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Considerações sobre o bloco de constitucionalidade francês como incentivador de uma

3. O SURGIMENTO DO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE

3.5 Considerações sobre o bloco de constitucionalidade francês como incentivador de uma

A nova postura adquirida pelo Conselho Constitucional da França, em especial após a decisão de 16 de julho de 1971, que alargou o bloco de constitucionalidade francês, deu, então, nova visão ao constitucionalismo daquele Estado, afastando-o do dogma exegético.

Com isso, passou-se a apreciar uma Constituição Jurisprudencial281, cujo pilar baseia-se em

uma hermenêutica vitalista.282 Sobre a decisão do Conselho, José Oliveira Baracho sustenta

que representou uma cisão no direito público francês pela reafirmação do direito jurisprudencial:

Houve o rompimento dos esquemas de Direito Público Francês, pelo qual a jurisprudência cria direito em especial o Direito Constitucional. Por muitos anos o positivismo era contra essa afirmação, que colocava a jurisprudência como fonte do

273 CARPIO MARCOS, Edgar.Op.cit.p.86. 274 FAVOREU, Louis.Op.cit.p. 53-54.

275 França, Conselho Constitucional, DC 89-154 de4 de julho de 1989. 276 França, Conselho Constitucional, DC 77-87 de 23 de novembro de 1977. 277 França, Conselho Constitucional, DC 77 -87 de 23 de novembro de 1977.

278 DC 83-165 de 20 de janeiro de 1984 que admitiu a independência dos professores universitários e a recente

QPC (questão prioritária de constitucionalidade) nº2011-134 de 17 de 17 de junho de 2011 que reconheceu a liberdade dos professores pesquisadores.

279 DC 90-285 de 18 de dezembro de 1990.

280 DC – 96-378 de 23 de julho de 1996 e DC 224 de 23 de julho de 1987, sendo esta última trazida por

FAVOREU. Op.cit.

281 É de Baracho a expressão. Menciona que essa criação de normas pelos juízes seria o novo paradigma do

direito constitucional: direito constitucional jurisprudencial.Op.cit.p.109 e 117.

282 Hermenêutica vitalista, significa uma hermenêutica voltada para dinâmica da sociedade e do contexto fático

direito. Entendia-se que não podia haver mais fontes do direito, sustendo-se que as que estavam constitucionalmente determinadas, e não outorgada, pela Constituição ao juiz, poderes para criar direito. (p.124)

Jorge Miranda visualiza que a força jurídica formal da constituição na França não envolvia, até há pouco tempo, todos os corolários lógicos comportáveis dentro do sistema

jurídico283. Argumenta que “a supremacia da Constituição não era até há alguns anos um

princípio jurídico operativo, determinante da invalidade das leis com ela incompatíveis”284,

tendo em vista que a constituição francesa, a seu ver, teria a função de ser lei escrita ao serviço dos direitos e liberdades e da separação dos poderes. Fundamenta que o artigo 16º da

Declaração de 1789285 consubstanciaria o entendimento de que a constituição seria lei para

concretizar a separação dos poderes e a liberdade dos cidadãos, em um sentido mais rígido, formalista-positivista.

Compreende Jorge Miranda286 que a ideia de lei como expressão geral, o culto à

separação estrita dos Poderes e as experiências no Ancien Regime culminaram na restrição da apreciação jurisdicional da constitucionalidade na França e, por isto, esta decisão [leading case do bloco de constitucionalidade] representou uma espécie de “golpe revolucionário” ao constitucionalismo francês marcado por um positivismo exegético e de cultivo ao dogma de

soberania do Parlamento287. Inocêncio Mártires Coelho considera que o Conselho

Constitucional, na célebre decisão de 1971, conseguiu “numa só penada” aumentar o seu poder e prestígio e dobrar o tamanho da Constituição de 1958, o que contribui para os

comentários que se tratou de uma espécie de revolução ou golpe de estado288.

Como cediço, fazendo-se uma breve retomada histórica, a Revolução Francesa foi um contraponto ao Estado absolutista que, conforme Reinhart Koselleck, contou “com o apoio de magistrados e militares, o Estado dos príncipes forma uma esfera de supra-religiosa e racional (...)”. Além de que na esfera política, “os monarcas procuravam extinguir ou neutralizar todas

as instituições autônomas”.289

Da separação das esferas morais e políticas, segundo Koselleck, surgiu a razão do estado Absolutista, que criou “um espaço neutro para a técnica política, em que a vontade do

283 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional.Tomo I Coimbra: Coimbra editora, 1997, p.167 284 Op.cit.

285 Brasil, Constituição Federal, Diário Oficial da União de 05 de outubro de 1988, Artigo 16º- Qualquer

sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.

286 Op.cit.p.167

287 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Justiça constitucional: garantia ou déficit da rigidez constitucional?.

