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2 Abordagem histórica das formas de futuro

2.1 Futuro do presente

2.1.1 No latim clássico

Segundo H. Lausberg (1966), o futuro tem um valor mais abstrato que o passado, porque representa um momento incerto, do qual o falante não tem conhecimento. Conforme afirmam I. Iordan e M. Manoliu (1972), o futuro apareceu relativamente tarde nas línguas indo-européias. As formas de futuro do latim clássico provêm de formas volitivas, como as de flexão em -b- ou de formas de subjuntivo, como aquelas em -a- / -e- e foram assim firmadas pela norma da língua escrita e literária.

A formação desse futuro resulta de uma elaboração secundária, de origem puramente intelectual, pautada mais em um raciocínio e não em situações de comunicação, sendo esse uso propiciado pelo latim clássico.

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No latim clássico, não havia unidade para as formas de futuro: o futuro imperfeito do indicativo na primeira e segunda conjugações se formava com -b- (amabo, delebo) e na terceira e quarta com -a-/ -e- (legam, leges; audiam, audies), confundindo-se, nessa última, a primeira pessoa do singular com a primeira pessoa do presente do subjuntivo. Também todas as pessoas do futuro perfeito do indicativo (futuro II) coincidiam com as do pretérito perfeito do subjuntivo, excetuando-se apenas a primeira pessoa do singular (amavero, delevero).

Tanto a homonímia com outras formas verbais, como a falta de unidade contribuíram para o desaparecimento dessas formas de futuro.

Acrescentam-se a isso acidentes fonéticos, como a confusão entre amabit e amavit, dices, dicet e dicis, dicit.

Ao lado das formas sintéticas, havia ainda as perifrásticas, usadas desde a época de Cícero para indicar uma possibilidade:

Cícero:

Ad. Atticum: habeo... scribere. Pro S. Rocio: habeo... dicere.

Por outro lado, o latim precisava de um futuro passado ou de um potencial. 2.1.2 No latim vulgar tardio

Ao contrário do latim clássico, o latim vulgar tardio não propiciava o uso do futuro, pois as formas de futuro temporal estrito não são próprias do uso coloquial de uma língua. No momento da comunicação, a noção de futuro está associada à dúvida, desejo, imposição da vontade, funcionando na categoria de modo.

No latim vulgar, para todos os níveis lingüísticos, predominava o uso do presente pelo futuro, como é encontrado em textos latinos de cunho mais popular:

Cena Trimalchionis:

(1) [...] apud quem cubitum ponitis (= ponetis) (‘com aquele que te sentas à mesa (à tarde)’);

e nos escritores cristãos. Isso acontecia desde que não houvesse uma motivação que levasse o falante a outro uso.

Como base para as formas analíticas se apresentam, sobretudo, as formas infinitivas, pois essas estão livres para uma finitização, como também para serem empregadas como modo, já que por si não estão fixadas modalmente. Essa finitização é feita com o uso de verbos auxiliares em tempo finito.

A construção de um futuro perifrástico é de largo emprego, devido sobretudo a fatores morfossintáticos. Existem aquelas formas que tomam o futuro como coisa desejada ou imposta, como no caso da união de um infinitivo com as formas verbais do presente do indicativo: habeo, debeo, volo, como nos exemplos:

Tert. Scorp. 11:

(2) Aliter praedicantur, quam evenire habent. (‘O que se predisse, sucederá de outro modo’),

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em que habent está quase desprovido do valor de obrigação que tem no uso clássico escribere habeo (‘tenho que escrever’).

Ag. In. evang. Ioh. e, 1, 2:

(3) Tempestas illa tollere habet totam paleam. (‘Essa tempestade levará toda palha’). Ps. Ag. Serm. 253, 4:

(4) Sanare te habebat Deus per indulgentiam, ... (‘Deus te sanaria, por indulgência...’).

As formas analíticas, segundo H. Lausberg (1966), são formas transparentes e se tornam etimologicamente transparentes para a consciência sincrônica, uma vez que seus constituintes têm vida própria na língua.

