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Excesso de legítima defesa — excesso intensivo: artigos 32º e 33º Manipulação consciente da situação?

2ª Subsecção Ilicitude.

V. Excesso de legítima defesa — excesso intensivo: artigos 32º e 33º Manipulação consciente da situação?

CASO nº 23-C: Os arguidos A e B viveram durante algum tempo no estrangeiro, onde os pais tinham estado emigrados, e quando voltaram para Portugal propuseram-se explorar uma casa de passe num dos bairros de Lisboa. S, o chefe dum grupo de jovens “cabeças rapadas”, tinha-se proposto combater o comércio da prostituição naquela zona. Decidiu, por isso, com os seus seguidores, atacar a casa de passe dos arguidos por volta da meia noite de 31 de Maio de 1991. As ordens eram para inutilizar as instalações e empregar a força contra quem se lhes opusesse. Os arguidos souberam destas intenções da parte de tarde desse mesmo dia, quando dois indivíduos do grupo extremista lhes vieram propor que, se os arguidos pagassem à volta de cinco mil contos, nada aconteceria. A e B recusaram-se a pagar e decidiram fazer frente aos atacantes, sem nada comunicarem à polícia. Com isso quiseram deixar claro que não consentiam que se lhes extorquisse dinheiro nem se deixavam influenciar por acções violentas. A polícia, se tivesse sido informada, teria comparecido no local com forças suficientes para frustrar qualquer ataque. Por volta das 23h30, A e B aperceberam-se de que a uns 150 metros do local onde se encontravam se juntavam uns 30 a 50 jovens, armados de paus, matracas e chicotes. Para lhes fazer ver que não tinham qualquer hipótese de atacar a casa de passe, A e B avançaram para o ajuntamento, transportando-se no seu automóvel. O arguido A levava consigo uma espingarda carregada e B uma pistola de gases. Já perto dos jovens, A saiu do carro, mostrou-se com a arma empunhada e convidou os do grupo a "desaparecerem" e a deixá-los em paz. Ao mesmo tempo ia apontando a arma para os jovens que na rua o rodeavam a uma distância entre 10 e 50 metros. Os jovens puseram-se em fuga e acolheram-se atrás dos carros, das árvores e nas entradas das casas que por ali havia. A, convencido de que tinha os antagonistas em respeito, dirigiu-se, de volta ao carro, para dali se retirar com B. Foi então que S, o chefe dos rapazes, saiu do seu próprio automóvel, que ficara estacionado à beira da estrada, e com as mãos no ar, em lentidão provocadora, se foi aproximando até 6 ou 8 metros de A. Quando este lhe apontou a arma, S gritou-lhe: "dispara, dispara, sacana! — vê se te atreves!". A ficou alterado por causa da repentina mudança dos acontecimentos e foi recuando, com a arma pronta a disparar, de volta para o carro. Quando já estava quase sentado ao volante da viatura, o S aproximou-se até cerca de um metro, e segurou com a mão direita na porta do carro do lado do condutor. O tribunal não deu como não provado que o S levava uma navalha na mão, pronta a usar, com a lâmina à vista. Entretanto, alguns dos rapazes que se tinham escondido voltaram a mostrar-se e aproximaram-se até cerca de 6 metros do carro dos arguidos. Foi então que B, para evitar o ataque que estava a todas as luzes iminente, lançou gás na direcção de S, através da porta aberta do lado do condutor. S, para se livrar do gás, desviou a cara para a direita. Nesse momento, A disparou, a pelo menos meio metro de distância da cabeça de S, aceitando a morte deste como consequência dessa sua actuação. S foi atingido mortalmente atrás do pavilhão auricular direito. (Adaptação do texto comentado por Bernd Müller-Christmann, Überschreiten der Notwehr - BGHSt 39, 133, in JuS 1994, p. 649. A decisão apareceu noutras publicações, igualmente com comentários, nomeadamente, de Roxin, NStZ 1993, p. 335, e Arzt, JZ 1994, p. 314; cf. também Fritjof Haft / Jörg Eisele, Jura 2000, p. 313).

A questão que aqui se levanta prende-se com a aplicação do artigo 33º:

1 — Se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada. 2 — O agente não é punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto não censuráveis.

