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1. A TEORIA DO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE E A MATERIALIDADE

1.3 Constituição em sentido formal e em sentido material

O enfoque material e formal serve para ajudar a revelar o conteúdo e as características

que são próprias da constituição65. Compreender o sentido de constituição por uma única ótica

traz o inconveniente de não abarcar todas as facetas da lei maior, motivo que, ao se tentar enxergar o significado da constituição no binômio material versus formal, tem a vantagem de se estar, ao mesmo tempo, visualizando o seu conteúdo e com isso ter subsídios para entender se determinada norma extraconstitucional compartilha ou não do mesmo valor; e, de outro, pela formal compreender que a superioridade hierárquica e a força normativa de preceitos são alcançadas pela sua consolidação no documento escrito.

Jorge Miranda66 também considera que a constituição pode ser vista por duas

perspectivas – formal e material. Para o autor, a ótica material corresponderia ao seu objeto, conteúdo ou a sua função. Pela perspectiva material, atender-se-ia à posição das normas

62 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Op. cit. p. 11. 63 Op. cit. p. 19.

64 DANTAS, Ivo. O valor da constituição: do controle de constitucionalidade como garantia da supralegalidade

constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 12.

65 DANTAS, Ivo. Op. cit. p. 263.

constitucionais “em face das demais normas jurídicas e ao modo como se articulam e se recortam no plano sistemático do ordenamento jurídico”. E complementa que “estas perspectivas vão corresponder diferentes sentidos, não isolados, mas interdependentes”.

Em relação à constituição formal, Kelsen67 considera-a como documento escrito que

regula matérias de conteúdo político-ideológico tido como mais importantes para determinado Estado, ao passo que a constituição material seria aquela que regula a introdução de normas válidas no ordenamento jurídico. Disse o autor:

Da Constituição em sentido material deve distinguir-se a Constituição em sentido formal, isto é, um documento designado como “Constituição” que - como Constituição escrita - não só contém normas que regulam a produção de normas gerais, isto é, a legislação, mas também normas que se referem a outros assuntos politicamente importantes e, além disso, preceitos por força dos quais as normas contidas neste documento, a lei constitucional, não podem ser revogadas ou alteradas pela mesma forma que as leis simples, mas somente através de processo especial submetido a requisitos mais severos.

Dallari68 define que “quando se trata da Constituição em sentido formal, tem-se a lei

fundamental de um povo, ou o conjunto de regras jurídicas dotadas de máxima eficácia, concernentes à organização e ao funcionamento do Estado”.

A constituição formal seria, portanto, aquelas normas escritas que foram elaboradas de maneira especial e solene, que só podem ser modificadas de acordo com os ditames processuais estabelecidos na constituição, ainda que não diga respeito à estrutura fundamental

do Estado. Segundo Rubio Llorente69: “Formalmente, lo que caracteriza a la norma

constitucional es la indisponibilidad para el legislador ordinário”.

Nas consistentes palavras de Ivo Dantas, a constituição no sentido formal refere-se a

sua supralegalidade e imutabilidade relativa70:

No sentindo formal, busca-se caracterizar a Constituição como viga mestra do sistema jurídico, com suas características de supralegalidade e imutabilidade relativa, além de ter a origem – e isto é fundamental para nossos objetivos – em um poder constituinte.

Analisando a constituição formal de modo crítico, Bonavides71 afirma que ela, a

constituição formal, seria caracterizada pelas matérias inseridas de aparência constitucional: “as constituições inserem matéria de aparência constitucional. Assim se designa exclusivamente por haver sido introduzida na constituição, enxertada no seu corpo normativo e não porque se refira aos elementos básicos ou institucionais da organização política”.

O conceito de constituição material foca-se, por seu turno, no conteúdo da norma, que compõe os elementos mínimos para estruturação do Estado, como as limitações de poder e os

67 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. Martins Fontes, 1999, p. 247-248. 68

Op. cit. p. 73.

69 Op. cit. p. 25.

70 DANTAS, Ivo. Poder Constituinte e Revolução. Bauru: Jalovi, 1985, p. 24.

direitos humanos, a despeito que o critério para aferir o que é substancialmente ou não constitucional pode variar de acordo com a comunidade considerada.

Constituição Material, segundo Kelsen, todavia, assume um caráter mais instrumental, uma vez que considera que as normas constitucionais seriam aquelas normas cujo conteúdo é o regulamento de produção das normas gerais. Já os constitucionalistas contemporâneos consideram a constituição material nos seguintes termos:

[...] compreende o leque de opções ideológicas assumidas pelo Poder Constituinte no trato das questões políticas e sociais, concedendo a determinadas matérias a condição de fundamentais para a configuração do Estado bem como a aceitação e observância da sociedade dos valores expostos na Constituição72

Paulo Bonavides73, ao falar sobre constituição material, aduz que é a constituição real,

com base nas forças estruturantes de uma nação, e que traz consigo valores básicos da vontade social:

(...) real, assentada sobre o conjunto das forças econômicas, políticas, sociais e financeiras que estruturam uma nação, portadora de valores básicos. É essa materialidade, esse conjunto de forças que formará, mediante a vontade popular, a “espécie de constituinte permanente que ninguém convocou, mas que compõe a vontade profunda e decisiva da sociedade quando ela se manifesta com os governantes ou apesar dos governantes”.

