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gramaticalização da forma verbal de futuro do latim ao português

No documento Do português arcaico ao português brasileiro (páginas 177-182)

Introdução

S

abe-se que a gramaticalização é um dos temas mais discutidos na teoria funcionalista atual, podendo esse processo referir-se não apenas a um estudo sincrônico, mas também diacrônico.

Diante da observação da coexistência de formas variáveis para expressar o futuro no português atual, procura-se investigar a etimologia dessa forma verbal, buscando-se, desde os primórdios da língua portuguesa, o início das mudanças ocorridas e tentando identificar os processos de gramaticalização envolvidos.

Examinou-se, inicialmente, um corpus constituído de inquéritos do Projeto NURC, que estuda a Norma Urbana Culta de Salvador, bem como de alguns questionários aplicados a falantes não-escolarizados da mesma faixa etária, a fim de observar os empregos do futuro verbal em diversos estratos sociais do português atual do Brasil e de documentar a mudança em curso nesse momento. Em seguida, examinou-se um corpus constituído dos dois primeiros livros dos Diálogos de São Gregório, na sua versão considerada a mais antiga do português do século XIV, com o objetivo de identificar o início do uso do futuro perifrástico com o auxiliar ir no português atual.

Com a continuidade da pesquisa, estudar-se-á o emprego do futuro verbal entre os séculos XIV e XX.

1 Gramaticalização

A gramaticalização é um processo diacrônico que se caracteriza pelo estudo de mudanças que afetam a gramática da língua, quer fonológicas, quer morfológicas, sintáticas, ou semânti- cas. Assim, os itens são estudados como entidades em processo e não como formas estáticas.

A gramaticalização é de grande interesse nas pesquisas funcionalistas, tendo sido estudada não só por lingüistas estrangeiros, como B. Heine, U. Claudi e F. Hünnemeyer (1991), P. Hopper e E. Traugott (1993), como também no Brasil: S. Votre (1994), Ataliba T. de Castilho (1997), M. L. Braga (1999), entre outros.

Nos vários estudos atuais sobre a gramaticalização, há uma diversidade de perspectivas. Observa-se a existência de um desacordo quanto ao termo para designar esse processo: gramaticização, gramatização, gramaticalização ou aspectos do processo: apagamento semânti- co, condensação, enfraquecimento semântico, morfologização, reanálise, redução, sintaticização. Essas denominações têm sido empregadas como sinônimos ou quase sinônimos, embora se refi- ram, algumas delas, apenas a características sintáticas ou semânticas do citado processo.

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O primeiro a empregar o termo gramaticalização foi Antoine Meillet (1948), em 1912, tendo sido o fenômeno por ele definido como a atribuição de um caráter gramatical a uma palavra anteriormente autônoma.

Esse lingüista demonstrou, em seu estudo, a procura não apenas do étimo, mas a transfor- mação das palavras nas classes gramaticais. Segundo esse autor, as novas formas gramaticais surgem através de dois processos: analogia, isto é, quando novos paradigmas se formam a partir de modelos existentes, e gramaticalização, quando ocorre a passagem de uma palavra autônoma a elemento gramatical. Dessa forma, enquanto a analogia renova formas e deixa o sistema intacto, a gramaticalização cria novas formas e introduz categorias sem expressões lingüísticas. A gramaticalização também pode afetar cada palavra, estendendo-se à sentença. A. Meillet (1948) considera que há três classes de palavras: principais, acessórias e gramaticais, ocorrendo entre elas uma transição gradual.

A. T. de Castilho (1997: 31) define esse processo da seguinte maneira:

Gramaticalização é o trajeto empreendido por uma forma, ao longo do qual, ela muda de categoria sintática (= recategorização), recebe propriedades funcionais na sentença, sofre alterações semânticas e fonológicas, deixa de ser uma forma livre e até desaparece como conseqüência de uma cristalização extrema.

Esse autor observa que, em sentido mais amplo, esse processo pode ser assim definido: Gramaticalização é a codificação de categorias cognitivas em formas lingüísticas, aí incluídos a percep- ção do mundo pelas diferentes culturas, o processamento da informação etc.

C. Lehmann, em 1982, assinala que a gramaticalização pode resultar em alterações gra- maticais e alterações semânticas.

As alterações gramaticais compreendem: sintaticização, morfologização, fonologização e zero ou desaparecimento.

A sintaticização, como o próprio nome indica, corresponde às mudanças sintáticas, inclu- indo-se aí os três subgrupos do processo de gramaticalização: recategorização, categorização funcional e relações intersentenciais.

A recategorização implica a mudança de classe gramatical, a partir dos elementos do léxico nome e verbo. P. Hopper e E. Traugott (1993: 104) propõem o seguinte continuum de recate- gorização:

Categoria maior [Nome, Verbo] > Categoria mediana [Adjetivo, Advérbio] > Categoria menor [Preposição, Conjunção, Pronome, Verbo auxiliar, Afixos].

A. T. de Castilho (1997: 39) apresenta um esquema geral da gramaticalização de um nome:

N > N relacional > Prep. secundária > Prep. primária > Clítico > Afixo.

