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Notas sobre o constitucionalismo francês: da revolução burguesa à Constituição de

3. O SURGIMENTO DO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE

3.3 Contexto de surgimento do bloco de constitucionalidade: o constitucionalismo francês

3.3.1 Notas sobre o constitucionalismo francês: da revolução burguesa à Constituição de

representou um contexto mais favorável para apreciação da constitucionalidade221.

Por conseguinte, uma análise um pouco mais minuciosa sobre o constitucionalismo francês e sobre a criação e estrutura do conselho francês irá permitir que se identifique o porquê da decisão ter sido considerada tão fundamental para aquele país.

Além disso, um olhar sobre o constitucionalismo francês fornecerá subsídios para que se entenda melhor o que propõe originalmente a teoria e se tal possibilidade se manteve a mesma ou se sustenta quando inserida em outros ordenamentos, como na Espanha, Itália e Brasil.

3.3.1 Notas sobre o constitucionalismo francês: da revolução burguesa à Constituição de 1958.

Para Jorge Miranda 222, “a grande diferença entre o sistema constitucional francês e os

sistemas constitucionais britânicos e americanos reside, in primis, na sua origem revolucionária e, depois, na vocação universalista de difusão de ideias que lhe está associada”.

Na França, o constitucionalismo moderno teve como estopim a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e concretizou-se com a promulgação da primeira carta magna francesa: a Constituição de 1791. Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, o constitucionalismo é um movimento político e jurídico que “visa estabelecer em toda parte regimes constitucionais, quer dizer, governos moderados, limitados em seus poderes,

submetidos a Constituições escritas”223.

Em análise à herança da Revolução Francesa, que impulsionou o constitucionalismo, Bobbio afirma que os princípios da Declaração de 1789 “constituíram, durante um século ou

mais, a fonte ininterrupta de inspiração ideal para os povos que lutavam por sua liberdade”224.

O constitucionalismo francês moderno surgiu, portanto, com a revolução burguesa, com os seus ideais de liberdade, fraternidade e igualdade, que se contrapôs ao regime Absolutista, marcado pela figura do monarca e da concentração dos poderes em sua mão, impondo uma limitação de poder e invocando a necessidade de constituições escritas. As leis eram instrumentos de subserviência dos súditos, como ensina Koselleck, “a legalidade destas

221 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Justiça constitucional: garantia ou déficit da rigidez constitucional?.

LEITE, José Adércio Leite (org). Crise e desafios da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.123.

222 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo I. Coimbra: Coimbra editora, 1990, p.156-157. 223 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p.7. 224 BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 129.

leis não residia na qualificação do seu conteúdo, mas exclusivamente na sua origem, ou seja,

o fato de serem a expressão da vontade do poder soberano”225.

Jorge Miranda, em suas lições, nos traz a Revolução Francesa como verdadeiro marco de quebra do antigo regime absolutista, exprimindo uma prática político-constitucionalizada:

A revolução francesa marca a ruptura com o Estado absoluto. É com ela, e não obviamente com a transição inglesa para o sistema parlamentar ou com a Revolução americana, que melhor se revela contraposição entre Estado absoluto e Estado constitucional, representativo ou de Direito. E, durante ela, vão exprimir-se, nas práticas político- constitucionais experimentadas, alguns dos contrastes de formas e sistemas de governo que irão marcar as suas futuras vicissitudes.226

Ainda segundo os ensinamentos de Jorge Miranda, as constituições francesas podem ser divididas nas seguintes categorias: Constituições revolucionárias (as de 1791,1793 e a de 1795); Constituições napoleônicas (as de 1799, 1802 e a de 1804); Constituições da restauração (Carta constitucional de 1814 e a de 1830); Constituições da II república e do II império (a de 1848, 1852 e a de 1870); e, por fim, as constituições da III, IV e V república (a

de 1875, 1946 e a de 1958)227.

Logo, de forma semelhante ao direito brasileiro, o constitucionalismo francês é marcado por certa instabilidade jurídica e política, com alternâncias de regimes democráticos e autoritários, o que fica patente pela quantidade de constituições editadas.