LEITE, José Adércio Leite (org). Crise e desafios da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.123-124.

288 Op.cit.p.33

289 KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro:

príncipe é a única lei. Nesse Estado, racional é apenas a legalidade formal das leis, não o seu

conteúdo”290. Em outras palavras “a legalidade destas leis não residia na qualificação do seu

conteúdo, mas exclusivamente na sua origem, ou seja, o fato de serem a expressão da vontade

do poder soberano”291.

O homem medieval era visto sob dois primas: do súdito e do cidadão. Logo, como súdito não se podia cogitar direitos subjetivos em face do Estado porque este se concretizava na forma do soberano, havendo o dever de obediência. Como cidadão, pregava-se uma política neutra, distante da moral, em que “a instância tornava-se apenas uma instância de

controle do dever de obediência”292.

Diante desse cenário, o Iluminismo valorizou a autonomia privada e a positivação dos direitos subjetivos em relação ao Estado. A lei era vista como instrumento de segurança jurídica e de controle de interpretação, logo a mesma deveria ser rigorosamente aplicada, com o intuito de que titulares do poder não a malversassem. Os magistrados eram vistos como ligados ao antigo regime, então seus poderes de interpretação eram vistos com desconfiança. Sobre a Revolução Francesa, Zagrebelsky sustenta que “el derecho se ha convertido sólo en ley y la ley sólo en poder.”, ao passo que o positivismo seria “ la reducción del derecho sólo a ley positiva, impedía cualquier otra solución diferente de la de colocar otra ley, la ley más alta”293.

Oswaldo Palu, sobre o controle jurisdicional-político da França, aduz que: “em realidade, na França, e esse é o aspecto cometimento de quase todos os textos constitucionais,

parece que não se confia nos juízes para atribuir-lhes a jurisdição constitucional”294.

Na mesma linha de raciocínio, Pegoraro observou que “el parámetro de las decisiones aparecía limitado, no comprediendo más que el texto de la Constitución entendido em sentido estricto, com exclusión, pues, de la normativa que disciplina la libertad, apenas aludida em el corpus”295.

Levando-se então esse contexto histórico, é de se perceber que a transição ocorrida na França entre o Absolutismo ao Estado Liberal veio acompanhada de uma valorização do

290 KOSELLECK, Reinhart. Op.cit. p.33. 291 KOSELLECK, Reinhart.Op.cit.p.35 292 KOSELLECK, Reinhart.Op.cit.p.37

293 ZAGREBELSKY, Gustavo. La ley, el derecho y la constitución. Revista Española de Derecho

Constitucional. Año 24. Núm. 72, p.11-24, Set-Dez 2004.

294 PALU, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade: conceitos ,sistemas e efeitos. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 1999, p.97.

295 Tradução livre: O parâmetro das decisões aparecia limitado, não compreendendo mais que o texto da

constituição entendido no sentido estrito, com exclusão, pois, da normativa que disciplina a liberdade, apenas alidadida no corpus. PEGORARO, Lucio. La circulación, la recepción y la hibridación de los modelos de justicia constitucional. Anuario iberoamericano de justicia constitucional, Madrid, Nº. 6, p. 393-416. , 2002.

positivismo jurídico, ao princípio da legalidade estrita e da restrição – também se pode dizer desconfiança - do controle de constitucionalidade por órgão distinto do parlamento.

Sobre o positivismo jurídico, como foi o decorrente do regime francês após a queda do

antigo regime, Bobbio296 entende que teria sido grande colaborador para o confinamento da

Jurisprudência entre a circunferência da Hermenêutica jurídica, e de uma Hermenêutica

subordinada às disposições dos artigos do Código297. Em outras palavras, há o excesso de

valorização da interpretação literal, que deve ser seguida rigorosamente, com o escopo que se procedendo dessa forma, ou seja, com extrema fidelidade à letra de lei, evitar-se-ia abuso de poder ou ofensa aos direitos individuais.

O Estado de Direito francês, dessa maneira, como lembra Walber de Moura Agra, ficou caracterizado como o apogeu do princípio da legalidade, o État Légal, que adotado de

maneira radicalizada298, acabou por restringir a atuação do Conselho Constitucional.

O Conselho Constitucional francês, então, utilizando-se do seu poder de interpretação deu um passo importante na expansão da Constituição, se desvinculando das amarras do positivismo, pois, além de recriar o sentido da constituição por uma abertura a regras e princípios jurídicos (eficácia horizontal) constantes em outras disposições, atribuiu aos mesmos a condição de paradigma de controle ao equipará-lo a disposições supralegais (eficácia vertical), alargando materialmente e formalmente as disposições constitucionais.

