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A legítima defesa: pressupostos, requisitos e limites Legítima defesa putativa; erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto Erro

2ª Subsecção Ilicitude.

I. A legítima defesa: pressupostos, requisitos e limites Legítima defesa putativa; erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto Erro

sobre os motivos; error in persona.

CASO nº 23: A e B são velhos amigos do tempo da "tropa", mas não se vêem vai para 20 anos. B vem ao Porto e encontra o amigo no final de uma animada partida de futebol. O facto de cada um "torcer" pelo seu "clube" não impede que A convide o amigo para passar a noite em sua casa e partir no dia seguinte para Lisboa. Entretanto, animados, aproveitam para jantar juntos e beber uns copos. Até que, finalmente, por volta das duas da manhã, apanham um táxi para casa. Chegados, A, por gentileza, dá a dianteira ao amigo que na fraca claridade do "hall" de entrada se vê violentamente agredido com a única "arma" que havia em casa: o rolo da massa. Como é seu timbre, B reage de imediato à ofensa e, para evitar "levar" mais, como tudo indicava, assesta um vigoroso murro no agressor vindo do escuro, que logo cai no chão, desamparado. Era, porém, uma agressora, a mulher de A, que já não se opunha às contínuas escapadelas nocturnas do marido, mas que, estando sozinha em casa e temendo ser assaltada, se munira do que tinha à mão, intentando defender-se do que supunha ser um assaltante.

Punibilidade da mulher?

A mulher de A ofendeu B voluntária e corporalmente, assentando-lhe um golpe com o rolo da massa, pelo que fica desde logo comprometida com o disposto no artigo 143º, nº 1, do Código Penal. Não há dúvida de que, apesar de o local se encontrar envolto na penumbra, a mulher de A sabia que atingia uma pessoa com o golpe e quis isso mesmo. Ainda assim, a mulher de A queria evitar que a sua casa fosse assaltada e agiu com esse propósito, não pensando sequer que estava a atingir o amigo do marido. Trata-se, no entanto, de um "erro" irrelevante, por ser um erro sobre os motivos: a mulher atingiu corporalmente a pessoa que estava à sua frente. É um caso típico de error in persona: no artigo 143º, nº 1, pune-se simplesmente quem ofender o corpo ou a saúde de "outra

pessoa" [sem atender, por ex., às qualidades, à idade ou à saúde desta], e foi isso o que aconteceu.

Poderá a conduta da mulher de A ser justificada por legítima defesa? Para tanto deveria existir uma agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos (artigo 32º). Entre esses interesses ameaçados de lesão por B não se encontrava —numa perspectiva objectiva— a propriedade de A, pois B não lhe pretendia subtrair o que quer que fosse. Ainda assim, pode considerar-se a hipótese de uma violação de domicílio (artigo 190º). Todavia, como A e a mulher viviam juntos nessa casa, qualquer deles tinha o direito de convidar um estranho a entrar e permanecer no domicílio para aí passar a noite. Como B fora convidado por A, não existia qualquer agressão e portanto não se configurava uma situação de legítima defesa. A mulher de A actuou ilicitamente.

Deve contudo notar-se que a mulher de A agiu na suposição errónea de que B era um assaltante —e se tal fosse o caso existiria uma agressão à propriedade e ao domicílio alheios. Para defesa desses valores seria então necessário o emprego do rolo da massa e portanto o uso que dele a mulher de A fez estaria justificado, de acordo com o disposto no artigo 32º.

Ora, uma vez que, assim, a mulher de A actuou em erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto, à situação aplica-se o disposto no artigo 16º, nºs 1 e 2, ficando excluído o dolo. A mulher de A só poderá ser punida por negligência (artigos 16º, nº 3, e 148º, nº 1). Se não se puder afirmar que a mulher de A violou um dever de cuidado, então fica excluída a punição, mesmo só por negligência (artigos 15º e 148º). Punibilidade de B?

Ao agredir a mulher a murro, B ficou desde logo abrangido pelo disposto no artigo 143º, nº 1. B ofendeu corporalmente outra pessoa, e agiu voluntariamente.

No entanto, o comportamento de B está justificado por legítima defesa (artigo 32º). A agressão com o rolo da massa por parte da mulher era ilícita, por não estar coberta por qualquer causa de justificação (artigo 31º). Além de ilícita, a agressão era actual —estava ainda a desenvolver-se quando se deu o contra-ataque de B. A questão que pode ser

levantada é a de saber se a acção defensiva era necessária. Para ser legítima, a defesa há- de ser objectivamente necessária: "o modo e a dimensão da defesa estabelecem-se de acordo com o modo e a dimensão da agressão". A defesa só será pois legítima se se apresentar como indispensável para a salvaguarda de um interesse jurídico do agredido e, portanto, como o meio menos gravoso para o agressor. (Cf. Figueiredo Dias, Legítima

defesa, Pólis). Acontece que B entrava pela primeira vez na casa que, ainda por cima, se

encontrava envolta na escuridão. Consequentemente, não lhe seria exigível supor, naquela quase fracção de segundo, que a agressão viesse da mulher de A e, inclusivamente, que esta estivesse em erro. Como B actuou com vontade de defesa, a ofensa à integridade física da mulher de A mostra-se justificada. B não actuou ilicitamente.

As conclusões que apresentámos sugerem que se pode chegar ao extremo de, não obstante haver duas agressões, nenhum dos autores dessas agressões dever ser sancionado pela sua respectiva conduta. Na apontada perspectiva, quem por erro não censurável pensa exercer legítima defesa expõe-se ao direito de legítima defesa do "suposto" agressor.

Atente-se, todavia, no seguinte modo de encarar a questão. Uma vez que, na hipótese de "legítima defesa putativa" por erro objectivamente inevitável, se não verifica a ratio

supra-individual, o que significa que não está em causa a salvaguarda da ordem jurídica

— não haverá lugar à legítima defesa. No entanto, continua a afirmar-se a ratio individual

de autoprotecção, de autodefesa face a uma agressão que, embora não ilícita, todavia o

agredido não tem o dever de suportar — então, diante de tal agressão, B, ou um eventual terceiro, pode opor-se mediante o direito de necessidade defensivo, que lhe permite o sacrifício de um bem superior, embora (diferentemente da legítima defesa) não muito superior (Cf. Prof. Taipa de Carvalho, p. 187). Aliás, já se viu que tanto o "defendente" como o "agressor" são juridicamente inocentes, como diria a Prof. Fernanda Palma, justificando-se provavelmente o tratamento do caso, ao nível do direito de necessidade defensivo, com referência à ideia de equidade.

Na legítima defesa putativa acontece um fenómeno muito curioso de troca de papéis: aquele que crê defender-se é, na realidade, um agressor; aquele que foi tomado por um agressor acaba, ao fim e ao cabo, por se defender legitimamente de uma agressão real de

que é vítima. E, por paradoxal que pareça, ambos podem ficar isentos de responsabilidade criminal, mesmo que, inclusivamente, provoquem um ao outro graves lesões. Francisco Muñoz Conde, "Legítima" defensa putativa? Un caso límite entre justificación y exculpación, in Fundamentos de un sistema europeo del derecho penal, 1995, p. 183.

II. Protecção individual; afirmação do Direito. A legítima defesa não está à

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