No caso nº 23-C está em causa o chamado excesso intensivo de legítima defesa — o agente, numa situação de legítima defesa, perante a agressão iminente de que era vítima, utilizou um meio não necessário para repelir a agressão, i. é, excedeu-se nos meios necessários para a defesa. O artigo 33º aplica-se a situações destas.

O defendente actua também ilicitamente se ultrapassa os limites temporais da legítima defesa, se se defende em caso de ataque que já não seja actual ou tenha deixado de o ser (excesso extensivo de legítima defesa). O defendente excede, conscientemente, os limites temporais da legítima defesa se, por ex., estando o agressor já no chão, neutralizado, o defendente continua a bater-lhe, dando-lhe repetidos pontapés. Neste caso, pode acontecer que o defendente tenha consciência de que está a agredir o seu antagonista — o agressor inicial — e que o faz ilicitamente, sem qualquer justificação, podendo a sua pena, eventualmente, ser atenuada nos termos do artigo 73º, nº 1.

Se o defendente reage cedo demais, quando a agressão ainda não é actual, mas ele a tem como tal, ou supõe erroneamente que a sua conduta ainda é justificada, autorizada pelo direito, por ex., pensa que o seu agressor, apesar de estar por terra, ainda está em condições de voltar a agredi-lo, então tratar-se-á de uma hipótese a resolver em sede de erro (artigos 16º, nº 2). Certo é que, sempre que se trate de uma falsa representação dos pressupostos objectivos necessários à legítima defesa estaremos perante uma legítima defesa putativa, a que são aplicáveis os princípios gerais sobre o erro.

Como já anteriormente vimos, a defesa é necessária se e na medida em que, por um lado, é adequada ao afastamento da agressão e, por outro, representa o meio menos gravoso para o agressor. Os casos mais frequentes de excesso têm a ver com a utilização de um meio de defesa que, "sendo adequado para neutralizar a agressão, é, porém, claramente mais danoso (para o agressor) do que um outro de que o agredido ou terceiro dispunha e que também era, previsivelmente, adequado" (Prof. Taipa de Carvalho). Por ex., durante

uma discussão por razões de trânsito, os dois condutores saem dos respectivos carros e entram a discutir; a dado passo, A começa a esmurrar o seu antagonista e B saca do revólver que sempre o acompanha, dispara-o na cabeça de A e provoca-lhe a morte, a qual poderia ter sido evitada se B se tivesse limitado a defender-se a soco ou a visar as pernas do agressor. Note-se que a decisão sobre a existência ou não de excesso "não pode deixar de atender á globalidade das circunstâncias concretas em que o agredido se encontra, nomeadamente, a situação de surpresa ou de perturbação que a agressão normalmente constitui, a espécie de agressor e os meios agressivos, de que dispõe, bem como as capacidades e os meios de defesa de que o agredido se pode socorrer". (Cf. Taipa de Carvalho, p. 346). De qualquer forma, o artigo 33º, havendo excesso de legítima defesa, e independentemente de se tratar de um excesso asténico (perturbação, medo, susto) ou esténico (cólera, ira), prevê a possibilidade de atenuação especial da pena. Deve no entanto notar-se que, em caso de excesso de legítima defesa, o facto é

sempre ilícito (nº 1). O agente só não será punido (nº 2) se o excesso resultar de

perturbação, medo ou susto não censuráveis.

É difícil explicar, do ponto de vista da “culpa”, que o antigo § 53, 3, do StGB (comoção, medo ou susto) e o novo § 33 (perturbação, medo ou susto) só concedam a exclusão da responsabilidade nos estados anímicos asténicos, mas não nos esténicos, como a cólera ou a ira, pois tanto se compreende uma reacção como a outra. Contudo, a diferença justifica-se por critérios de prevenção. Com efeito, geralmente, os estados anímicos agressivos são muito mais perigosos e por isso há que evitá-los por todos os meios (e portanto também ao preço da sanção) no interesse da conservação dos bens jurídicos. Os estados de “perturbação, medo ou susto” não provocam a imitação e por isso podem ser tratados com maior benignidade. Claus Roxin, Culpabilidade y prevencion en Derecho Penal, Madrid, 1981, p. 80. Compreende-se, porém, que a perturbação, medo ou susto causados pela agressão impeçam a justa avaliação ou ponderação da necessidade dos meios para a defesa, em termos de tornar não censurável o defendente pelo seu excesso; estar-se-á então, pois, em face de um caso de não exigibilidade e, portanto, de exclusão da culpa. Não deve todavia entender-se que os efeitos do referido estado de afecto asténico sejam automáticos, como pretende Maurach, mas haverá antes que relacioná-los sempre com a teoria da falta de culpa, pelo caminho da não exigibilidade. Tratando-se, por outro lado, de estados de afecto

