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O encarceramento social

No documento Do português arcaico ao português brasileiro (páginas 159-161)

ponha aos olhos em mim”

9.3 O encarceramento social

O ingresso para o mundo dos libertos poderia ser obtido mediante pagamento ou, então, poderia ser concedido gratuitamente pelo senhor. As razões para a concessão de uma ou outra forma, contudo, diferenciavam-se. Segundo Schwart (2001: 197), os bons serviços prestados pelos escravos não se constituíam em motivos para a obtenção gratuita da liberdade e, sim, um pré-requisito. Oliveira (1988) vê nas alforrias gratuitas, em muitos casos, uma forma de enco- brir outras realidades, como em um que vale a pena citar. Trata-se de uma escrava que, em seu testamento de 1830, declarou a respeito de sua ex-dona:

na carta que me passou declarou que o faria pelos bons serviços que sempre lhe tinha prestado quando pelo contrário ela tinha em seu poder dinheiro corrente meu que lhe dei para minha liberdade, 80$000 (apud Oliveira, 1988: 24).

Geralmente, eram os escravos domésticos os que mais se beneficiavam das alforrias gratui- tas. De praxe, eram as ‘crias-da-casa’, freqüentemente filhos do senhor; as amas que criaram os senhores e os seus filhos recém-nascidos; escravos que tivessem muito tempo de serviço, etc. Como lembra Oliveira, referida anteriormente, muitas dessas alforrias ocorriam nas datas de importância no calendário senhorial, como os batizados e os casamentos. As alforrias, em muitos casos, comportavam cláusulas restritivas, o que tornava a liberdade condicional. As condições impostas, assim sendo, criaram uma classe especial de ex-escravos entre os libertos, os libertáveis. De qualquer sorte, a relação afetuosa com o senhor seria o motivo de maior força para as alforrias gratuitas.

Quanto à alforria paga ou, para alguns historiadores, onerosa, também dependia ela da vontade do senhor. Entretanto, a compra da liberdade pelos escravos ou por parentes seus, consangüíneos ou não, ainda consoante Oliveira (1988: 25), estava também à mercê da cotação da mão-de-obra escrava, dependente das condições de renovação desse contingente e da deman- da de mercado, se em fase de prosperidade ou de crise. Schwartz (2001) aventa outros fatores que, segundo ele, têm sido levantados para explicar o fato de o escravo brasileiro poder comprar sua liberdade:

Alguns autores encararam esse fato como prova da abertura e da natureza mais humana da escravidão no Brasil, ao passo que outros explicam o fenômeno como uma reação provocada pela necessidade de

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certos tipos de trabalhadores livres ou como um meio de controle social, por meio da qual os senhores, oferecendo a esperança de uma possível liberdade, detinham a melhor qualidade possível de trabalho e eram também, em conseqüência, reembolsados (p. 201).

Do estudo realizado por Schwartz sobre cartas de alforria na Bahia, retiram-se as seguintes conclusões: aos africanos, a liberdade era concedida em menor número do que aos nascidos no Brasil; os africanos eram todos libertados praticamente na fase adulta; entre os nascidos no Brasil, eram os pardos os mais privilegiados com as alforrias, mostrando que a cor era critério para a sua concessão; os pardos eram favorecidos com a liberdade ainda na infância; as alforrias gratuitas eram, com mais freqüência, proporcionadas aos pardos, visto que as obtinham ainda quando criança; os crioulos obtinham a liberdade, em grande parte, quando já adultos; para os escravos africanos e crioulos, a liberdade tinha de ser conseguida, mais comumente, mediante o pagamento de suas alforrias.

Diante disso, não parece desarrazoado dizer que a liberdade escolhia o seu perfil: era pardo ou mestiço e era brasileiro. Mesmo que se saiba que eram os negros, africanos ou não, aqueles que constituíam o grosso da escravidão, foram os mestiços, minoria entre a população escrava, que obtiveram, com maior freqüência e com mais facilidade, a condição de liberto. Daí o tema da alforria aparecer com mais constância nas cartas de uma africana, Teodora, e de um crioulo, Arnaldo Rigão.