A categorização funcional consiste no estudo da atribuição de propriedades funcionais a alguns aspectos da sintaxe. A. T. de Castilho (1997: 41-44) exemplifica esse subgrupo com a

Considerações sobre a gramaticalização da forma verbal de futuro do latim ao português

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gramaticalização do tópico, o preenchimento das funções de sujeito e de objeto direto no portu- guês do Brasil e a ordem dos constituintes funcionais.

O terceiro subgrupo é o das relações intersentenciais, cujos estudos no português demons- tram que há limites imprecisos entre alguns tipos de orações, como por exemplo: entre as orações coordenadas explicativas e as orações subordinadas causais, entre as orações coordena- das adversativas e as orações subordinadas concessivas etc.

A morfologização corresponde ao processo de perda de função e produtividade de morfemas, compreendendo a criação de formas presas: afixos flexionais e afixos derivacionais.

S. Svorou (1993, p. 35) propõe um “continuum de fusão” no processo de morfologização, no qual, são identificados estágios, como:

Quadro 01 – Continuum de fusão

No primeiro estágio, embraced, os elementos são unidades fonológicas independentes, formando uma unidade. Esse estágio refere-se a construções preposicionais e adverbiais. A freqüência de uso dessas formas conduz a uma cristalização, tornando-as itens gramaticais.

No segundo estágio, agglutinated, os morfemas encontram-se afixados, sendo, entretanto, identificáveis em contextos fonológicos.

No terceiro estágio, fused, os morfemas já afixados sofrem alteração fonológica.

Esse terceiro estágio de S. Svorou corresponde ao processo de fonologização. A fonologização compreende a fusão de formas livres com outras, que se transformam em formas presas. A. T. de Castilho (1997, p. 46) aponta como exemplo desse estágio a formação do futuro nas línguas românicas (lat. amare habeo > port. amarei).

No que se refere ao estágio zero, último estágio das alterações gramaticais, um morfema pode desaparecer, havendo a possibilidade de reiniciar-se o processo, quando para tal os falantes de uma língua empregam uma expressão perifrástica para representar o conceito da forma que caiu em desuso.

Um exemplo do estágio zero é o futuro sintético do latim, que desapareceu. Há uma tendência de o futuro sintético do português, também, vir a desaparecer.

Não há obrigatoriedade de ocorrência de todos esses estágios, podendo o item em enfoque chegar ao estágio zero ou não. A. T. de Castilho ainda constata que o estágio zero é o momento de exaustão da estrutura e anuncia a retomada do processo contínuo que é a gramaticalização.

As alterações semânticas correspondem principalmente a dois processos: a metáfora e a metonímia.

O importante desse processo é que a polissemia presente em muitos itens se deve ao processo metafórico. Dessa forma, não apenas a linguagem, mas a cognição e a linguagem operam metaforicamente.

Por outro lado, a mudança de sentido motivada por itens associados sintaticamente é denominado de metonímia. Esse tipo de alteração semântica refere-se basicamente a um proces- so estrutural.

Low fusion High fusion

(‘baixa fusão’) (‘alta fusão’)

embraced agglutinated fused

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Em vista disso, conclui-se que tanto a metáfora quanto a metonímia são transferências semânticas, sendo a primeira através da similaridade de percepção (analógica e icônica), e a segunda através da contigüidade (indexal).

Além dos processos de gramaticalização, alguns autores apontam os princípios, ou seja, propriedades inerentes à gramaticalização.

Ao serem apontados os princípios de gramaticalização, observa-se que há divergência entre os autores. C. Lehmann (1982) propõe cinco princípios: paradigmatização, obrigatoriedade, condensação, coalescência e fixação.

P. Hopper (1991) critica os princípios de C. Lehmann, argumentando que eles deveriam ser levados em conta em um estágio mais avançado do processo, e aponta os seguintes princípi- os, baseados nas camadas geológicas: estratificação (formas diferentes são usadas para expressar um significado, ex.: a gente / nós); divergência (ocorre uma bifurcação de um item, porém a fonte original pode permanecer como elemento autônomo); especialização (princípio de restrição, no qual há um estreitamento de variedades de escolhas formais, quando ocorre a gramaticalização; há possibilidade de que um item se torne obrigatório; ex.: quando a palavra amor passa a compor a locução prepositiva por amor de, há um estreitamento no significado desse nome ao figurar no novo contexto); persistência (mesmo depois que um item lexical torna-se item gramatical, atra- vés da gramaticalização, pode ocorrer que alguns traços do significado original acompanhem a nova forma gramatical; ex.: a gente, como pronome, se refere a um maior número de pessoas do que nós) e descategorização (ao se gramaticalizar, o item lexical (nome ou verbo) perde suas marcas morfológicas e propriedades sintáticas e assume atributos das categorias secundárias (adjetivo, particípio, preposição etc.); ex.: amor ao figurar em uma locução prepositiva perde marca de plural, de grau, não admite um determinante etc.).

Por último, A. T. de Castilho (1997) aponta quatro princípios para darem conta dos pro- cessos de gramaticalização: paradigmatização e analogia; sintagmatização e reanálise; continui- dade e gradualismo; unidirecionalidade.

Para se chegar à conclusão de que uma forma está mais gramaticalizada ou não, P. Hopper (1991) acredita que se deva aplicar os cinco princípios propostos por ele, pois as formas que estão em via de serem gramaticalizadas sofrem mudanças que causam perda da sua autonomia, tanto na forma, quanto no sentido.

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