• Nenhum resultado encontrado

§ 10 Generalidades.

Em páginas precedentes procurámos distinguir a ilicitude da culpa. Distinção que o próprio código em várias ocasiões acentua, por exemplo, no artigo 17º, nº 1: “age sem

culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for

censurável”. Ou no artigo 72º, nº 1: “o tribunal atenua especialmente a pena (…) quando existirem circunstâncias (…) que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a

conduta integra um tipo de ilícito penal significa darmos como comprovada a ilicitude, por violar o comportamento humano um dever imposto pela ordem jurídica (proibição ou comando). Já quando falamos da culpa, do que se trata é de saber se ao agente pode ser pessoalmente censurado o facto ilícito praticado, se lhe podemos reprovar o seu carácter desvalioso. Mas então o que estará em causa é um poder individual (um nexo pessoal entre o agente e o facto) e já não o dever que a todos compete: culpa é censurabilidade do comportamento humano por o culpado ter actuado contra o dever quando podia ter actuado de acordo com ele.

Não há pena sem culpa e a medida da culpa é limite da medida da pena (artigo

40º). Com esta ou com formulações muito próximas temos o princípio da culpa: a pena funda-se na culpa do agente pela sua acção ou omissão, isto é, em um juízo de reprovação do agente por não ter agido em conformidade com o dever jurídico, embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo (Sousa e Brito). Entende-se assim a culpa como censura ético-jurídica dirigida a um sujeito por não ter agido de modo diverso, estando tal pensamento ligado à aceitação da liberdade do agente, à aceitação do seu “poder de agir doutra maneira”, como escreve o Prof. Eduardo Correia (Direito Criminal I, p. 361). Implica tal princípio que não há pena sem culpa, excluindo-se a responsabilidade penal objectiva, e que a medida da pena em caso algum deve ultrapassar a medida da culpa. O princípio da culpa tem assento constitucional, decorrendo da dignidade da pessoa humana e do direito à liberdade (artigos 1º e 27º, nº 1, da Constituição). “São consequências desta consagração constitucional, entre outras, a exigência de uma culpa concreta (e não ficcionada) como pressuposto necessário da aplicação de qualquer pena, e a inerente proscrição da responsabilidade objectiva; a proibição de aplicação de penas que excedam, no seu quantum, o que for permitido pela medida da culpa (20) e a proibição das penas absoluta ou tendendialmente fixas” (acórdão

20

Fernanda Palma (in Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, 1998, p. 25) fala de uma função meramente restritiva da culpa na determinação da pena (artigos 40º, nº 2, e 70º (a contrario) do Código Penal. Significa isso que “a culpa como censura da pessoa do agente (da sua vontade ou da sua orientação de conduta) não justifica a pena nem a sua medida judicial, apenas impede que razões preventivas justifiquem uma pena não proporcionada (superior) à da culpa do agente”.

do Tribunal Constitucional nº 432/2002, de 22 de Outubro de 2002, publicado no DR II série de 31 de Dezembro de 2002).

O princípio da culpa, derivando da essencial dignidade da pessoa humana, acha-se consagrado nos artigos 1º e 25º, nº 1, da Constituição, e articula-se com o direito à integridade moral e física. Além disso, no âmbito do direito penal, exprime-se a diversos níveis: veda a incriminação de condutas destituídas de qualquer ressonância ética, impede a responsabilização objectiva, obsta à punição sem culpa e à punição que exceda a medida da culpa. Acórdão do Tribunal Constitucional, de 7 de Junho de 1994, DRep., II série, nº 249, de 27.10.94.

Culpa é censurabilidade — é um juízo normativo (valorativo) sobre o agente. A capacidade de motivação indica que o agente pode ser considerado responsável, por ter podido actuar de outra maneira.. Já anteriormente observámos que à visão

causalista andava associada a da teoria psicológica da culpa. A culpa era concebida como um simples nexo subjectivo. Atendia-se à natureza psicológica entre o facto e o seu autor, que tanto podia revestir a forma dolosa como a negligente. Esgotava-se portanto na presença ou na ausência de dolo ou negligência. Mas a culpa não está apenas na cabeça do criminoso. Foi Frank quem, referindo-se à insuficiência da relação psicológica para a culpa, utilizou o termo censurabilidade para a definir e ampliar os seus contornos: A relação psíquica entre o agente e o facto passa a ser observada sob a perspectiva da censura que o seu carácter desvalioso implica. Culpa é portanto censurabilidade, torna- se juízo de reprovação assente na estrutura lógico real do livre arbítrio — a culpa fundamenta a censura pessoal contra o agente, já que este não omitiu a conduta antijurídica, embora a pudesse ter omitido. (21)