Se não fossem pardos ou, talvez, não tivessem a quem recorrer para conseguir a alforria, ter-se-ia aí, talvez, mais um motivo para que escravos alfabetizados se valessem da tinta e do papel para um uso mais ‘criminoso’ da escrita. Por ser assim julgado no século XIX, alguns jornais da época deixaram registros. No Rio de Janeiro, o jornal O Commercial (Guedes e Berlinck, 2000: 188-189) noticiou a respeito de um escravo fugido: “póde muito bem aparecer por estes caminhos com alguma carta ou bilhete falso, fingindo que vai levar ao senhor, para assim poder andar, e mesmo póde levar outras cousas”. Para o Recife, Carvalho (2002: 249) nos apresenta alguns casos: o angolano Lourenço, que, em 1831, já estava desaparecido havia quatro ou cinco anos, se passava por forro graças a uma carta falsa que portava consigo. Nessa mesma época, Ana, de 30 anos, também tinha ‘um papel que mostra dizendo que é forra’; um outro escravo, que andava calçado, trazia consigo uma carta de alforria forjada para mostrar pelas ruas. Na cidade de Salvador, em 1835, há a prova inconteste de que escravos poderiam, através da utilização da pena por punho próprio, querer encurtar o caminho para a liberdade. Transcrevi na íntegra o documento abaixo por ser um exemplar raro do que se fala13.

Entrando a exercer no dia 4 do corrente o lugar de Juiz de Pás, do 1º. distrito desta Freguezia de São Pedro, por impedimento do Actual, Vicente Joze Teixeira, encontrei hum Officio do Juiz Municipal, participando da prizão, que tivera lugar na noite do dia 31 do passado em ceis Africanos, sendo 3 homens da Nação Bornó, hum de Nação Nagô escravos de hum dos prezos e duas Mulheres, a saber huma de Nação Bornó liberta e outra de Nação Benguela, escrava de hum dos ditos prezos, para se proceder na forma da Lei, sobre huma Carta, que disse o Juiz se fazia suspeita, tanto pela asignatura de Napoleão e equivocos em que era concebida, como pela confuzão em que ficarão os ditos pretos; e que naquella occazião passara a prizão dos mesmos a ordem deste Juízo. Immediatamente avizei ao Promotor Publico para que viesse assistir ao Corpo de Delicto e mais Actos, o que não podendo comparecer por se achar ocupado nos Jurados; dei principio, conseguindo pelo depoimento dos mesmos ser a mencionada Carta escripta pelo muleque é Napolião, que diz ser escravo do falecido Barão do Rio de Contas, a preta Maria Colodina, escrava do preto Jorge Manoel dizendo a

E agora, com a escrita, os escravos!

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mesma não ter confessado na ocazião da prizão por ter receio publicar em prezença do seo Senhor, o que Vossa Excelência vera da Autuação, Corpo de delito, e mais pessas que tudo envio a Vossa Excelência para avistar de tudo ordenarme o que devo fazer huma Ves que já se achão prezos na Policia a Oito dias tudo isto foi acontecido na Caza Nº. 18 a Barroquinha, cujos Africanos não consta serem suspeitos...14

As cartas de alforria tinham uma fórmula a ser seguida. Nelas, segundo Schwartz (2001: 173-174), o senhor ou senhora de escravo se identificava e, logo em seguida, identificava o escravo a ser libertado. A multidão sem voz, uniforme, ganhava, através das cartas, alguma individualidade, pois eram ali designadas a idade, a cor, a naturalidade e, menos freqüentemente, a ocupação dos escravos. Para que tivesse valor legal, era preciso que a carta fosse registrada em cartório e, a partir de então, deveria o ex-escravo carregá-la consigo como prova de que integrava a sociedade de homens livres. Mas o moleque Napoleão parecia desconhecer a estrutura formu- lar de uma carta de alforria; essa foi a razão da desconfiança do Juiz de Paz que concluiu ser a sua carta falsa. Além disso, parece ter contado a assinatura equivocada de Napoleão, certamente buscando reproduzir a do seu senhor, que àquela altura estava morto, meio do qual parece ter-se valido para passar a si próprio a carta de alforria.

No documento Do português arcaico ao português brasileiro (páginas 159-161)