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1 O português brasileiro e o português europeu contemporâneos: alguns aspectos da diferença

No documento Do português arcaico ao português brasileiro (páginas 120-124)

Começo este item na companhia de Celso Cunha, um dos lingüistas brasileiros que mais se deteve e escreveu sobre o português no/do Brasil, assim sempre se referia ele ao português brasileiro. Diz em um conhecido artigo – Em torno do conceito de brasileirismo:

Os estudos sobre o português do Brasil revelam, por parte de seus autores, uma permanente, senão exclusiva, preocupação com os fatos peculiares a nossa forma expressional, inferidos de um contraste com os vigentes no português europeu (1987: 03).

Nem poderia ser, a meu ver, diferente. O português brasileiro descende do europeu e, no Brasil, tomou a sua forma na complexa interação entre a língua do colonizador e, portanto, do poder e do prestígio; as numerosas línguas indígenas brasileiras; as também numerosas línguas africanas chegadas pelo tráfico negreiro, oficial entre 1549 e 1830, não oficial antes e depois desses limites; as línguas dos que emigraram para o Brasil da Europa e da Ásia, também muitas, sobretudo a partir de meados do século XIX. Dessa potencial Babel lingüística, foi se definindo, ao longo desses quinhentos anos – pouco tempo para a história de uma língua – o formato brasileiro contemporâneo da língua portuguesa.

1.1 Aspectos fônicos

Ao ouvir um brasileiro e um português, algum estrangeiro, ou mesmo um brasileiro ao ouvir um português e vice-versa, a primeira impressão que se instala é a da diferença do sotaque, vocábulo da linguagem corrente, que caracteriza a pronúncia, também vocábulo da linguagem corrente, diferenciadora do brasileiro em relação ao português. Esse sotaque/pronúncia recobre distinções fônicas, tanto suprassegmentais ou prosódicas, interpretadas ainda imprecisamente, a meu ver, pelos lingüistas, como diferenças fônicas segmentáveis, as realizações fonéticas pró- prias ao sistema vocálico e consonântico do português brasileiro e do europeu.

Em linhas gerais, no que se refere às vogais em posição acentuada, a diferença está na oposição conhecida do /α/ : /a/, vogal central recuada e não recuada, respectivamente, que tem como exemplo muito evidente a oposição que fazem os portugueses entre a primeira pessoa do plural dos verbos da primeira conjugação: trabalh/α/mos para o presente e trabalh/a/mos para o pretérito perfeito ou, para dar outro exemplo sem repercussão na morfologia: sempre p/a/ra, quer seja verbo quer preposição, no português brasileiro e p/a/ra, verbo, opondo-se a p/α/ra preposição, no europeu.

Quanto ao sistema vocálico não-acentuado, aí a diferença se instala vigorosamente: en- quanto os brasileiros têm vogais pré- e pós-acentuadas bem perceptíveis /i e ε a o  u/, os portugueses centralizam e/ou alteiam as não acentuadas, por vezes, quase inaudíveis ao ouvido do estrangeiro e também do brasileiro: /i ∂α u/. Na posição não-acentuada final, enquanto, em geral, os brasileiros têm /i a u/, os portugueses /∂ a u/. São sistemas vocálicos, em termos descritivos estruturais, profundamente diferentes, que trazem efeitos prosódicos diferenciadores marcantes. Embora haja no português europeu o /e/, o /o/ e o /ε/ e // pretônicos, os dois primeiros são resultados da redução dos ditongos /ei9/ e /ou9/ e os dois últimos das chamadas crases históricas – pr/ε/gar “fazer uma pregação” que se opõe a pr/∂/gar “usar um prego”; c//rar que se opõe a m/u/rar. No Brasil será pr/ε/gar, variando regionalmente com pr/e/gar e

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c//rar, m//rar, variando regionalmente, com c/o/rar e m/o/rar, mas nunca a forma centraliza- da e alteada do português europeu pr/∂/gar, m/u/rar.