Em complemento, Ivo Dantas74 compreende que a Constituição no sentido material

seria “variável de acordo com a época e situação-objetivos de cada estado. Em outras palavras, dependendo dos fins a que se propõe a atuação do Poder Político, é que teremos a composição material do texto constitucional”.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho75 acrescenta que a constituição material seria aquela

composta por regras materialmente constitucionais, escritas ou não: “Todas as regras, cuja matéria estiver nesse rol [materialmente constitucionais], são constitucionais. Essas regras formam, como se diz usualmente, a Constituição material do Estado, sejam elas escritas ou não, sejam de elaboração solene ou não”. O autor define que as regras materialmente constitucionais seriam as relacionadas à forma de Estado, forma de governo, exercício, estruturação e limitação do poder:

Regras materialmente constitucionais são, em suma, as que, por seu conteúdo, se referem diretamente à forma de Estado (p.ex., as que o definem como Estado federal), forma de governo (p.ex., democracia), ao modo de aquisição (p.ex., sistema eleitoral) e exercício de poder (p.ex., atribuições de seus órgãos), estruturação dos órgãos de

72 Esse é o ensinamento do professor Ivo Dantas, trazido à baila por Vladmir França. Para mais detalhes:

FRANÇA, Vladimir da Rocha. Questões sobre a hierarquia entre as normas constitucionais na CF/88. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 33, 1 jul. 1999. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/135>. Acesso em: 15 de agosto de 2011.

73 Op. cit. p. 321-322. 74 Op. cit. p. 23.

poder (p.ex., do Legislativo ou do Executivo), aos limites de sua ação (p.ex., os traçados pelos direitos fundamentais do homem)76.

Canotilho77 argumenta que a constituição material possui critério substancial que,

apesar de variar de estado para estado, teria sido moldado com a experiência constitucional, abarcando não só os preceitos a que Ferreira Filho mencionou, mas também se abriu para os novos direitos sociais, econômicos, culturais e trabalhistas:

(...) historicamente (na experiência constitucional), foram consideradas matérias constitucionais, «par excellence», a organização do poder político (informada pelo princípio da divisão de poderes) e o catálogo dos direitos, liberdades e garantias (cfr. supra, conceito da constituição ideal). Posteriormente, e ainda em termos de experiências constitucionais, verificou-se o «enriquecimento» da matéria constitucional através da inserção de novos conteúdos, até então considerados de valor jurídico-constitucional irrelevante, de valor administrativo ou de natureza «subcons- titucional» (direitos económicos, sociais e culturais, direitos de participação e dos trabalhadores e constituição económica).

José Afonso da Silva78 entende que há, na realidade, um sentindo amplo e um sentido

restrito do termo constituição material. Eis a diferenciação:

A constituição material é concebida em sentido amplo e em sentido estrito. No primeiro, identifica-se com a organização total do Estado, com regime político. No segundo, designa as normas constitucionais escritas ou costumeiras, inseridas ou não num documento escrito, que regulam a estrutura do Estado, a organização de seus órgãos e os direitos fundamentais. Neste caso, constituição só se refere à matéria essencialmente constitucional; as demais, mesmo que integrem uma constituição escrita, não seriam constitucionais.

Conforme os ensinamentos de José Afonso, portanto, a constituição material em sentido escrito refere-se às normas que regulam a estrutura do Estado, organização dos seus órgãos e direitos fundamentais, havendo normas que, apesar de serem escritas na constituição, não seriam substancialmente de valor constitucional.

A importância de compreender a Constituição no sentido material, portanto, é importante para análise do bloco de constitucionalidade, pois se permite afirmar que nem todas as normas escritas na constituição tem valor materialmente constitucional. Porém, a interpretação que mais nos interessa é a contrario sensu: que há normas materialmente constitucionais em outras fontes normativas como, por exemplo, as normas sobre partidos

políticos e direito eleitoral79.

De modo semelhante, Jorge Miranda80 aprecia que independentemente do critério que

se queira adotar para definir “o âmbito da constituição material – e muitos têm sido propostos, desde a disciplina dos elementos do estado à disciplina da atividade fundamental do estado – é indiscutível que as normas materialmente constitucionais não cabem todas na constituição

76 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., p. 11-12.

77 CANOTILHO, José Gomes. Curso de direito constitucional. Op. cit. p. 68.

78 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 40-41. 79 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Curso de direito constitucional. Op. cit. p. 69.

formal. E categoricamente afirma: “Não cabem hoje, como não cabiam já nas constituições

liberais”. Afinal, como aduz Ceneviva81, o significado material da constituição “corresponde a

um complexo de normas jurídicas fundamentais, irrelevante a consideração, nesse enfoque, se são escritas ou não”.

