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Interpretação corrente do artigo 32º Onde se fala do abuso do direito e da crassa desproporção do significado da agressão e da defesa.

2ª Subsecção Ilicitude.

VI. Interpretação corrente do artigo 32º Onde se fala do abuso do direito e da crassa desproporção do significado da agressão e da defesa.

CASO nº 23-D: A estava desde o começo da noite de guarda a umas árvores de fruto numa sua pequena propriedade. Acompanhava-o um pequeno cão e tinha consigo uma espingarda de caça. Pela manhã, viu dois homens que subtraíam fruta. A chamou-os e os homens puseram-se em fuga, levando consigo a fruta, uma meia dúzia de maçãs. Não responderam aos avisos que A lhes fazia, ameaçando-os com a arma, para pararem. A não viu outra possibilidade de recuperar a fruta senão disparar um tiro. Ao disparar, A ofendeu corporalmente um dos homens, de forma grave. Considere-se, com ligeira variante, que A era um inválido que utilizava uma cadeira de rodas.

A questão que se coloca é a de saber se A pode ser responsabilizado pela prática, em autoria material, de um crime do artigo 144º (ofensa à integridade física grave). Não há dúvida que houve uma lesão grave provocada com a arma. Pode entender-se que A podia recuperar a fruta dos ladrões mesmo com violência, por via da legítima defesa (artigos 31º, nºs 1 e 2, a), e 32º), já que no caso concreto não tinha outro meio senão o uso da arma. Pode todavia perguntar-se se existia uma agressão actual. Numa certa perspectiva, os ladrões estavam em fuga e a agressão terminara (este não será, contudo, o entendimento corrente, pois os dois homens iam a fugir e levavam consigo a fruta, que ainda não tinham em pleno sossego). Por outro lado: seria ainda admissível este tipo de defesa? Seria relevante o valor da coisa furtada?

De muitos lados, a limitar a necessidade de defesa, exige-se que não haja uma sensível

(escandalosa, crassa) desproporção entre os interesses ofendidos pela agressão e a

defesa, negando-se a defesa a qualquer preço. Na medida em que a defesa constitua resposta proporcionada a uma agressão injusta não há dúvida de que, seja qual for a atitude anímica que acompanha a vontade de defesa, existe autêntica causa de justificação que legitima o acto realizado. Contudo, a importância e a transcendência contidas na concessão a uma pessoa de direitos que inclusivamente se negam ao Estado, como, por exemplo, o de matar outra pessoa, impõem a necessidade de limitar esse direito

individual a certas situações realmente excepcionais (Muñoz Conde, Derecho Penal, PG, 1993, p. 292). Com efeito, se é certo que a legítima defesa visa salvaguardar interesses individuais e com isso a salvaguarda geral do direito, nem sempre estas necessidades individuais e comunitárias têm que ser valoradas de igual maneira, podendo haver casos em que se exclua a protecção individual ou a de um interesse geral, limitando-se ou

excluindo-se o direito de legítima defesa (rectius, restringindo, em certos casos, a

possibilidade de defesa ou condicionando-a à inevitabilidade da agressão: F. Palma, p. 835).

Também entre nós se anotam os recentes ventos da renovação, que pode fazer-se caber sem esforço no rótulo geral das limitações ético-sociais do direito de legítima defesa (Figueiredo Dias, Pressupostos da Punição, in Jornadas, p. 59). Nelas avulta, como já se disse, a recusa de legitimidade da defesa em caso de escandalosa desproporção entre o bem jurídico defendido e o lesado pela defesa, mas também a limitação dos bens que podem ser defendidos à custa da morte do agressor. Invoca-se o artigo 2 II a) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o "abuso de direito" como limite da legítima defesa.

Uma parte da doutrina entende que a morte de uma pessoa só se justifica para defesa da vida, da integridade física e da liberdade, mas nunca para a defesa de coisas ou de bens patrimoniais. O artigo 2 II a) da Convenção ("ninguém pode ser intencionalmente privado da vida, excepto para assegurar a defesa de qualquer pessoa contra uma violência ilegal") dirige-se, no entanto, unicamente às relações Estado-cidadão. Os particulares, que não são destinatários da Convenção, só em casos excepcionais é que podem defender os seus bens com o recurso à força das armas.

Os campos problemáticos estendem-se às agressões realizadas por inimputáveis (pode haver legítima defesa, mas serão frequentes as limitações da necessidade da defesa, impondo-se antes uma "defesa de protecção"); às agressões provocadas por acto ilícito do agredido; às agressões associadas a uma certa relação especial de garantia (como, por ex., entre cônjuges); e às agressões leves, proporcionalmente inofensivas (Eser, Strafrecht I, 4ª ed., 1992, p. 122; C. Valdágua, p. 31).

