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4 O Deslizamento semântico: a questão da metáfora Autores como Lakoff e Johnson (1980), Lakoff (1998), Taylor (1992), Hopper e Traugot

(1993), Heine, Claudi e Hünnemeyer (1991) e Pires de Oliveira (1997, 1999, 2001) desenvol- vem a compreensão da metáfora, não como um mecanismo lingüístico extraordinário, mais questão de palavras que de pensamento ou ação (Lakoff e Johnson, 1980: 153), e, sim, como um mecanismo cognitivo, que se transfere em grande parte para a língua, e que desempenha papel importante no entendimento do mundo e, por conseqüência, no entendimento do significado. Para a Lingüística Cognitiva, o sistema conceitual humano ordinário, a partir do qual pensamos e agimos, é fundamentalmente metafórico, o que nos permite entender e vivenciar um tipo de

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coisa desconhecida em termos de outra, já conhecida, e é isso que torna a metáfora parte de nossa expressão lingüística cotidiana (Taylor, 1992: 132-133). Assim, para Pires de Oliveira (2001: 35), “a metáfora define-se por ser o mapa (um conjunto de correspondências) entre um domínio da experiência e outro domínio” ou, dito de outro modo, é um “processo cognitivo de mapear um domínio-fonte de experiência em um domínio-alvo” (Pires de Oliveira, em Lakoff, 1988: 101). Segundo Hopper e Traugott (1993: 77), “processos metafóricos são processos de inferência entre fronteiras conceituais e são tipicamente referidos em termos de ‘mapeamento’ ou ‘saltos associativos’ de um domínio para outro. O mapeamento não é aleatório, mas motivado por analogia e relações icônicas”.

O esquema simbólico da metáfora é X é Y, ou seja, busca-se a similaridade entre dois elementos, através da expressão lingüística, que os aproxima a ponto de sugerir a identificação. Como ressaltam Hopper e Traugott (1993: 78), a metáfora é primariamente de caráter analógico. A identificação global, entretanto, não se produz, porque os domínios em comparação são multifacetados: na projeção metafórica recortam-se características parciais, comuns a ambos os elementos ou que são projetados do elemento Y (fonte) para o elemento X (alvo) e é nessa subárea que reside a similaridade: “Na metáfora está presente o processo de projeção: certas propriedades atribuídas a um evento são projetadas em outro evento, resultando um feixe de similaridades” (Pires de Oliveira, 1997: 260). Contudo, outras características, de ambos os domínios, ficam escondidas.

Consistindo, portanto, a metáfora em seleção de traço(s) relevante(s) do conteúdo semân- tico de um item lexical que funciona(m), para efeitos de sentido, como seu significado global, projetado para efeito de qualificação do conteúdo semântico de outro elemento lingüístico, em geral, outro item lexical, é um mecanismo muito importante nos estágios iniciais da Gramaticalização, quando traço(s) semântico(s) de um item lexical autoriza(m) seu uso metafó- rico em função gramatical, ou melhor, quando um processo metafórico autoriza a transposição de traço(s) de um item lexical para um novo item gramatical.

Costumam-se distinguir metáforas mortas de metáforas criativas ou novas, e, às últimas, muitos estudos têm dado, no geral, maior importância, admitindo-se que as metáforas mortas (dead ou frozen metaphors) são aquelas que, por recorrência de uso, estão tão inseridas na expres- são lingüística cotidiana que se consolidam a ponto de parecerem auto-evidentes, de modo que os falantes já não as vêem como metáforas. Para essas metáforas há exemplos cotidianos na língua portuguesa, como pé-de-mesa; destruir uma prova escolar; o trabalho me tomou um dia. Ressalte-se que Lakoff e Johnson (1980: 55) argumentam que as metáforas consolidadas, inseridas no sistema semântico de uma língua é que são verdadeiramente vivas, porque são metaphors we live by. Já as metáforas criativas fazem uma aproximação inusitada: descobrem similaridades entre elementos que não tinham sido ainda aproximados ou destacam outras características parciais, não destacadas ainda, de elementos já anteriormente aproximados por metáfora, de modo que a sua interpretação não é sistemática. Bom exemplo é a formulação de Guimarães Rosa “A manhã é uma esponja”, estudada por Pires de Oliveira (1997). O leitor poderá atribuir a essa formulação várias interpretações, desde que coerentes com o contexto em que se insere. Por serem únicas, irrepetidas, as metáforas criativas não costumam produzir Gramaticalização, mas podem dar oportunidade a metáforas emergentes que, essas sim, podem importar para futuros processos.