21

Esta posição, assente no livre arbítrio, no poder-agir-de-outra-maneira, parte de uma premissa cientificamente inverificável. Como veremos a seguir, apareceram entretanto posições que relacionam a culpa com os fins das penas, de que não pode ser compreendida separadamente. As novas discussões levaram também ao estabelecimento de uma mais clara distinção entre culpa como fundamento da pena e culpa como critério da medida da pena. Para Roxin, a culpa, por si só, seria incapaz de fundamentar a pena num direito penal orientado exclusivamente para a proteção de bens jurídicos (não retribucionista), tornando-se necessário acrescentar-lhe considerações de prevenção geral e especial. Culpabilidade e necessidades preventivas passam assim a integrar o terceiro nível da teoria do delito, que Roxin chama de "responsabilidade" (Verantwortlichkeit).Cf. a tradução por Maria da Conceição Vladágua do § 19 do 1º

Por conseguinte: “não haverá culpa onde não houver censurabilidade, mesmo que o substracto psíquico do tipo requerido se mantenha. A culpa exige, para além da comprovação cognitiva de um certo substracto psíquico, uma valoração pelo juiz daquele substrato” (cf. Figueiredo Dias, O problema, p. 141, e os autores referidos na nota 21). Nos trabalhos práticos habituámo-nos à afirmação de que, comprovado o carácter ilícito- típico do facto, fica também afirmado prima facie o seu carácter culposo. De modo que “a questão da culpa” vem assim a reduzir-se (cf. Figueiredo Dias, RPCC 2 (1992), p. 10) “à questão da sua negação ou exclusão em certas situações específicas: na situação de inimputabilidade, de falta de consciência do ilícito não censurável ou de inexigibilidade legalmente prevista, máxime de estado de necessidade, de conflito de deveres e de excesso de legítima defesa desculpantes”. Ao longo das páginas que antecedem, fomos analisando, com algum pormenor, alguns desses variados aspectos. De igual modo, pudemos concluir que o princípio da culpa supõe a liberdade de determinação da pessoa. “A liberdade, como característica da pessoa, é o pressuposto irrenunciável de toda a culpa jurídico-penal e do modelo político-criminal próprio de um Estado de Direito democrático. Só assim se pode falar da dignidade pessoal como o valor mais alto e o bem mais digno de protecção de toda a ordem jurídica constitucional” (Figueiredo Dias, idem, p. 12). “A liberdade de cada um para se autodeterminar de harmonia com os valores, pressuposto da culpa ética, está em larga medida confirmada pelos estudos sobre o homem, que as próprias ciências da natureza não podem contestar” (Eduardo Correia,

idem, p. 316).

Uma questão actual: a negação da culpa significaria o fim do direito penal clássico. A culpa é garantia da pessoa e limita o jus puniendi do Estado. Ainda a

este propósito, cabe aqui um rápido apontamento sobre o sentido e a função da punição. O Código refere-se às finalidades da punição em diferentes ocasiões, nos artigos 40º, 50º (suspensão da execução da pena de prisão), 58º (prestação de trabalho) e 60º (admoestação). A expressão ganha os seus mais exactos contornos por vir acompanhada

volume do Tratado do Prof. Claus Roxin, em RPCC 4 (1919), e as considerações do Prof. Figueiredo Dias na mesma RPCC 2 (1992).

do complemento da adequação e da suficiência. Ora, tem-se hoje por adquirido que as finalidades da pena só podem ser de natureza exclusivamente preventiva e não retributiva. Como escreve Roxin, a pena estatal é uma instituição exclusivamente humana, criada com o fim de proteger a sociedade, não podendo, por isso, ser imposta se razões preventivas a não exigirem. Como finalidade básica da aplicação da pena aponta- se para o “restabelecimento, através da punição, da paz jurídica comunitária”, a acompanhar a ideia da prevenção geral positiva ou de integração.