Estes grupos de situações em que a legítima defesa está sujeita a limitações "ético- sociais" foram especialmente eleitos pela jurisprudência e literatura alemãs. O Prof. Welzel (Das Deutsche Strafrecht, 11ª ed., p. 87), por exemplo, entendia que não era admissível legítima defesa no caso de absoluta desproporção, relacionando a lesão, não com o bem jurídico ameaçado, mas com a irrelevância criminal da agressão. A jurisprudência proclama, com frequência, que não será necessário estabelecer uma relação entre o bem jurídico agredido e o lesado pela defesa; contudo, uma defesa em que o dano causado seja desproporcionado relativamente ao dano ocasionado pela agressão constitui um abuso de direito, e é, portanto, antijurídica.

Na nossa hipótese, caso nº 23-D, a agressão era actual. Os ladrões estavam em fuga e levavam consigo a fruta subtraída, que não largaram. O furto não estava exaurido ou materialmente consumado, a presa não se encontrava em pleno sossego. Será caso de ter presente toda a teoria da permanência da consumação, "que evidentemente permitirá sempre o exercício da legítima defesa” (Prof. Eduardo Correia; Antolisei, p. 257). Também será difícil contestar os restantes requisitos da legítima defesa, sobretudo a necessidade do tiro como a única possibilidade de imediatamente pôr termo à agressão. Ainda assim, face à extrema (crassa) desproporção entre o valor da fruta defendida e o perigo para a vida, provocado pelo disparo, seria de denegar a legítima defesa de A ? Em que termos?

Na interpretação corrente do artigo 32º do Código Penal continua a entender-se, como já repetidamente se acentuou, que o defendente tem o direito de praticar todos os actos de defesa idóneos para repelir a agressão, desde que lhe não seja possível recorrer a outros, também idóneos, mas menos gravosos para o agressor, não estando sujeito a quaisquer limitações decorrentes da comparação dos bens jurídicos, interesses ou prejuízos em causa (C. Valdágua, p. 54). O Prof. Figueiredo Dias (Legítima defesa, cit.) escreve que "a L.D., enquanto causa de exclusão da ilicitude, atribui ao agente um autêntico "direito de defesa", cujo exercício, à semelhança de qualquer outro direito subjectivo, se tem de submeter aos limites do abuso de direito, regulado no artigo 334º do Código Civil. Neste preceito consagra-se, ao estilo de cláusula geral, um princípio fundamental do direito, que ultrapassa o domínio privatístico do diploma em que se insere. De acordo com ele,

também a L. D. encontraria determinados limites "[...] impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito", circunstância que levaria a excluir do seu âmbito as hipóteses em que, atentos os critérios ético-sociais reinantes, se verificasse uma manifesta e gritante desproporção dos interesses contrapostos".

Existe hoje unanimidade sobre a ilegitimidade da defesa abusiva. "A necessidade

da defesa deve ser negada sempre que se verifique uma insuportável (do ponto de vista jurídico) relação de desproporção entre ela e a agressão: uma defesa notoriamente excessiva e, nesta acepção, abusiva, não pode constituir simultaneamente defesa necessária". Prof. Figueiredo Dias, Textos, p. 199.

Certos aspectos inovadores constituem [em certo sentido], ao nível da legítima defesa, "reflexo do trânsito de uma concepção marcadamente individualista para uma

mundividência social ou solidarista, que se observa no âmbito criminal" (Prof.

Figueiredo Dias). Os autores alemães têm, com efeito, procurado introduzir limitações

de sentido ético-social em atenção à solidariedade, à consideração para com o

atacante, sem que, todavia, as opiniões sejam uniformes. Deve aliás notar-se que a solidariedade é um “corpo estranho” (Naucke, StrafR., p. 298 e ss.; Kühl, StrafR., p. 179) ao direito penal, ainda que, em alguns lugares, se não excluam os correspondentes deveres. Recorde-se o disposto no artigo 200º e os fundamentos do estado de necessidade justificante (artigo 34º), que apontam para a solidariedade devida a quem se encontra em situação de necessidade. Em sentido alargado, nas tentativas de limitação ético-social argumenta-se com os correspondentes princípios legitimadores: a tutela dos

interesses individuais ameaçados pela agressão e a salvaguarda da ordem jurídica,

registando-se situações que exigem o recuo de ambos os princípios e mesmo a exclusão da legítima defesa.

No caso nº 23-D há uma crassa desproporção do significado da agressão e da defesa. Face à diminuta relevância da agressão, expressa pelo insignificante valor da fruta subtraída (uma meia dúzia de maçãs), e ao também diminuto prejuízo patrimonial do ameaçado, a medida defensiva tão drasticamente adoptada não se justificava nem por uma ideia de defesa nem pelo princípio da salvaguarda geral do direito, porquanto era

abusiva. Mas era abusiva justamente por via dessa crassa desproporção, ainda que no caso tivesse sido utilizado o meio necessário.

A é autor material de um crime do artigo 144º do Código Penal. Estão reunidos os

correspondentes elementos objectivos e subjectivos. Não opera a justificação por legítima defesa nem qualquer outra. Mas não se exclui que a pena possa ser especialmente atenuada nos termos do artigo 72º, nºs 1 e 2.

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