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Embora a generalização semântica de determinados traços, em maior ou menor grau, que afinal permite o processo de gramaticalização, seja uma constante, no corpus analisado alguns itens adverbiais exemplificam mais explicitamente esse processo. Dentre esses, selecionamos os seguintes:

4.1 A base lexical pedaço, nome registrado em português desde o século X (Corominas e Pascual, 1980-1991: s.v. pedaço), provém de pi(ta#cci(um,-i(i, nome latino tardio, ‘rótulo, emplas- tro, escrito pequeno’, que, por sua vez, provém de pittákion, nome grego, ‘pano sobre o qual se estende um emplastro, remendo’. Observe-se que a denominação grega e depois latina sofreu, na passagem para o português, processo de generalização, através do mecanismo da metáfora, vindo assim o nome a designar, não apenas segmentos de matéria concreta (‘remendo’) como, já gramaticalizado em adverbial, segmento espacial (exemplo 55) e intervalo de tempo (exemplo 56):

(55) ...foy ocapitã com alguu)s denos huu) pedaço per este aruoredo (CPVC, fl. 11, ls. 7-8). (56) ...e comecaram asaltar e dançar huu) pedaço (CPVC, fl. 5, ls. 29-30).

4.2 A forma logo, que atualmente preenche funções de advérbio temporal e de conjunção conclusiva, vem de uma locução adverbial latina lo(co, redução de (in) loco, formada pela junção da preposição in à forma de ablativo singular do nome latino locus, i#. In lo(co#, ‘a tempo, oportuna- mente’, concorreu, ainda em latim, com i#lli(co(, ‘ali mesmo, no mesmo lugar, imediatamente’, adverbial também derivado de locus, i#. Veja-se que a transferência metafórica, do sentido espaci- al do nome para o sentido temporal do adverbial processou-se ainda em latim.

Adota-se aqui a proposta de Corominas e Pascual (1980-1991: s.v. luego), que propõem o étimo adverbial lo(co# para o castelhano luego, o português logo e o francês antigo lues, enquanto outros propõem ser o étimo o nome latino. A propósito lembre-se a existência de logo, nome português, atestado seguramente até o século XV, do qual abaixo se apresentam exemplos:

(57) Eu, depois que uij) a este logo (III Livro de Linhagens, in: Nascentes, 1932: s.v. logo). (58) Ca, na lei de natura chamouse o nome de Deos Soday, que he de três letras, na da Scriptura Tetragramatõ, em cujo logo dizem os Hebreos Adonai, de quatro letras (Comédia Eufrosina – séc. XVI, in Machado, 1965: s.v. logo).

(59) ...e, creendo, sabee que assi como nós tiinhamos o dito rrei em conta e logo de padre, assi entendemos de teer a vos em conta de nosso irmão (CDP, p. 102, ls. 78-80).

Assim, o português logo e o castelhano luego foram tanto formas nominais advindas do nome latino quanto formas adverbiais advindas do adverbial latino, que se tornaram homôni- mas. As línguas em questão selecionaram essas formas para o uso adverbial e substituíram as formas nominais homônimas por outras, advindas de outro nominal latino, localis (> port. lugar), também derivado de locus, i#. Segundo Corominas e Pascual (op. cit.), “a substituição de luego ou logo pelo derivado lugar se aplica, porque frases como ‘em outro luego’, ‘em aquel luego’ podiam tornar-se ambíguas, sobretudo quando luego significava ‘entonces’”.