Marcelo Neves entende que as Constituições “instituem uma nova estrutura

política”228, ou seja, decorrem de mudanças de Poder, o que explica o fato de os franceses

terem tidos mais de dez constituições.

Ivo Dantas, em uma ótica da sociologia jurídica, crê que: “A constituição é um reflexo

da sociedade”229. E que a “dinâmica constitucional” seria a tentativa de adaptar a constituição

“às novas realidades-valores sociais, o que, quando inexistente, dará margem ao hiato constitucional230ou, se desejarem, revolução (...)”231.

A Revolução Francesa, parafraseando o ilustre professor, seria, pois, a consequência do hiato constitucional entre o antigo regime e as aspirações burguesas. Desta forma, “a

225 KOSELLECK, Reinhart. Op.cit.p.35 226 MIRANDA, Jorge. Op.cit. p.157. 227 MIRANDA, Jorge. Op.cit. p.158-159.

228 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes,2009, p.21. 229 DANTAS, Ivo. Poder Constituinte e Revolução. Bauru (SP): Jalovi, 1985, p.44.

230 Ivo Dantas foi quem cunhou a expressão “hiato constitucional” que corresponde às situações que,

resumidamente, o texto escrito da constituição está destoante do contexto social. Em suas palavras: Atente-se para um detalhe: quando os valores sociais já não estão representados no texto constitucional e não há uma tentativa de adaptar este àqueles, defrontamo-nos com aquilo que alguns autores chamam de “desconstitucionalização”, mas que nós, dado ao tratamento sociológico que estamos dedicando ao tema, preferimos chamar de “hiato constitucional”. DANTAS, Ivo. Op.cit.p.34.

revolução, antes de tudo, deve ser encarada como um tipo de hiato constitucional, isto é, como

uma quebra no processo político-histórico normal da organização política”232.

Barroso, por outro lado, afirma que “a estabilidade institucional jamais seria a marca

do constitucionalismo francês”233.

Ainda segundo Jorge Miranda, “duas são as causas para a instabilidade político- constitucional francesa: causas de ordem geral e filosófico-jurídicas; sobretudo, causas de ordem política e social”. Para o autor “as primeiras estão ligadas à influência do pensamento

racionalista num meio jurídico, intelectual e político favorável”234.

Miranda sustenta, por conseguinte, que essa oscilação político-normativa da França também justificará a alternância entre a doutrina de Montesquieu e a de Rousseau na história constitucional francesa. Ele explica que:

Montesquieu constrói a sua doutrina pensando na liberdade; a separação de poderes é uma garantia da liberdade, porque, contra o poder só o poder. (...)

Diversamente, Rousseau procura a máxima pureza da democracia. Há um só povo; logo, deve haver unidade do seu poder; e a vontade do povo não se representa. A liberdade encontra-se no exercício do poder diretamente pelo povo, não por quem se pretenda seu representante. (...)

Por isso mesmo, como bem se sabe, Montesquieu e Rousseau acham-se no cerne do conflito filosófico-político de liberalismo e democracia (só ultrapassado no século XX). 235

Dessa maneira, a doutrina de Montesquieu vai ser construída em torno da separação dos poderes, ao passo que a de Rousseau na democracia, na vontade soberana, sendo ambas cerne do conflito liberalismo e democracia, apenas ultrapassada no século XX.

De outra banda, as duas doutrinas vão contribuir para que na França a liberdade e o bem-estar fossem associados à rígida separação dos poderes e pela sacralização da lei. Prevalecia, por conseguinte, o entendimento de que os tribunais constitucionais não poderiam apreciar a constitucionalidade das leis justamente pela ideia de que a lei era a expressão da soberania do povo e pela aceitação extrema da teoria da separação dos poderes, “não se admitindo que órgãos estranhos à função legislativa, os tribunais, venham apreciar a validade das leis” e da reação contra a “prática dos parlamentos (judiciais) do Ancient Regime, o que

levou.até.a.proibição, por.lei, da apreciação jurisdicional da constitucionalidade..Miranda

destaca que o decreto de 16 de agosto de 1790 prescreveu que “ os tribunais não poderão tomar parte, directa ou indirectamente, no exercício do poder legislativo, nem impedir ou

232 Convém lembrar que apesar da primeira constituição escrita da França ter ocorrido apenas em 1791, do ponto

de vista sociológico” toda organização política tem sua constituição” (DANTAS, Ivo. Op.cit.p.21). DANTAS, Ivo. Op.cit. p47.