esténico (como cólera, furor, desejo de luta, etc.), o seu efeito não deve ser já o de excluir a culpa.

Igualmente não deverá considerar-se razão para excluir a culpa um excesso nos meios conscientemente dirigido v. g. ao castigo do primeiro agressor. Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, p. 49.

No caso nº 23-C, pode pôr-se ainda a questão de saber se A intentou criar uma situação de legítima defesa para, impunemente, atingir o agressor S (agressão pré-

ordenadamente provocada). Uma vez que a principal intenção do agente é então a de

atacar o outro indivíduo, não se encontra satisfeito o elemento subjectivo da legítima defesa, a vontade de defesa. Ademais, a defesa não será então necessária por também se não verificar a necessidade de afirmação da ordem jurídica — não há uma defesa do lícito perante o ilícito. Nesse caso, ficaria excluída a legítima defesa e a aplicação do regime do artigo 32º. Do mesmo modo, também se não poderia aplicar o regime do artigo 33º, que supõe a afirmação da legítima defesa.

Se se considerar que a provocação não foi intencional, a legítima defesa não estará excluída. Os dados postos à nossa disposição não permitem porém concluir que A tinha qualquer hipótese de evitar a legítima defesa agressiva. Mas a defesa de A, tal como se processou, não representa, de modo nenhum, o meio menos gravoso para o agressor. A, em vez de visar e atirar na cabeça do antagonista, para conseguir neutralizá-lo, poderia tê-lo visado noutra parte do corpo, sem lhe provocar a morte. Nesta perspectiva, face ao excesso de legítima defesa (artigos 32º e 33º, nº 1), a morte de S é ilícita (artigo 131º), não se encontra justificada, mas a pena pode ser especialmente atenuada (artigo 72º, nºs 1 e 2) perante a provocação injusta e a circunstância de A ter actuado sob a influência de ameaça grave. Em último termo, se se concluir que o excesso na actuação de A resultou de perturbação, medo ou susto, o mesmo não será punido, mas para tanto é necessário que o defendente não deva ser censurado pelo seu excesso.

O tratamento da provocação intencional tem tido as mais variadas respostas na doutrina (cf. Hillenkamp, 32 Probleme, p. 16 e ss.):

i) Há quem entenda que a acção de defesa é justificada por legítima defesa mesmo quando o defendente

provocou intencionalmente a situação. Argumenta-se com a ideia de que o direito não tem que ceder perante o ilícito e que, portanto, o provocador não perde o direito ao exercício da defesa, na medida em que o faz enquanto representante da ordem jurídica. Outros concluem igualmente pelo efeito eximente se o princípio da auto-defesa não se puder impor de outro modo, especialmente se o sujeito não se puder esquivar à agressão. Por sua vez, os partidários da doutrina da actio illicita in causa (aiic) entendem que a provocação não faz desaparecer o direito de defesa e que, portanto, a defesa necessária se justifica — todavia, o "defendente" será responsabilizado pela causação do facto anterior no tempo (actio praecedens), intencionalmente dirigido à execução da acção típica que posteriormente levou a cabo.

ii) Para a teoria do abuso do direito, quem tiver provocado intencionalmente uma agressão, para assim

"legitimação supra-pessoal" (Roxin) de que carece para exercitar o seu papel de representante da ordem jurídica. Noutro entendimento, o provocador renuncia à protecção jurídica, de forma que o seu contra- ataque não integra qualquer defesa. Quem, de antemão, inclui nos seus planos a agressão do adversário renuncia, de forma inequívoca, à protecção de um bem jurídico, agindo sem vontade de defesa.

VI. Interpretação corrente do artigo 32º. Onde se fala do abuso do direito e da

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