4.3 O adverbial português asinha, ‘rapidamente’, provém do nome latino agi#na, ‘encaixe ou buraco em que se move o travessão da balança; balança’. Se se considerar o deslizamento

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semântico que se produziu na forma latina, temos: a) generalização metonímica de denomina- ção de parte do objeto designado, que passou a designar todo o conjunto; b) transposição meta- fórica do traço de movimento rápido, integrante do significado do nome, para o significado do adverbial que se formou, por gramaticalização desse nome (abstratização), relocando o traço semântico relativo a rapidez para os sentidos de ordenação temporal e de curta duração (sentido aspectual), como se vê dos exemplos:

(60) ...e mais porq# alghu) tanto me fiz nestes principios breue reprenderão mui asinha o que dixe (GFO, p.75, ls. 8-10).

(61) ...e mais não se muda tão asinha (GFO, p. 60, l. 11).

Conclusão

A oportunidade de confrontar as cento e sessenta e uma formas adverbiais de conteúdo semântico espacial e temporal, detectadas no corpus do século XVI examinado, com formas anteriores (séculos XIV e XV) e formas da atualidade demonstra, além da riqueza de possibili- dades de percepção e expressão desses conteúdos através de formas adverbiais, a pertinência de inter-relações das noções de espaço e tempo, pelos caminhos do deslizamento metafórico de base cognitiva. Ressalte-se que a observação em detalhe veio a demonstrar que a seqüência mais comum desse deslizamento indica a seguinte configuração:

espaço concreto (físico) →→→→→ espaço abstrato (não-físico, inclusive textual) →→→→→ tempo. A ressalva se justifica pelo fato de que alguns estudos dão a entender que o espaço abstrato, devido à sua “abstração”, deve ser incluído na categoria geral de noção ou na categoria texto, sucedendo, portanto, a categoria tempo no continuum conceitual. O estudo demonstrou que o espaço abstrato, compreendendo a referência a pontos do texto, a referência à representação gráfica ou ao desenrolar de um raciocínio ou de um relato, sucede a categoria espaço e precede a categoria tempo, sendo, portanto, noção intermediária para a extensão da categoria semântica espaço a outras noções mais abstratas.

Observe-se, também, que alguns percursos semânticos revelaram-se interessantes, de- monstrando a atuação dos mecanismos de metáfora e metonímia, além do mecanismo, discu- tivelmente pertinente à teoria da Gramaticalização, da analogia. A metáfora e a metonímia manifestaram-se interlínguas (grego → latim; latim → português), ou intralíngua (latim ou português). Para o primeiro caso temos o exemplo da base lexical pedaço e, para o segundo, da base lexical logo. Quanto ao mecanismo da analogia, sua atuação parece importante por captu- rar elementos lexicais para pontos específicos do percurso de gramaticalização, produzindo maior paradigmacidade , e, também por produzir o espraiamento de novas estruturas, conside- rando que, sem espraimento, não se configura a mudança lingüística.

1 COSTA, Sônia B. B. (2003) Adverbiais espaciais e temporais do português: indícios diacrônicos de gramaticalização.

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2 A Carta de Pero Vaz de Caminha (CPVC - texto integral); Cartas de D. João III (CDJIII - de número 1 a

22); Cartas da Corte de D. João III (CCDJ - as de número 3, 8, 9, 22, 43, 47; 50 a 57; 84, 85, 86, 106; 163, 165, 167; 169; 171; 173); Gramática da Linguagem Portuguesa, de Fernão de Oliveira (GFO - texto integral); Gramática da Língua Portuguesa, de João de Barros (GJB - texto integral); Diálogo em Louvor de Nossa Linguagem, de João de Barros (DLNL - texto integral); Diálogo da Viciosa Vergonha, de João de Barros (DVV - texto integral); Ásia, de João de Barros (primeira e segunda décadas – DA-I e DA-II – aproximadamente 1400 linhas de cada).

3 Esclarece-se que, exceto para os trechos exemplificativos, a grafia dos adverbiais foi, sempre que

possível, atualizada, com o intuito de facilitar a leitura.

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