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Fundamentação teórica

Uma vez que a hipótese dessa pesquisa está ligada ao processo de gramaticalização, torna- se necessário não só conceituar esse tipo de mudança lingüística, como também a corrente em que se insere, o Funcionalismo.

O Funcionalismo

Caracterizar o funcionalismo é uma tarefa difícil, já que os rótulos que se conferem aos estudos ditos “funcionalistas” mais representativos geralmente se ligam diretamente aos nomes dos estudiosos que os desenvolveram, não a características definidoras da corrente teórica em que eles se colocam (Neves, 1997: 01).

Neves afirma, pois, que dentro do que vem sendo denominado ou autodenominado funci- onalismo, existem modelos muito diferentes. Contudo, entre esses modelos, podem ser destaca- das similaridades suscetíveis de se constituirem num denominador comum, capaz de fornecer a caracterização básica do que seja uma teoria funcionalista da linguagem. Martinet (1978 apud Neves,1997: 02) aponta como objeto da verdadeira lingüística, a determinação do modo como as pessoas conseguem comunicar-se pela língua. Neves indica que:

Qualquer abordagem funcionalista de uma língua natural, na verdade, tem como questão básica de interesse a verificação de como se obtém a comunicação com essa língua, isto é, a verificação do modo como os usuários da língua se comunicam eficientemente.

Assim, o que a análise funcionalista examina é a competência comunicativa, consideran- do as estruturas das expressões lingüísticas como em um quadro de funções, no qual cada função é vista como um diferente modo de significação na oração; portanto, paralelamente à noção de que a linguagem é um instrumento de comunicação, encontra-se, no funcionalismo, um trata- mento funcional da própria organização interna da linguagem.

Neves define a gramática funcional, como uma teoria da organização gramatical das lín- guas naturais que procura se integrar em uma teoria global da interação social e entende a gramática como acessível às pressões do uso.

O desempenho do não como prefixo no português brasileiro contemporâneo

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Em relação à competência comunicativa, o funcionalismo avalia a capacidade que os indivíduos têm tanto para codificar e decodificar expressões, quanto para usar e interpretar essas expressões satisfatoriamente.

Gramaticalização

O processo de gramaticalização tem sido objeto de estudos variados e conceituação diversa. Lehmann (1982: VI) denomina gramaticalização, o processo que consiste na passagem de um item lexical para um item gramatical.

Heine e Reh (1984 apud Castilho, 1997: 26) conceituam gramaticalização como “uma evolução na qual as unidades lingüísticas perdem em complexidade semântica e em substância fonética”. Consideram-na um tipo especial de mudança lingüística situada no continuum que se estabelece entre unidades independentes e unidades dependentes tais como clíticos, partículas auxiliares, construções aglutinativas e flexões.

Hopper e Traugott (1993: 18) a definem como “the study of grammatical forms, however defined, viewed as entities undergoing processes rather than as static objects.”2

Castilho (1997: 31) especifica que gramaticalização é:

o trajeto empreendido por um item lexical, ao longo do qual ele muda de categoria sintática (=recategorização), recebe propriedades funcionais na sentença, sofre alterações morfológicas, fonológicas e semânticas, deixa de ser uma forma livre, estágio em que pode até mesmo desaparecer, como conseqü- ência de uma cristalização extrema.

A preocupação com a origem e o desenvolvimento de categorias gramaticais é, como explicam Heine, Claudi e Hünnemeyer (1991: 05-26) muito antiga e parece datar do séc X, quando já os chineses distinguiam símbolos lingüísticos plenos de símbolos lingüísticos vazios. Os autores fazem referência ao chinês Zhou Bo-qi, que, já nos séculos XIII e XIV, desenvolveu estudos relacionados a esse tipo de mudança lingüística.

A idéia de que as formações gramaticais advêm de itens lexicais (lexemes) e de que afixos provêm de formas livres foi expressa na França, em 1746, pelo filósofo Etienne Bonnot de Condillac. Mais tarde, em 1786, John Tooke declarou que os advérbios, as conjunções e as preposições derivavam de abreviação ou mutilação das palavras necessárias: nomes ou verbos. Desse modo, Tooke é considerado o pai dos estudos de gramaticalização.

No séc XIX, vários estudiosos referiram-se ao assunto:

Wüllner (1831) tratou instâncias do desenvolvimento de palavras independentes para flexões e discutiu a transição de construções perifrásticas para morfemas temporais.

Whitney (1875) apresentou etimologias insustentáveis, mas ofereceu importantes reflexões sobre mudança semântica intra-lexical e passagem de verbos plenos a auxiliares de tempo e modo. Wegener (1885) formulou descrições de padrões pragmático-discursivos que desenvol- vem constituintes morfossintáticos.