O que se pode chamar de reduções vocálicas no português europeu e ausente no brasileiro dá ao ouvinte estrangeiro a impressão auditiva de o português da Europa ser mais consonântico e o brasileiro mais vocálico, sem pretensões, é claro, de utilizar terminologias especializadas.

Essa impressão é reforçada pelo fato de o português brasileiro enfraquecer as consoantes em posição final da palavra, posição em que o português europeu apresenta articulação forte. Vocalizamos o <-l> final em /u9/, ou, no vernáculo de não-escolarizados, sobretudo de áreas rurais, é eliminado, forma essa estigmatizada socialmente (anima/l/ no português europeu, anima/u9/, no geral do Brasil e anim/a/). Aspiramos o <-r> final ou o reduzimos a zero (ama/h/, am/a/), embora seja encontrado em áreas brasileiras o /r/ vibrante, próprio ao português europeu. Sobretudo na morfologia do plural dos elementos nominais, marcamos o /s/ pluralizador em algum lugar do sintagma nominal, nem sempre o do primeiro elemento nominal, ou marcamos em todo o sintagma, variação sociolingüística que caracteriza o português brasileiro e não o europeu.

Curiosamente, e sem pretensões de teorizar, articulamos claramente no Brasil as vogais não-acentuadas, mas enfraquecemos as consoantes finais, o inverso ocorrendo no europeu.

Outro aspecto diferenciador quanto ao sistema consonântico são as palatalizações de den- tais seguidas de semivogal ou vogal anterior, o que não é geral no Brasil, mas não ocorre em Portugal, pelo que mostram os estudos geodialetais: /t9/ia, /d9/ia, den/t9/e, on/d9/e são tipicamen- te brasileiros. Essas palatalizações que ocorrem em outras áreas da România, ainda se ampliam, em certas áreas brasileiras, quando a semivogal anterior palatalizadora precede a consoante dental: o/ts9/o, pe/ts9/o para oito e peito, embora essas palatalizações sejam socialmente estigma- tizadas, o que não ocorre com as outras.

A simplicidade desse perfil fonológico aqui apresentado recobre complexas análises fonológicas teóricas já realizadas, mas ainda se esperam interpretações históricas para muitos desses aspectos descritos. Por que razões é assim lá e aqui não?

1.2 Aspectos sintáticos

O ouvinte estrangeiro não perceberia de imediato as profundas diferenças sintáticas – o português e o brasileiro ao ouvirem-se as percebem – diferenças que permitem aos sintaticistas, sobretudo gerativistas, admitirem que, em termos, pelo menos, do modelo chomskiano da década de oitenta, o de princípios e parâmetros, a “gramática” brasileira, em pontos cruciais, diverge da portuguesa.

Desde a proposta hoje já muito conhecida de Fernando Tarallo, divulgada em tradução brasi- leira em 1993 – Diagnosticando uma gramática brasileira: o português d´aquém e d´além mar ao final do século XIX, pesquisadores brasileiros gerativistas e sociolingüistas vêm, à exaustão, desvendando e buscando explicar, no âmbito dos seus quadros teóricos, as especificidades da sintaxe brasileira, que, exceto em contextos altamente formais de indivíduos bem preparados (direi, raros hoje), segundo a norma-padrão lusitanizante, se diferencia da sintaxe do português europeu. Muito recentemente um projeto luso-brasileiro – PBPE 2000 – reúne lingüistas brasileiros e portugueses com o objetivo de comparar em textos escritos não-literários as diferenças e identidades de nossas sintaxe. Do lado brasileiro lidera o projeto Mary Kato, da UNICAMP, e do português, João Andrade Peres, da Universidade de Lisboa. Esperam-se desse projeto novos dados, novas interpretações.

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Aqui, de uma maneira o mais sintética possível e sem pretensões teóricas, traçarei um perfil descritivo de algumas de nossas diferenças sintáticas, tal como o fiz para alguns aspectos fônicos.