Nas lições de Lênio Streck, esta hermenêutica implicou, por outro ângulo, a superação da Teoria das Fontes no direito constitucional, uma vez que esta apenas considera as regras positivadas na Magna Carta como sendo passíveis de serem utilizadas nas interpretações. Nas

palavras de Streck299:

[...] a teoria positivista das fontes vem ser superada pela Constituição; a velha teoria da norma dará lugar à superação da regra pelo princípio; e o velho modus interpretativo subsuntivo-dedutivo – fundado na relação epistemológica sujeito-objeto – vem a dar lugar ao giro lingüístico-ontológico, fundado na intersubjetividade.

Houve a quebra do padrão imposto (pelo positivismo) de taxatividade das fontes,

segundo José Acosta Sanchez300, o qual dizia que “no puede haber más fuentes de derecho, se

sostenía, que las que están constitucionalmente determinadas y no habiendo otorgado la Constitución al juez poder para crear derecho, el juez no puede crearlo”.

296 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone, 1995, p. 88. 297 BOBBIO, Norberto. Op. cit., p.88.

298 AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, p.42-43, 2012.

299 STRECK, Lenio .A atualidade do debate da crise paradigmática do direito e a resistência positivista ao

neoconstitucionalismo. RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos. Bauru, v. 40, n. 45, p. 257-290, jan./jun. 2006.

300 SANCHEZ, José Acosta. Transformaciones de la Constitción em el siglo XX. Revista de Estudios Políticos

Uma das características de se visualizar uma pluralidade de fontes, vai dizer

Engelmann301, é considerar além da lei no seu sentido mais lato, com ênfase na constituição,

também os princípios, tratados internacionais e a jurisprudência.

De outro lado, o reconhecimento de valor constitucional às cláusulas não integrantes formalmente ao corpo constitucional fez com que a justiça constitucional francesa

aproximasse o constitucionalismo francês à ideia americana de living constitucional302. A

ótica do Direito Constitucional foi acrescida da necessidade de permanente atitude da corte constitucional em atualizar o sentido da constituição e expandir sua interpretação para absorção de novos direitos. Nas palavras de Baracho: “O Conselho Constitucional, no uso do seu poder de interpretação, recria permanentemente a Constituição. Ela se converte em um

espaço vivo, aberto à criação contínua de direitos e liberdades”303.

Fernando Coelho defende que “essas posturas engendraram a inclusão de novos referenciais valorativos e novos princípios, que apontavam para o futuro, dando-se dimensão

perspectiva para a eficácia constitucional”304. Ou seja, houve um resgaste a fundamentação

moral das normas, valorizando-se a integração constitucional.

Por conseguinte, restou cristalizado que na D-44 de 16 de julho de 1971 (bloco de constitucionalidade) o Conselho rompeu com a cultura pós-absolutista da exacerbação do princípio da legalidade, como difundido pelo positivismo, e da restrição do seu papel de intérprete constitucional, como herança da Revolução Francesa, motivo que foi considerado uma espécie de “golpe”.

De outro lado, pelo fato do contexto que surgiu na França, como exposto, nos outros países o bloco de constitucionalidade terá importância, componentes e até mesmo função diferenciada.

Na França, a sua importância residiu, por um lado, em incorporar os direitos fundamentais não constantes na sua constituição, realçar a possibilidade de uma hermenêutica menos exegética e, por outro, discutir que determinadas normas possuem valor constitucional. Por conseguinte, o bloco de constitucionalidade francês se foca mais na possibilidade que outras normas tenham o mesmo valor da constituição e que sejam incluídas como componente da mesma. A partir do reconhecimento do seu valor constitucional é que poderiam ser invocadas como parâmetro de controle em face da legislação ordinária.

301 ENGELMANN, Wilson. A (re)leitura da teoria do fato jurídico à luz do “diálogo entre as fontes do direito”:

abrindo espaços no direito privado constitucionalizado para o ingresso de novos direitos provenientes das nanotecnologias.CALLEGARI, André Luis; STRECK, Lênio Luiz; ROCHA, Leonel Severo (orgs.).

Constituição, sistemas sociais e hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010,p.295.

302 BARACHO, José Alfredo de Oliveira.Op. cit.p.107. 303 BARACHO, José Alfredo de Oliveira.Op.cit.p.127. 304 FERNANDO COELHO, Luiz. Op.cit.,p.160.

Todavia, em outros países, em especial na Espanha e na Itália, o bloco de constitucionalidade será visto mais como sua função de parâmetro de controle, não havendo maiores discussões ou atribuições de status constitucional diante dos conteúdos trazidos pelas normas.

De fato, nesses dois países, inclusive, determinada norma poderá fazer parte do bloco de constitucionalidade mesmo que reconhecidamente não lhe atribuía o mesmo valor ou a mesma posição hierárquica da constituição. Entretanto, fará parte do bloco de constitucionalidade por poder ser invocada como parâmetro de controle em relação à legislação ordinária e por estar vinculada diretamente com a constituição, ainda que dela não seja parte integrante.