233 BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo. São Paulo: Saraiva,2010,p.28 234 MIRANDA, Jorge. Op.cit.162.

suspender a execução dos decretos de corpo legislativo sancionado pelo rei, sob pena de

prevaricação”236.

Oswaldo Palu doutrina que na época da revolução houve a tentativa de criar um órgão

político para exercer o controle jurisdicional, porém a ideia foi fortemente rejeitada237.

Apenas com a Constituição de 1799, institui-se um controle de constitucionalidade, mas este era exercido pelo Senado. Tal sistema foi um fracasso total, “deixando tal Senado de anular atos inconstitucionais de Napoleão, posto que o Imperador ‘(...) dispunha de meios de pressão

singularmente persuasivos: títulos, condecorações, doações’”238.

A constituição da IV República (Carta de 1946) confiou a um Comité Constitutionnel, conforme Cappelletti, um poder bastante limitado de controle de constitucionalidade. Esse

controle era apenas preventivo, ou seja, antes da promulgação da lei239.

A problemática de proibição da análise da constitucionalidade é esclarecida por Ivo Dantas pelo fato de que a “(...) constitucionalidade das leis, pelo fato de serem estas oriundas de um poder que representa a soberania do povo e que, por isso mesmo, não deveria ter os

seus atos julgados por um outro poder (no caso, o Judiciário)”240.

Todavia, Palu entende que a exaltação à supremacia do parlamento foi mera consequência da revolução que se insurgiu contra a tirania do Executivo e ao privilégio do Judiciário241.

Cappelleti compreende o fenômeno do controle de constitucionalidade francês sobre dois aspectos: o histórico, decorrente da revolução francesa que, irresignada contra os abusos absolutistas, desenvolveu uma aversão aos juízes do antigo regime, conforme já relatado; e pela razão ideológica, encampada pela doutrina de separação de poderes de Montesquieu, em

sua vertente mais rígida, que considerava incompatível qualquer interferência dos juízes242.

No mesmo sentido Poletti entende que essas duas ordens de motivo – histórica e ideológica – “explicam o afastamento de qualquer controle judiciário, bem como a própria existência da

jurisdição administrativa na França”243.

236 MIRANDA, Jorge. Op.cit.165-166.

237 Os franceses viam com desconfiança as figuras dos juízes, vistos como relacionados ao Antigo Regime.

Como Palu adverte, estava na “lembrança dos revolucionários os abusos que os juízes do Ancient Régime praticavam, especialmente as Cortes Superiores (Parlements), que consideravam seu oficio como um direito patrimonial (...).PALU, Oswaldo Luiz.Op.cit.p.97-98.

238 PALU, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade: conceito, sistemas e efeitos. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 1999,p.97.

239 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto

Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1984,p.95.

240 DANTAS, Ivo. Instituições de direito constitucional brasileiro. Curitiba: Juruá, 1999, p. 190- 191. 241 PALU, Oswaldo Luiz. Op.cit.p.98.

242 CAPPELLETTI, Mauro.Op.cit.p.96-97.

Esse dogma da soberania da lei, tida esta nos moldes rousseuniano de lei como instrumento de vontade geral, foi rompido com a Constituição de 1958 que instituiu o

Conselho Constitucional244.

A Constituição de 1958 foi decorrente, segundo Barroso, do desprestígio da Constituição de 1946, alavancada pela crise da Argélia, colônia francesa. O general de Gaulle, considerado herói da II Guerra, liderou os movimentos para elaboração da nova

Constituição245.

Em termos gerais, a constituição de 1958 é sintética, sendo constituída pelo Preâmbulo

e por pouco mais de 100 artigos. Ela foi revista em 1962246 e sua característica principal é

limitar o parlamentarismo e reforçar, sobretudo, o papel do Presidente da República247. Como

ressalta Louis Favoreu, a constituição francesa contém eminentemente disposições relativas à organização e funcionamento dos poderes públicos, com poucas regras relacionadas a direitos

e liberdades fundamentais248.