Compreende-se que a categoria do delito mais afectada pela ideia de prevenção seja a culpa. Figueiredo Dias fala da possível desconsideração da culpa jurídico-penal na seguinte base: “ou se vai ao ponto de eliminar a culpa como elemento constitutivo do sistema, substituindo-a por outras categorias como a da proporcionalidadde (Gimbernat

Ordeig, Ellscheid, Hassemer); ou, quando a categoria da culpa se mantenha, ela não

poderá ser outra coisa senão um mero “derivado da prevenção” e das exigências desta (Jakobs)”. A procedência desta argumentação, escreve ainda o ilustre penalista, “constituiria uma perda irreparável no sistema e não é de modo algum imposta pelas premissas de que arranca. Se as finalidades da pena são na verdade exclusivamente

preventivas, só o são porque do mesmo passo se chama a debate o princípio da culpa

enquanto elemento limitador do poder e do intervencionismo estatais, comandado por exigências irrenunciáveis de respeito pela dignidade da pessoa”. A culpa, “não constituindo uma finalidade da aplicação da pena, constitui todavia um limite inultrapassável da sua medida, de tal modo que toda a pena preventiva é do mesmo passo suportada pela culpa (…). A pena orientada pela prevenção geral positiva, se tem como máximo possível o limite determinado pela culpa, tem como mínimo possível o limite comunitariamente indispensável de tutela da ordem jurídica. É dentro destes limites que podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial — nomeadamente de prevenção especial de socialização —, os quais, deste modo, acabarão por fornecer, em último termo, a medida da pena” (Figueiredo Dias, idem, p. 28).

Repressão Prevenção

Ideia Retribuição, expiação da culpa

Prevenção, re-socialização

Teorias Teorias absolutas. “A pena, pela sua própria natureza, apenas pode ser retribuição (Vergeltung) e nada mais. Não importa se esta retribuição é eficaz como prevenção. Pelo contrário, o fim de prevenção implica uma u t i l i z a ç ã o i l e g í t i m a do delinquente no interesse dos outros” (Maurach). Mas só se legitima a pena se esta for justa. A pena necessária será a que produza um mal ao autor do crime, compensando o mal que livremente causou. Só será legítima a pena justa, mesmo que não seja útil.

Teorias relativas. O critério de legitimação assenta na

utilidade da pena.

Prevenção geral: entendida agora comoprevenção positiva ou de integração, i. e, de reforço d a c o n s c i ê n c i a jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida.

Prevenção especial: põe-se em 1º lugar a ressocialização do criminoso.

Execução Inflição de um mal. Educação; tratamento.

Finalidade Castigo (=reconciliação com a

sociedade), sendo a culpa fundamento e medida da pena.

Restabelecimento, através da punição, da paz jurídica comunitária A pena visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração social do agente (artigo 40º do CP).

Finalidades da punição (adaptado de F. Haft, AT, p. 122).

§ 11 Imputabilidade.

A imputabilidade traduz-se naquele conjunto de qualidades pessoais que são

necessárias para ser possível a censura ao agente por ele não ter agido de outra maneira. “Refere-se, pois, ao lado endógeno do crime, sendo necessário tomar em conta

os seus efeitos na vida psíquica” (Eduardo Correia, Direito Criminal I, p. 331). A falta de liberdade para se determinar decorre ou da idade (artigo 19º) ou de uma incapacidade motivada por anomalia psíquica (artigo 20º)

Os artigos 19º (inimputabilidade em razão da idade) e 20º (inimputabilidade em razão de anomalia psíquica). Esclareça-se desde já que a inimputabilidade não é

impeditiva fáctica da determinação da culpa” (Prof. Figueiredo Dias, apud M. Cortes Rosa, La función de la delimitación de injusto y culpabilidad en el sistema del derecho penal, in Fundamentos de un sistema europeo del derecho penal, Bosch, 1995). São inimputáveis os menores de 16 anos, assim declarados por virtude da sua incompleta maturidade, que lhes não permitirá uma correcta avaliação e decisão: são absolutamente inimputáveis em razão da idade (artigo 19º). A prática, por menor com idade compreendida entre os 12 e os 16 anos, de facto qualificado pela lei como crime, dá lugar à aplicação de medida tutelar educativa em conformidade com a Lei nº 166/99, de 14 de Setembro.

