de uma vida humana ou de uma grave lesão da integridade física. A lei ordinária portuguesa não impõe quaisquer limites à legítima defesa, em função da natureza —patrimonial ou não patrimonial— dos bens jurídicos protegidos. Cf. agora, na área jurisprudencial, o acórdão do STJ de 10 de Outubro de 1996, BMJ-460-359. A proporcionalidade entre os valores dos bens agredido e defendido não é requisito imposto pela disciplina jurídica da legítima defesa no nosso Direito e, por isso, em princípio, não pode sustentar-se que o valor do património haja de ceder perante o valor da integridade física ou da vida. Isto, sem prejuízo de exclusão do âmbito da legítima defesa das hipóteses em que, atentos os critérios ético-sociais reinantes, se verifique uma manifesta e gritante desproporção dos interesses contrapostos. Acórdão do STJ de 4 de Novembro de 1998, proc. nº 892/98.

V. Excesso de legítima defesa — excesso intensivo: artigos 32º e 33º. Manipulação

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