Gabelentz (1891) apresentou a proposta de que a mudança lingüística desenvolve-se em espiral; estabeleceu que os afixos de hoje foram, anteriormente palavras independentes e admitiu duas forças propulsoras da mudança: “indolência ou facilitação e distintividade”.

Bréal (1897) aponta que itens (lexicais) de dadas categorias se afastam das mesmas e se tornam os expoentes da concepção gramatical neles embutida.

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do portugûes arcaico ao português brasileiro

Como se pode verificar, a preocupação com esse tipo de mudança é realmente antiga e vem se desenvolvendo através dos séculos.

No panorama da lingüística contemporânea, destacam-se os estudos de:

Traugott (1980) que propõe uma abordagem baseada em princípios de mudança de senti- do, fundamentada nas funções da linguagem de Halliday (1970b) e nos princípios de Heine e Reh (1984) que relacionam algumas observações mais gerais que ocorrem durante o processo de gramaticalização.

Bybee e Pagliuca (1985) influenciados por Givón (1981), dedicam-se ao estudo da alta freqüência de uso do elemento em processo de gramaticalização e do processo de bleaching (enfraquecimento semântico).

Hünnemeyer (1985) realiza estudo detalhado, em Ewe, do continuum que parte dos verbos em direção às preposições.

Haiman e Thompson (1988) defendem que os processos de coordenação e subordinação emergem de estruturas discursivas que se tornam convencionais e daí gramaticalizam-se; desse modo, combinações de orações podem ser interpretadas como gramaticalização da organização retórica do discurso.

Sweetser (1988) propõe que o bleaching (desbotamento) seja analisado como processo de dispersão dos aspectos centrais do significado em direção a domínios-alvo; o único componente que permanece inalterado é a estrutura tipológica, imagético-esquemática das entidades concernentes. Contudo, o que parece perda representa também ganhos, visto que o significado do domínio-alvo é adicionado ao significado da entidade transferida.

Willet (1988) apresenta hipóteses sobre a generalização semântica que pode ser observada nos processos de gramaticalização, sugerindo que essa generalização é decorrente, em grande parte, do que ele denomina hipótese de extensão metafórica, através da qual o significado concreto de uma expressão é aplicado a contextos mais abstratos.

Heine Claudi e Hünnemeyer (1991) formulam a proposta de que, no processo de gramaticalização as formas assumem significados cada vez mais abstratos a partir da noção de espaço, passando (ou não) pela noção de tempo e atingindo a categoria (mais abstrata ainda) de texto.

Finalmente, a mais nova linha de pesquisa, A Teoria da cognição, representada por Sweetser (1988) e Heine et alii (1991) encara a gramaticalização como um fenômeno externo à estrutura da língua e pertencente ao domínio cognitivo.

Neste trabalho lançou-se mão também dos métodos da Sociolingüística Laboviana em virtude de a gramaticalização do advérbio não, como prefixo, envolver fatores de ordem social e pelo fato de essa teoria possibilitar a quantificação e análise da variação dos dados, através do pacote de programas Varbrul.

Corpora

Foram utilizados, como corpora, um jornal de grande circulação no estado da Bahia – Jornal A Tarde e o Dicionário da Língua Portuguesa (1999) de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.

Foram consultados 123 exemplares desse jornal, correspondentes a todos os dias dos meses de julho e agosto; novembro e dezembro do ano 2000.

O desempenho do não como prefixo no português brasileiro contemporâneo

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O levantamento das amostras nos exemplares consultados caracterizou-se como um levan- tamento lexical, isto é, foram registrados os contextos nos quais se apresentou a primeira ocorrên- cia de um substantivo, adjetivo e/ou particípio empregado como adjetivo, portador de um dos prefixos tradicionais (a-, des-, in-) ou antecedido do não, prefixal.

Nos exemplares do jornal, foram recolhidas 898 ocorrências de bases com prefixos tradi- cionais e 199 bases prefixadas com o não, totalizando 1097 ocorrências de itens lexicais com prefixos negativos.

No Dicionário da língua portuguesa, foram recolhidos 2.349 itens lexicais, portadores dos prefixos tradicionais de negação (a-, des- e in-) e 53 entradas de itens lexicais prefixados com o não.

Os itens lexicais portadores de prefixos tradicionais foram registrados em dois quadros distintos: o primeiro, contendo os itens lexicais cuja descrição do sentido apresenta-se de forma analítica, isto é, a partir do emprego de orações do tipo: Que não é..., Que ou quem não é..., Que não está, etc., ou através de um antônimo lexical. O segundo, contendo os itens lexicais cuja descrição principal ou auxiliar do significado, é feita de forma sintética, isto é, a partir do emprego do não, como prefixo.