Exige-se, por outro lado, que concorram no autor da infracção de uma norma determinadas condições de receptividade dessa mesma norma: no momento da sua

actuação, o agente deverá encontrar-se em condições que lhe permitam receber a

mensagem normativa e de poder ser influenciado por ela. Se o agente actuou sem culpa, se porventura procedeu em situação de anomalia psíquica, encontrando-se preenchidos os pressupostos do artigo 20º, nº 1, por forma a torná-lo incapaz de avaliar a correspondente ilicitude, não poderá aplicar-se-lhe uma pena. Incluem-se aqui, entre outras, as patologias mentais no sentido clínico, como a esquizofrenia, e a intoxicação por drogas ou pelo álcool. O substracto biopsicológico da inimputabilidade passa agora a poder abranger “não apenas a “doença mental” em sentido estrito, mas toda e qualquer “anomalia psíquica”: das psicoses à oligofrenia, das psicopatias às perturbações da consciência, das neuroses às personalidades com reacções ou tendências anómalas isoladas” (Figueiredo Dias, Sobre a inimputabilidade, in Temas Básicos, p. 265; cf. também o acórdão do STJ de 11 de Fevereiro de 2004, CJ 2004, tomo I, p. 197). O que significa dever contar-se com o carácter permanente ou simplesmente transitório do transtorno mental no momento da prática do facto.

Está excluída a aplicação de qualquer pena aos inimputáveis, a estes estão reservadas as medidas de segurança, referidas à perigosidade. “Pressuposto mínimo de aplicação da medida de segurança é

a conjugação da prática de um ilícito típico com outros elementos do crime que não tenham a ver com a culpa do agente”. Não é legítimo aferir da perigosidade criminal para efeito de aplicação de uma medida de segurança de internamento, por exemplo, quando o inimputável age em legítima defesa, em erro sobre a factualidade típica ou quando desiste validamente da tentativa de cometimento de um crime; mas já é legítimo, por exemplo, quando a situação for de estado de necessidade desculpante, de erro sobre

proibições cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para tomar consciência do ilícito ou de falta de consciência do ilícito não censurável. Nestes últimos casos estamos perante verdadeiros problemas de culpa e, por conseguinte, não é possível aferir dos pressupostos de que dependem relativamente ao inimputável em virtude de anomalia psíquica. (Figueiredo Dias; Maria João Antunes).

É necessário recorrer aos elementos biológico e psicológico como critérios substanciais integradores da imputabilidade.

Circunstâncias biológicas e… …elemento psicológico

Quadro das “anomalias psíquicas”.

• Doenças mentais: psicoses orgânicas (v. g., a demência senil), tóxicas (ex: a chamada embriaguez aguda), funcionais (ex: a esquizofrenia);

• Perturbações profundas da consciência: por ex., o estado artificial de sono na hipnose;

• A debilidade mental; ou

• As psicopatias, as neuroses e as perturbações da vida instintiva e dos afectos vitais, como as da vida sexual, incluindo as personalidades com reacções ou tendências anómalas isoladas.

• Incapacidade, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste; ou

• De se determinar de acordo com essa avaliação.

Fundamentação Estas características são tarefa de peritos e investigadas pela psiquiatria, a psicopatologia, a psicanálise e a psicologia.

Tem-se em vista comprovar a gravidade e o significado das “anomalias psíquicas” para o facto concreto.

Estrutura das “perturbações” da vida mental.

I. Homicídio; homicídio qualificado; imputabilidade; inimputabilidade; artigo 20ª do Código Penal; imputabilidade diminuída por motivo de anomalia psíquica. Situações de borderline.

CASO nº 33: A, médico, estava convencido de que B tinha algo a ver com a morte de um seu cavalo e levou-o consigo numa carrinha de caixa aberta para a sua quinta, onde começou por amedrontá-lo. Mas como B nada lhe contasse sobre a morte do animal, A empurrou-o para dentro de casa e começou aos berros e a exibir uma pistola e um punhal que trazia á cinta, ameaçando-o de morte, após o que o começou a agredir com as mãos e aos encontrões contra as paredes. A dado passo, A apercebe-se de que B

Outline

Documentos relacionados