Não se pode negar que um ponto central da diferença está no sistema pronominal, tanto na posição de sujeito, como de complemento, com reflexos inevitáveis nos possessivos e no paradigma das flexões número-pessoais do verbo.

No Brasil, com a expansão de você e do a gente como pronomes pessoais e com a redução do uso do tu e do vós, a 3ª. pessoa verbal se generaliza: temos hoje em convivência, no Brasil, um paradigma verbal de quatro posições (eu falo, ele, você, a gente fala; nós falamos; eles, vocês falam); outro de três posições (eu falo; ele, você, a gente fala; eles falam); outro de duas posições, dos menos escolarizados, ou não-escolarizados, sobretudo de áreas rurais, mas não só, que não aplicam a regra de concordância verbo-nominal (eu falo; ele, você, a gente, eles, vocês fala). Em algumas áreas geodialetais brasileiras, usa-se o tu, na fala corrente com o verbo na 3ª pessoa (tu fala) e, em reduzidas áreas, talvez a mais forte seja o litoral catarinense e sul riograndense, ao tu ainda se segue a flexão histórica (tu falas). Quanto mais é reduzido o paradigma flexional número-pessoal do verbo, mais necessário se faz o preenchimento do sujeito pronominal, perdendo assim o português brasileiro o chamado parâmetro pro-drop, possível no português europeu, em que essas reduções não ocorrem tal como no português brasileiro.

O uso extensivo de você, em lugar de tu, cria no português brasileiro uma ambigüidade para o seu, possessivo que pode referir-se ao interlocutor ou não, ambigüidade desfeita no discurso (– Comprei seu livro ontem ou Zélia Gattai escreveu um novo romance, seu livro está sendo muito vendido). Ambigüidade também desfeita, estruturalmente, pelo dele, que passa a adquirir a condição de pronome possessivo (Saramago escreveu um novo romance, o livro dele está sendo muito vendido).

Quanto aos pronomes complementos clíticos, sobretudo os de terceira pessoa – o, a, os, as – estão sendo eliminados no português brasileiro, preferindo-se, em seu lugar, ou o sintagma nominal pleno ou, embora estigmatizado pelos altamente escolarizados, o pronome sujeito correspondente, o chamado ele acusativo ou ainda o apagamento do pronome complemento, estratégia de esquiva muito freqüente (– Seu filho estava no Shopping. Eu vi seu filho lá ou ...eu vi ele lá ou ...eu vi lá). O apagamento do objeto direto pronominal clítico é corrente no português brasileiro, movimento inverso ao preenchimento do sujeito.

Ainda quanto aos pronomes complementos clíticos, ressalta o lhe, originalmente um dativo, correspondente ao objeto indireto, usado como acusativo, objeto direto, correlacionado ao pro- nome sujeito você (– Você gosta muito de cinema. Eu lhe vejo sempre no Multiplex). O lhe acusativo varia com te, mesmo sendo o tratamento você (– Você gosta de cinema. Eu te vejo sempre no Multiplex). Nos exemplos dados, o clítico canônico – o/a – pode ocorrer, no uso cuidado, monitorado, de escolarizados. A questão do não-uso do clítico de 3ª pessoa – o, a, os, as – já ficou demonstrado em trabalho de Vilma Reche Correa (1993) que é adquirido na escola e, curiosamente, primeiro na escrita depois na fala, o que mostra ser um recurso sintático, efeito de aprendizagem pela escolarização, e não adquirido, naturalmente, na infância.

Ainda sobre os clíticos e aí, não só os de 3ª pessoa, nós, brasileiros, quando os usamos, preferimos a próclise. A ênclise é hoje mal aprendida na escola, tanto que, cada vez mais, encontramos em textos de estudantes e em outros, como os jornalísticos, a ênclise nas posições em que, historicamente, sempre se usou a próclise, como nas orações subordinadas e nas negativas

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(O vestido que dei-lhe de presente ficou bom; Eu não disse-lhe que viesse!). Há ainda aceitação normal e generalizada dos clíticos na primeira posição da sentença, exceto os acusativos o, a, os, as (– Lhe disse que não viesse; – Me passe esse livro).

