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No Portugal pós-Aljubarrota

No documento Do português arcaico ao português brasileiro (páginas 104-107)

Os finais do século XIV e inícios do século XV caracterizam-se pelos desdobramentos sócio-históricos decorrentes da tensão existente com Castela e das constantes campanhas e lutas contra esse reino, que fizeram com que se evidenciasse “a diferença entre os Portugueses e os outros, isto é, aqueles que falavam outra língua, tinham outros costumes e se comportavam como inimigos” (Mattoso, 2000: 16).

Portugal, após a importante Batalha de Aljubarrota, passa a contar com uma nova Dinas- tia, com a subida de D. João I ao trono, e conseqüentemente com uma nova ordem social, que desloca os interesses políticos do Norte para o Centro-Sul do País.

Como afirma Cardeira (1999: 12), apoiando-se em Castro (1991):

Alguns períodos históricos parecem ter sido particularmente favoráveis à difusão de mudanças. O período do português médio tem sido encarado como um período de transição da língua medieval para a clássica.

O que chama de português médio – que para a taxionomia cronológica adotada para a história do português, pelo PROHPOR (Programa para a História da Língua Portuguesa), seria a segunda fase do período arcaico da língua – é o momento em que diversos fatos lingüísticos se evidenciam na direção das mudanças que se iriam efetivar um pouco mais adiante na língua portuguesa.

Para os anafóricos aqui estudados, seria, segundo o que demonstra o estudo de Teyssier (1981), o momento do desaparecimento do en(de) e a sinalização do processo de gramaticalização do (h)i para o aí.

Teyssier (1981: 19) não encontra uma única ocorrência de en(de) na Crônica de D. Pedro, de Fernão Lopes, enquanto morfema livre. Diz, entretanto, que “le cas le plus fréquent est l’emploi de esse comme anaphorique simples”.31

É claro que outras formas já deveriam procurar assumir o papel antes reservado ao en(de), já que só pelos olhos do futuro se pode então enxergar o passado, esse elemento não sobreviveu ao português moderno.

Ende e hi no período arcaico do português

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Observando o corpus selecionado para essa sincronia, a impressão de Teyssier logo se confirma. Não há uma única ocorrência de en(de) na Vida de Santo Aleixo. Não se realiza uma só vez na Vida de Tarsis, editada por Martins (1985).

Muidine (2000:150), da mesma forma, ao analisar seu corpus, verifica que “a partir do século XV não foi encontrada qualquer ocorrência do pronome en(de)”.

Teria sido essa uma “batalha” definitivamente perdida para esse pronome se não fosse por um documento em especial.

A Crónica de Santa Maria de Íria, edição de José Antônio de Souto Cabo (2001), revela diversas ocorrências desse elemento pronominal em seu texto.

A par de realizações locucionais semelhantes às detectadas no Foro Real compostas por dende, tais como dende en diante ou dende a, apresentadas em lxi) e lxii), dende aparece, então, com um uso não antes previsto, como nos exemplos lxiii), lxiv) e lxv), na seqüência:

lxi) I ata que o corpo de santiago foi tragido a Conpostella. Et dende en diante apparescerá porla presente escriptura.

lxii) II En este tenpo senoreavan dous reis a Galiza, he a saber: rei Miro a Lugo et rei Arriamiro a Bragãa. O qual rei Arreamiro dende a tres anos se finou, et el rei Miro senoreou a Bragãa et sua terra, et toda Galiza.

lxiii) III Outrosi registiron con o arçobispo don Rodrigo o cabildo de Santiago enna villa de padron acerca de dous anos, fasta que se descerquou a [cibdade]i et se partio [dende] i o conde

de Trastamar.

lxiv) IV Et don Pai Dias, potestade et justiça tenporal, por força entrou [a prelacia et senorio da eglleja]i, mais, porlo divinal juizo, foi [dende]i lançado porlos caballeiros.

lxv) VI foi a [Purtugal]i a visitar as posisõos da Eglleja de santiago et trouxo [dende]i os santos

corpos de San Froitoso, et de San Silvestre.

Nessas ocorrências, dende serve de adjunto a verbos do tipo V,[DP] e V [—DP,(PP)], mas contrariamente a situações como as verificadas no Flos (cf. por exemplo vi) e vii)) constitui um PP, não um DP como se tem defendido até aqui, parecendo demonstrar que a inserção da preposição de já é necessária para atribuição de Caso oblíquo a esse elemento.

Outrossim, sua representação semântica co-referencia antecedentes de natureza de traço [+locativo]/[+físico] antes mais relacionados ao pronome (h)i, se se considerar a questão da freqüência de uso. Se proposta uma atualização para o português contemporâneo, muito prova- velmente um falante de hoje empregaria o daí, caso tivesse de preencher a posição ocupada por dende.