Na forma sintética, ao contrário, os elementos constitutivos, ou não têm vida própria, ou mesmo que a tenham, não a tornam etimologicamente transparente para a consciência lingüís- tica sincrônica.

A dependência ou independência semântica dos constituintes apenas representa o grau de plenitude semântica: a carga semântica das formas sintéticas é “normal gramatical”, enquanto que a das formas analíticas é “rica”. Essas formas são assim consideradas, porque não se restrin- gem à esfera “normal gramatical”, podendo se enriquecer semanticamente com outros conteú- dos, nos quais se encontra seu ponto de gravidade. Cantare habeo, por exemplo, tem seu ponto de gravidade no conteúdo do propósito subjetivo ‘tenho a intenção de cantar’.

O valor de necessidade deve ter-se desenvolvido a partir de construções populares, como habeo laudandum, em que habeo aparece no lugar de mihi... est (Mihi laudandum est – ‘eu deverei louvar’) e o gerúndio foi substituído pelo infinitivo: habeo laudare.

Desse modo, firmou-se no latim vulgar um modo futuro, a partir de construções modais freqüentes na fala popular, que conduziu as línguas românicas a um novo tempo futuro.

A variedade de formas, que o latim vulgar tardio transmitiu ao romance, demonstra que ele não chegou a fixar uma nova categoria para a expressão do futuro. Essa criação é posterior.

2.1.3 Nas línguas românicas

De um modo geral, as línguas românicas preferiram as formas perifrásticas de futuro, cujos constituintes eram velle (baseia-se na vontade do falante), debeo e habeo (baseiam-se na forma que dirige a atuação do agente) ou venio (baseia-se no movimento do agente preparatório da ação) + infinitivo imperfeito.

Em grande parte da România, essas formas se estabeleceram como uma locução volitiva, focalizando a vontade de que algum fato ocorresse.

Devido à sua posição enclítica, o auxiliar sofreu numerosas modificações fonéticas que levaram à sua total gramaticalização. Essa redução das formas de habere teve como ponto de partida o desaparecimento da consoante -b- intervocálica.

Um dos primeiros exemplos pré-românicos com os elementos já soldados, protótipo do futuro românico, está documentado em Fredegário, 85, 27:

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Não houve, porém, unidade para a formação do futuro românico, ocorrendo, assim, três tipos de comportamento:

1) manutenção do futuro sintético latino:

- o dalmático mantém o futuro II: cantavero > vegl. kantuóra; 2) catacrese:

- em alguns dialetos do sul da Itália, o futuro se expressa somente através da forma do presente;

3) perífrase:

- comportamento utilizado pela maioria das línguas românicas; há variações que se devem à escolha e à posição do auxiliar.

Por influência da formação do futuro em grego tardio, segundo H. Lausberg (1966), o romeno forma o futuro com velle, na maioria dos casos anteposto, mas posposto em alguns dialetos.

A perífrase debeo cantare ocorre no sardo, ao lado de habeo cantare: depo cantare.

A perífrase preferida pelo sobresselvano e pelo engadinês falado é a de venio ad cantare, mas o engadinês escrito prefere cantare habeo, por influência do italiano.

A perífrase com habeo é usada pelo italiano, sardo (que empregam também debeo), engadinês escrito, francês, espanhol, provençal, catalão e português. Nessas línguas, o auxiliar pode apa- recer anteposto ou posposto:

a) Anteposto:

- habeo cantare: italiano antigo, italiano do sul e dialetos sardos.

- habeo de cantare: português (hei de cantar, que alterna com o tipo cantare habeo). - habeo ad cantare: em dialetos do sul da Itália e sardo;

b) Posposto: francês, italiano, engadinês, provençal, catalão, espanhol e português. A justaposição cantare habeo, na opinião de H. Lausberg (1966), passou a formar uma só palavra, quando ainda existia a oposição quantitativa. Esse autor dá as seguintes formas para o futuro no latim vulgar tardio:

1) * cantarábeo * cantaráio 2) * cantarábes * cantáras 3) * cantárabet * cantárat 4) * cantarabémus * cantaremos 5) * cantarabétis * cantarétis

6) * cantárabent/ * cantárabunt * cantárant/ * cantárunt

O deslocamento do acento nas formas em que caía no infinitivo do verbo principal (segun- da e terceira pessoas do singular e terceira do plural), na maioria das línguas românicas, foi fixado no auxiliar.