No entanto, é de ressaltar que constituição material não é equivalente a bloco de

constitucionalidade. Manili82 defende que as diferenças residem, em primeiro lugar, pelo

conceito de constituição material exceder o jurídico, implicando também o político, o sociológico e o pragmático, ao passo que o conceito do bloco seria estritamente jurídico. Nas

ponderações de Ivo Dantas83, parece ser “dispensável a menção a um conceito filosófico ou

ideal (como o quer Pinto Ferreira), dado que o aspecto teleológico ou finalístico se encontra, inevitavelmente, incluso no conceito material”.

Em segundo lugar, Manili84 afirma que a distinção residiria pela circunstância do

conceito de bloco ser formado por autorização de uma norma constitucional (no Brasil seria, dentre outros aspectos, a insculpida no §3, art.5º da Constituição), sendo, portanto objetivo e com contorno delimitado. Já a Constituição material seria um conceito vago e impreciso, de contorno difuso, que seria derivada de uma opção ideológica e sociológica, variável de comunidade para comunidade.

Sob a alegação de que a Constituição material é impregnada por substratos

sociológicos, filosóficos e político-econômicos85, nota-se que há doutrinadores, a exemplo de

Manili86 que fundem no mesmo conceito a Constituição real da Constituição material, como

separa Canotilho87, ou da Constituição substancial da Constitucional material, a exemplo de

André Ramos Tavares88 e Celso Bastos89. Para esses doutrinadores, a seara do ser (e não do

dever-ser), na qual se faz presente a Constituição material (ou a Constituição real), não se confundiria com o conteúdo substancial das normas constitucionais, que seria justamente, em uma ótica normativa, a estrutura fundamental básica do Estado e da sociedade, alargada com a evolução social e variante de acordo com o estado ou a comunidade.

Por outro lado, Jorge Miranda90 argumenta que ainda que se perceba conteúdo

material em normas não constitucionais, as mesmas não teriam o mesmo nível superior no

81 CENEVIVA, Walter. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 12.

82 MANILI, Pablo Luis. El bloque de constitucionalidad: la recepción del derecho internacional de los

derechos humanos en el derecho constitucional argentino. Buenos Aires: La ley, 2003, p. 273.

83 DANTAS, Ivo. Poder constituinte e revolução. Bauru: Jalovi, 1985. 84 Op. cit. p. 273.

85 AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 5. 86 Também podemos citar AGRA, Walber de Moura. Op. cit.

87 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit. p. 67-69. 88 Op. cit. p. 88-90.

89 Op. cit. p. 45. 90 Op. cit. p. 40.

ordenamento que a constituição. Segundo Miranda, as normas materialmente constitucionais que estariam na constituição positivada seriam a opção ou valoração fundamental do poder constituinte, então possuiriam grau superior às normas ordinárias, ainda que materialmente constitucionais, pois são definidas por referência às normas constitucionais e modeladas por ela, não podendo a contradizer. Assim, “numa perspectiva sistemática e estática, elas todas formam uma unidade; numa perspectiva genética de validação, separam-se pela interposição

da constituição formal”91.

Dessa perspectiva sistemática a que referencia Jorge Miranda, a exemplo que ocorre no bloco de constitucionalidade italiano, verifica-se que normas materialmente constitucionais não constantes na constituição escrita e normas da constituição formal formam um todo unitário, um bloco de constitucionalidade, apesar de, como sustentou Miranda, não possuírem as primeiras a mesma hierarquia das normas constitucionais positivadas na constituição formal, uma vez que estas últimas sejam ou não materialmente constitucionais. Ainda que se apontem algumas como não relacionadas aos fundamentos principais do Estado, foram resultantes do poder constituinte que resolveu constitucionaliza- las. Independentemente do motivo que foram alçadas à constituição positiva, seja para dar mais segurança, seja para evitar a alteração pela legislação ordinária, as normas formalmente constitucionais estão protegidas pela posição hierárquica superior que a constituição possui no ordenamento.

A posição de que as normas materialmente constitucionais não albergadas na Lei Maior não teriam o mesmo valor da constituição positiva, é o que vai sustentar a posição da doutrina brasileira de que tratados ou convenções internacionais sobre direitos humanos não aprovados nos termos da constituição seriam supralegais, por estarem acima da constituição e, por isso, teriam o poder de serem cotejadas com a legislação ordinária.

Sem adentrar no tema, que será retomado alhures, compreender que determinado instrumento contém normas materialmente constitucionais,representa um passo na construção do bloco de constitucionalidade. Porém, tomando-se como modelo o bloco de constitucionalidade francês, a concretização de um verdadeiro bloco seria alcançada considerando ambas as normas (da constituição formal e da constituição material) de igual valor. Por isso, a doutrina brasileira, como adiante será visto, se apoiará no próprio direito

constitucional positivo, como faz Ingo Sarlet92, para fundamentar “a abertura da Constituição

a outros direitos fundamentais não constantes de seu texto, e, portanto, apenas materialmente

91 Op. cit. p. 340.

92 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais

fundamentais”, sendo que a materialidade fundamental seria “as estruturas básicas do estado e da sociedade”, também se incluindo os direitos fundamentais.