A forma ende é encontrada 34 vezes no total, não ocorrendo uma única vez a variante en:

lxvi) II perdeuse a memoria d[o lugar en que fora sepultado o copor de Santiago]i, et creceron

[ende]i grandes matos et arvores, entanto que non avia del memoria ningu)a en Espan)a.

lxvii) III Et dali en diante partironse para suas terras, non lle fezeron mais ajuda. estes condes era hu)u Pero Alveres de Cabreira, conde de Lemos, et outro o conde de Benabente. Porlo qual

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do portugûes arcaico ao português brasileiro

o arçobispo ficou enna Rocha Branqua de Padron, et alli se reparava con muitas ajudas que lle [ende]i fazian;

lxviii) III Et quando el rei et todolos que [ende]i32 estavan viron atan grande miragre foron

moito espantados.

lxix) IV Et morto Froila, reinou don Afonso, fillo de Ordonio, seis anos et seis messes. Et vee)o a [Santiago]i en romaria et dou [ende]i muitas joias et privillegios.

lxx) IV Et foi o decimo obispo d[a santa seen de santiago]i, o qual acrecentou as onras, dignida-

des, familias, rendas et votos do santo apostollo Santiago et fezo [ende]i moitas boas obras.

lxxi) VI enviou outra vez a [Roma]i os honrados, seus canonigos, Ungo et Diego, os quaes lhe

trouxeron as seguintes leteras para fazer [ende] i cardeaes.

lxxii) VI Et porque [a santa Eglleja de Conpostella] i, que lle porla graça de Deus fora encomen-

dada, fora por gran tenpo desolada de pastor non avendo [ende]i obispo nin clerigos.

lxxiii) VI Et fezo outras cousas [en derredor da eglleja]i moi ben obradas, et fezo outras cousas

[ende] i moito boas.

O ende comporta-se como sua variante dende, antes observada, como podem atestar os exemplos.

Em relação ao (h)i, este está presente em todos os textos do corpus.

Para Teyssier (1981:24), ainda na língua de Fernão Lopes, “hi y a le sens anaphorique, désignant un lieu dont il vient d’être question dans le contexte”33

Na Vida de Tarsis, o hy é encontrado uma única vez:

lxxiv) e e)trou na primeira casa e achararom hu)u) leyto mui boo de muitos panos de grande vallor: E o abbade lhe disse: – A hy outra casa mas escusada e ascondida?

Discordando da análise anteriormente realizada em Machado Filho (2001: 88), que assu- miu uma interpretação anafórica para o hy na sentença acima, não parece que esse elemento possa se referir a qualquer antecedente explícito no enunciado. Talvez possa ser interpretado como um elemento locucional com o verbo haver, como antes se verificou no Flos Sanctorum.

Na Vida de Santo Aleixo, o hi, enquanto morfema livre, ocorre 07 vezes, contra apenas 03 ocorrências na Crônica de Santa Maria de Íria.

O sentido [+locativo]/[+físico] é determinante em ambos os documentos, funcionando em todos os casos como adjunto verbal, em VPs do tipo V,[DP] e V, [—DP]. A única diferença que pode ser estabelecida é em relação à representação gráfica, sempre apresentada com a forma hi, no primeiro, e com a i, no segundo.

Eis as ocorrências na Crônica de Santa Maria de Íria:

lxxv) III Et o arçobispo de [santiago] i don Rodrigo de Luna, ultimo pasado, que [i]i jaz sepulta-

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lxxvi) III Esta gente tenia el ja achegada para se lançar sobre [Santiago]i, et Deus tevo por ben

de o levar para si. Et quada hu)us foronse para suas casas salvo oitenta omes d’armas que [i] i

tiina o conde de Lemos.

lxxvii) IV preguntou cuja era [aquella cassa et aquel lugar en que lle asi morreran quantos consigo tragia] i. Et diseronlle que era do apostollo Santiago, discipulo de Jhesu Christo, fillo da

Virgeen Maria, que [i] i jazia sepultado.

E na Vida de Santo Aleixo alguns exemplos:

lxxviii) F150vL10 7 rogou o. que entrasse [dentro na egleia] i Eesto todo uirom aqueles que [hi]i

stauã Edesali e) deãte começarõ no de honrar mujto.

lxxix) F150vL22 Ca eu pera [outro logar]i. nõ yrey. ne) pera outra casa ne) hu)a. se nõ acasa de

meu padre. por que creo que ia me [hi] i nõ conheceram.

lxxx) F152vL23 Eagora he roto omeu spelho. Epereceu amjnha sperança. Eago ra ouue door que nu)ca ha de auer fim. Eas gentes todas que [hi] i34 stauã. Ouuj)do tod[as] esta cousas.

chorauã muj dooridame)te.

Resumindo as observações sobre o comportamento desses pronomes na época das primei- ras gerações de príncipes de Avis, o ende é inesperadamente detectado na Crônica de Santa Maria de Íria, documento da segunda metade do século XV, contrariando o que se tem afirmado sobre o período de seu desaparecimento.

Apresenta-se como adjunto de verbos em construções inacusativas ou transitivas, denun- ciando um sentido de co-referência semântica de traço [+locativo]/[+físico], assim como cons- tituindo PPs, nomeadamente com a realização da forma dende, não-locucional.

O (h)i demonstra uma alteração de alguma forma relevante no seu emprego, já que parece se restringir à função de adjunto verbal, não ocorrendo mais nesse período como complemento ou adjunto nominal ou adjetival, ao menos no material selecionado.

No documento Do português arcaico ao português brasileiro (páginas 104-107)