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A unidade do futuro formado com habeo não é compacta e resistente em todas as línguas. Daí, em algumas delas, como no português, os pronomes átonos poderem intercalar-se, mesocliticamente, entre o infinitivo e o auxiliar.

A vitalidade desse tipo no português deve-se à existência do tipo secundário habeo de cantare, que, com o tipo cantare habeo, se acha em relação de intercambialidade.

Atualmente, as formas do futuro já não evidenciam mais a sua composição de infinitivo + habeo, mas se compõem de um radical e um morfema verbal. Além disso, elas perderam o seu enriquecimento semântico.

Nota-se a preferência, nas línguas românicas de hoje, por formas perifrásticas em tudo semelhantes àquelas usadas no latim falado. O futuro mais usado é o formado com ir + infinitivo. A forma ir perde totalmente seu valor, inclusive pode unir-se ao seu antônimo ‘permanecer’: Eu vou ficar, e unir-se consigo mesmo: fr. Où allons nous aller?

Segundo I. Iordan e M. Manoliu (1972), o emprego de ir + infinitivo expressa um futuro próximo com tendência a transformar-se em futuro propriamente dito.

Além disso, T. H. Maurer Jr. (1959) assinala que o uso do presente pelo futuro é muito freqüente nas línguas românicas. O futuro toma a forma do presente e se torna claramente expresso pelo contexto, quando a forma verbal vem acompanhada de advérbio que indica ação futura: port. Falo com você amanhã.

2.2 Futuro do pretérito

No latim não havia um futuro passado ou potencial. Em amplas zonas de formação do futuro com habeo (o futuro do presente), se formou, analogamente, um futurum praeteriti, isto é, futuro visto do passado. Para o emprego desse último, é preciso que o falante faça a evocação do passado no momento em que fala, isto é, se reporte ao passado.

Esse futuro, chamado por Said Ali e outros autores “futuro do pretérito”, apresenta os seguintes tipos:

i) Com o auxiliar anteposto:

habebam cantare: usado em dialetos antigos do norte e sul da Itália e sardo. habebam de cantare: português.

habebam ad cantare: dialetos do sul da Itália e sardo. ii) Com o auxiliar posposto:

cantare habebam: dialetos italianos, francês, provençal, catalão, espanhol, português. cantare habui: italiano.

Para o português, como para as outras línguas românicas, esse tempo se formou de modo semelhante ao que ocorreu para o futuro do presente: cantar -ia, -ias, -ia, -íamos, -íeis, -iam, ao lado da forma havia de cantar < habebam de cantare.

Essa forma condicional, por seu emprego modal, tanto é usada para o futurum praeteriti, como também para modelo da irrealidade na oração principal do período condicional irreal.

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3 Constituição do corpus

Com o objetivo de estudar o emprego do futuro no português atual, foi examinado um corpus constituído de doze inquéritos, sendo aplicados seis a falantes da norma culta e seis a falantes não-escolarizados, a fim de serem observadas as formas de indicação do futuro em diferentes estratos sociais.

Para o primeiro grupo, escolheram-se seis informantes do Projeto NURC – Salvador (Nor- ma Urbana Culta), pertencentes à faixa etária II, isto é, entre 36 e 55 anos (faixa estabelecida pelo Projeto NURC) e nascidos em Salvador. No que se refere ao segundo grupo, foi aplicado inquérito a seis informantes não-escolarizados, nascidos em Salvador e da mesma faixa etária do primeiro grupo.

No que diz respeito ao assunto, houve interesse por parte de todos eles em falar sobre sua cidade.

