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1. A TEORIA DO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE E A MATERIALIDADE

1.4 Constituição como sistema normativo de regras e princípios

1.4.1 Considerações acerca da distinção entre regras e princípios

Para Riccardo Guastini106, o constitucionalismo moderno valoriza a aplicação direta

dos princípios constitucionais e prossegue, assim, que “todo los principios generales y las normas programáticas puedem producir efectos directos y ser aplicadas por cualquier juez en ocasión de cualquier controvérsia”.

Como resumo, Bonavides sintetiza que a teoria dos princípios chega à fase atual pós- positivista consolidada no campo concreto e positivo do direito e não mais como especulações metafísicas; com o deslocamento dos princípios a esfera da filosofia para ciência jurídica e o

102 BULOS, Uadi Lammêgo. Op. cit. p. 109. 103 Op. cit. p. 168-169.

104 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit. p, 169.

105 Não obstante entendermos o caráter imperativo da constituição como lei, é válido o pensamento do jurista

para expressar a abertura, ainda que limitada, do texto constitucional, o que colabora para o fortalecimento de uma teoria material. HESSE, Konrad. Temas fundamentais de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 9

reconhecimento da sua positividade e concretude por obra das constituições, o que veio para

fortalecer ainda mais sua hegemonia107.

Barroso108 entende que os princípios podem ser classificados, do ponto de vista

material, em: fundamentais, gerais e setoriais. Os princípios constitucionais fundamentais, para o autor, estariam ligados às decisões políticas mais importantes do Estado, como o Estado Democrático de Direito e a dignidade da pessoa humana. De certa forma, percebe-se que tais princípios relacionam-se ao próprio fundamento do nosso Estado, conforme esculpido no art.1º da Lei Maior. Em continuação, os princípios constitucionais gerais seriam pressupostos ou especificações dessas decisões e o autor cita o exemplo do princípio da isonomia e da legalidade que, por sua vez, seria uma categoria de maior densidade normativa do que a anterior. E, por último, os princípios setoriais norteariam determinadas áreas abarcadas na Constituição, como a livre concorrência ou a moralidade da Administração Pública109.

Para Alexy110, os princípios seriam mandamentos de otimização, os quais significam

que “são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados”, não dependendo somente das circunstâncias fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. Ou seja, diferentemente das normas as quais ou são válidas ou não, sem meio termo, os princípios, no caso de colisão, podem admitir satisfação em graus variados.

Assim, conforme Alexy, uma das maiores distinções entre ambos ficaria patente quando houvesse coalisão entre normas e entre princípios. Os “princípios exigem que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas

existentes”111, ou seja, o conflito pode ser resolvido pela sopesação de princípios, pela

ponderação, ao passo que nas normas-regras ou se aplica a sua prescrição ou a mesma perderia o seu caráter impositivo no caso concreto, ressalvada as cláusulas de exceção.

Outro critério distintivo para Alexy112 seria pelo fato de os princípios serem

relativamente gerais e com conteúdo axiológico mais facilmente identificado do que as regras. Desta forma, “como razões decisivas para inúmeras regras, os princípios têm sua importância

substancial fundamental para o ordenamento jurídico” 113.

107 BONAVIDES, Paulo. Op. cit. p. 294.

108 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e

a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 317-318.

109 BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 317-318. 110 Op. cit. p. 90-91.

111 ALEXY, Robert. Op. cit. p. 104. 112 Op. cit. p. 108.

Por derradeiro, outro critério diferencial para Alexy114 seria pelo fato de os princípios serem relativamente gerais e com conteúdo axiológico mais facilmente identificado do que as regras; “como razões decisivas para inúmeras regras, os princípios têm sua importância substancial fundamental para o ordenamento jurídico”.

Dworking115, de outra banda, sustenta que a distinção entre princípios e regras seria de

natureza lógica. Nesta senda, aduz que “os dois conjuntos de padrões [regras e princípios]

apontam para as decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem”.

Segundo Dworking116, de modo semelhante ao colocado por Alexy, as regras no caso

concreto se sujeitam ao binômio validade/invalidade, não havendo o que sopesar; é a regra que o autor apelida de all or nothing (“tudo-ou-nada”):

As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é valida, e neste caso em nada contribui para decisão.

Em adição, Dworking afirma que mesmos aqueles princípios que “mais se assemelham a regras não apresentam consequências jurídicas que se seguem automaticamente

quando as condições são dadas”117. Distingue, portanto, que os princípios, mesmos os que

mais se aproximam de regras, não têm o seu conteúdo plenamente realizável em abstrato, isto é, o princípio aponta para uma direção, um norte, mas necessita ser concretizado por uma decisão particular.