Ainda quanto ao sistema pronominal, no que se refere aos relativos, utilizamos freqüentemente o pronome lembrete (o professor que eu estudei inglês com ele voltou), em desproveito da estrutura canônica (o professor com quem eu estudei inglês voltou).

O funcionamento do sistema pronominal do português brasileiro, não há como negar, distancia-se daquele do português europeu e cria problemas de complexo de insegurança lin- güística que atinge aqueles que, no processo de escolarização, são ‘corrigidos`, quando o são, pelo padrão da gramática normativo-prescritiva de tradição lusitanizante.

Ocorre outra questão, para concluir esse breve perfil sintático do português brasileiro e que o marca fortemente, que não tem a ver com o sistema pronominal: trata-se da variação da concordância de número, no interior do sintagma nominal (SN). A flexão redundante, que exige a marcação do plural em todos os elementos do SN (os nossos melhores estudantes). A grande especialista nesse tópico, a sociolingüista Martha Scherre, vem investigando essa variação e afirma que não é apenas o primeiro elemento da sentença o preferencial para a marcação do plural, como muitas vezes se afirma e como ocorre, em geral, nos crioulos de base portuguesa. A variação é mais complexa. Demonstra isso essa Autora, em vários trabalhos, sobre corpora diferentes do português brasileiro. Veja-se, por exemplo, seu artigo síntese, elaborado com Anthony Naro – A concordância de número no português do Brasil: um caso típico de variação inerente (1997).

1.3 Outros aspectos

Se se distingue o português brasileiro do europeu no que se refere à fonologia e à sintaxe, que dizer do léxico, parte da estrutura mais sensível às condições sócio-históricas e culturais externas? O português brasileiro deve, certamente, a sua riqueza lexical às línguas indígenas, sobretudo as do tronco tupi, mas não só; às línguas africanas, sobretudo as do grupo bântu, mas não só; às línguas dos emigrantes que se fixaram em algumas regiões do Brasil e, sobretudo, diria, a uma tendência criativa, que o torna aberto e, sem preconceito, em relação aos estrangeirismos.

Contudo, temos um stock lexical, não só nos instrumentos gramaticais, mas também um vocabulário básico comum e constante, em relação ao português europeu e que permite, com alguns mal-entendidos de permeio, a comunicação entre brasileiros e portugueses, desde que haja boa vontade de ambos os lados.

Nessa abertura para a criatividade lexical, não posso deixar de ressaltar a espantosa liber- dade que ocorre na antroponímia brasileira, em que a imaginação criativa corre à solta na escolha dos nomes de batismo no Brasil.

Para finalizar este item sobre alguns aspectos da diferença, há muito ainda a estudar no interior da estrutura, mas há, sobretudo, um terreno virgem que são os usos discursivos, conversacionais, pragmáticos, transfrásticos enfim, que distinguem a interação lingüística no Brasil e em Portugal. Não posso deixar de lembrar a observação de um estudante de pós-gradua- ção, que ouvindo a Rádio e Televisão Portuguesa (RTP), pela tv a cabo, dizia-me que chegara à conclusão que a maior dificuldade que tinha para entender os programas portugueses estava nos usos discursivos-argumentativos que nas diferenças estruturais no interior da sentença.

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Feito esse balanço geral, sem pretensões teóricas, vale perguntar se a tese tão cara a Serafim da Silva Neto (1950, 1960), ou seja, a tese do conservadorismo do português brasileiro em relação ao da Europa será ainda defensável. Digo que não posso, com todo o respeito que tenho pela sua obra pioneira sobre a língua portuguesa no Brasil, assim sempre por ele designado, concordar com o Mestre Serafim da Silva Neto.

2 Condicionamentos sócio-históricos na formação do

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