Quanto ao inquérito aplicado aos falantes não-escolarizados, vale ressaltar que, apesar de se basear no Projeto NURC, as perguntas foram modificadas ou ampliadas, diante da reação dos informantes ou da resposta inicialmente obtida que, às vezes, demonstrou falta de entendimento do que o inquiridor realmente desejava saber.

A partir da observação dos usos do futuro no português contemporâneo, procura-se veri- ficar em textos representativos dos primeiros séculos da língua portuguesa o emprego desse tempo verbal, em busca de pistas que apontem para o início do uso do futuro perifrástico com o verbo auxiliar ir. Por esse motivo, foi feito, inicialmente, um levantamento de passagens com o emprego do futuro no português arcaico (século XIV), nos dois primeiros livros dos Diálogos de São Gregório, para, em seguida, dar continuidade à pesquisa em textos de séculos posteriores.

4 Análise dos dados à luz da teoria funcionalista

Após a observação das falas, tanto de informantes não-escolarizados como daqueles da norma culta, observou-se uma preferência na fala de Salvador pelos empregos do futuro peri- frástico na forma do futuro do presente, ao passo que há um uso em maior escala do futuro do pretérito sintético.

Como já se observou, o emprego freqüente do futuro perifrástico no latim tardio conduziu à gramaticalização das formas sintéticas no português e em outras línguas românicas. Assim, a continuidade da inovação, que funciona como um dos princípios de gramaticalização, leva à criação de uma nova forma flexional, como no português amarei. O uso freqüente dessas formas sintéticas levou ao seu enfraquecimento no português atual.

No momento atual, os falantes da língua portuguesa abandonam gradativamente o empre- go dessas formas sintéticas, buscando uma nova forma perifrástica para o futuro do presente, dessa vez constituída pelo verbo ir. Esse fato pode ser verificado nos exemplos abaixo:

Futuro do presente sintético:

(6) NURC: -Bom, pra mim, o mar com vento de quadrante sul, sempre é um vento que poderá de uma hora pra outra trazer chuva, na minha opinião [...] (NURC, p. 131, l. 147)

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Futuro do presente analítico:

(7) NURC: Então, eu perco a [...] a calma e vou esvaziar pneu, tá entendendo, e [...] (NURC, p. 122, l. 617) (8) - Né isso? Então, por exemplo, agora nós vamos abrir... parece que para o ano inaugura aí o... o centro, né, de... (NURC, p. 125, l. 745-746)

Falante não-escolarizado:

(9) Salvador tem muito ribanceira e, cada vez mais, o pessoal vai fazer [...] casa em rebanceira, né? (Fal. não-esc., p. 5, l. 24)

(10) [...] aí que diz ... que vai comprar carro, mas não compra [...] (Fal. não-esc., p. 14, l. 16)

Futuro do pretérito sintético:

(11) NURC: [...] tá entendendo, de ser educado, ser disciplinado, seria fác... eh... tornaria a coisa mais fácil, mas [...] (NURC, p. 124, l. 688)

(12) [...] se agrupasse essas coisas, tudo num determinado lugar poderia, digamos assim, um certo interesse do [...] (NURC, p. 125, l. 737)

Falante não-escolarizado:

(13) A cidade deveria ter mais luz. (Fal. não-esc., p. 12, l. 17)

(14) Então, eu acho, acharia que é uma coisa que devia ser evitada, [...] (Fal. não-esc., p. 5, l. 26).

Nessa trajetória, os falantes do português buscam novo auxiliar para o futuro. Essas for- mas analíticas representam uma das construções românicas possíveis para o futuro: vado + infinitivo. Ex.:

(15) E quando a gente vai comprar carne, a gente pede como? (Fal. não-esc., p. 21, l. 29) (16) Você vai fazer muita promoção pra chamar a freguesia. (Fal. não-esc., p. 22, l. 37).

Além do mais, percebe-se que, no português atual, em específico, na língua coloquial, o futuro pode ser claramente expresso pelo contexto. Isso já aconteceu no latim vulgar tardio e acontece, atualmente, não apenas em dialetos italianos, mas também na fala coloquial do portu- guês.

No documento Do português arcaico ao português brasileiro (páginas 182-188)