Dworking exemplifica com o princípio de que “nenhum homem pode beneficiar-se de seus próprios delitos”, que seria decorrente do próprio brocado de que ninguém pode se beneficiar da sua própria torpeza. O autor ratifica que o princípio não pretende “estabelecer condições que tornem sua aplicação necessária. Ao contrário, enuncia uma razão que conduz

o argumento em uma certa direção, mas [ainda assim] necessita de uma decisão particular”118.

Nesta mesma linha de raciocínio de Dworking, Raul Machado Horta considera que os princípios imporiam uma direção a ser tomada pelos órgãos do Estado, ao passo que as regras regulariam a organização e o funcionamento das entidades e suas atividades:

O princípio constitucional impõe aos órgãos do Estado a realização de fins, a execução de tarefas, a formulação de programa. A regra se introduz no domínio da organização e do funcionamento de órgãos, serviços e atividades do Estado e do

114 Op. cit. p, 108-109. 115 Op. cit. p. 39. 116 Op. cit. p. 39. 117 Op. cit. p, 40. 118 Op. cit. p. 41.

Poder. É nesse plano que se localizam as regras ou normas de competência, de organização, de procedimento e de garantias.”119

Em continuação ao pensamento de Dworking, ele aponta que outra distinção entre princípios e regras seria a de que os princípios possuem uma dimensão de importância que pode ser confrontada entre eles, como podemos ilustrar com o direito à vida e à liberdade religiosa que, por vezes, podem ser opor em uma lide. Dessa forma, para solução de uma controvérsia o peso de cada princípio, a sua força, é levado em conta, o que pode gerar polêmica. É como posiciona o autor:

Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou da importância. “Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma politica particular é mais importante que outra frequentemente será objeto de controvérsia.120

Conclui, por essa lógica, que as regras, diferentemente dos princípios, não teria a mesma dimensão axiológica, não se podendo dizer, de modo geral, que uma é mais importante do que outra, dentro do sistema de regras. O que pode ter, como adverte Dworking, é que uma regra ser considerada mais relevante do que outra porque regula a parcela maior de um fato ou desempenha um papel maior na regulação do comportamento, mas dentro do sistema de regras não haveria a escolha de determinada regra por ser mais importante na solução do conflito:

Já as regras “pode ser mais importante do que outra porque desempenha um papel maior ou mais importante na regulação do comportamento. Mas não podemos dizer que uma regra é mais importante que outra enquanto parte do mesmo sistema de regras, de tal modo que se duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua importância maior.”121

Celso Ribeiro Bastos, no entanto, entende que apesar de se considerar o princípio como detentor de certa peculiaridade, como o fato de possuir maior carga axiológica ou generalidade, não o coloca em posição acima ou além do direito, por se tratar de norma jurídica:

(...) fica claro, pois, que, nada obstante as singularidades que cercam os princípios, estes não se colocam, na verdade, além ou acima do direito. Juntamente com as normas, fazem parte do ordenamento jurídico.

Fixada, portanto, esses caracteres distintivos, nos interessa dizer que os princípios, assim como as regras, possuem eficácia normativa e devem ser respeitados pelas leis e normas inferiores quando estão englobados no conceito de constituição.

119HORTA, Raul Machado. Normas centrais da constituição federal. Revista de informação legislativa,

Brasília, ano 34, n. 135, p. 175-178, jul/set., 1995.

120 Op. cit. p. 43/43. 121 Op. cit. p. 43

Todavia, ainda que se possa alegar que ambos são normas e os mesmos fazem parte da constituição - considerada como um sistema -, há de se destacar que os princípios, como alertou Dworking, possuem uma carga axiológica maior e, portanto, geralmente são adotados nas constituições, declarações ou nos instrumentos internacionais para direcionar, balizar, a conduta e atividades do Estado, a exemplo da comentada Declaração de Direitos de Homem e do Cidadão que elencou uma série de princípios.

Outro exemplo, dessa vez, com um instrumento internacional, que foi o Pacto São José da Costa Rica, que trouxe no seu art. 8º o princípio (penal) da não autoincriminação, que poderia ser considerado implícito na constituição de 1988 por decorrer do princípio da não culpabilidade (art.5º, LVII, CF) e do direito ao silêncio (art.%, LV).

Estabelecida essas diretrizes, por oportuno, faz necessário observar que, por conta da dimensão de peso que possuem os princípios, é de se perceber que instrumentos não constitucionais que concretizem valores fundamentais para a sociedade podem estar repletos de princípios que sejam materialmente constitucionais. Isso porque, como se verá adiante, a constituição não é reduzida apenas à constituição escrita, nem tampouco se encontra fechada. De outro lado, a compreensão da materialidade vai engendrar a inclusão de novos referenciais

valorativos e novos princípios122.