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Espaço e tempo em adverbiais portugueses quinhentistas

Introdução

S

e solicitado a apresentar palavras que expressem tempo e espaço, um falante de português provavelmente nelas incluirá advérbios, já que tais noções estão comumente associadas a essa categoria morfossintática, geralmente definida como afeta a palavras que expressam circunstân- cias. Poderá, por outro lado, não atentar de pronto para as nuances espaciais e temporais escon- didas em nomes, adjetivos, verbos e alguns outros advérbios, por exemplo, as sutis distinções semânticas entre quase-sinônimos, como caminho – trajeto – percurso; lugar – local – locação – localização; perto – próximo; prévio – anterior; próximo – imediato ou de novo – outras vezes.

A curiosidade sobre a origem das palavras remete aos primórdios das indagações filosófi- cas de civilizações conhecidas e, embora largamente abordada por variadas teorias, não apenas lingüísticas, ainda é motivo de curiosidade, quiçá de perplexidade. Se as ditas palavras lexicais são capazes de produzir esses questionamentos, que dizer das palavras gramaticais, cuja origem ainda mais se esconde no entretecido das línguas? Como é sabido, a teoria da Gramaticalização, bastante desenvolvida nas últimas décadas, mas de inspiração bem mais antiga (a bibliografia sobre o tema cita os chineses, no século X, como os primeiros a se indagarem sobre as diferenças entre palavras lexicais e gramaticais), propõe-se a rastrear esse percurso de surgimento, admitin- do que itens ditos lexicais, de referentes concretos ou abstratos, vão gradativamente assumindo sentidos e funções intralingüísticos, num crescendo funcional e abstratizante, a partir de proces- sos fônicos (justaposições, fusões, reduções, reforços) e de processos semânticos (generalizações metafóricas, contaminações metonímicas). Assim, admite-se que as palavras gramaticais são etapas de processos diacrônicos, resultantes de mudanças que afetaram palavras lexicais, nos níveis semântico, sintático, mórfico e fônico. Postula-se, então, que uma forma atual de nome (categoria lexical) pode, no devir diacrônico, tornar-se uma forma de advérbio (categoria inter- mediária) e, posteriormente, uma conjunção ou preposição (categorias funcionais); ou pode tornar-se um morfema (forma presa) e depois esvaziar-se semanticamente, constituindo um elemento fônico, sem significado próprio: uma sílaba, um som apenas, e vir até a desaparecer. A Gramaticalização tenta explicitar essa passagem, pelo estudo do uso, detecção dos contextos semântico-sintáticos e aproximações distributivas ou de sentido que a teriam possibilitado. Se se concentra a observação no estudo do significado, postulam-se metáforas e processos asseme- lhados, que fazem um signo lingüístico “descolar” suas partes constituintes, permitindo seu deslizamento, no âmbito do significado e/ou do significante, através da estrutura lingüística.

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Nessa compreensão estão subentendidos dois tipos de continuum que se inter-relacionam: o continuum conceitual, que aqui se identifica como tipo a, e o continuum morfossintático, que aqui se identifica como tipo b, os quais se podem caracterizar como a seguir:

Tipo a) conceitos-fonte →→→→→ conceitos-alvo: este continuum diz respeito a processos produ- tores de significado, relativos ao mundo extra-lingüístico, que ligam o mundo real ao mundo mental;

Tipo b) discurso →→→→→ sintaxe →→→→→ morfologia →→→→→ fonologia →→→→→ Ø: diz respeito à passagem do mundo mental ao lingüístico e, neste, de níveis de estruturação mais amplos a mais restritos, tanto no sentido paradigmático quanto sintagmático;

Os advérbios são bastante interessantes, quando estudados do ponto de vista da Gramaticalização, pois a classe é considerada categoria intermediária, ponto de passagem diacrônica de nomes, adjetivos, verbos e talvez outras categorias do “patamar” do léxico para o “patamar” da gramática, admitindo-se, em princípio, uma separação entre esses dois conjuntos de elementos lingüísticos. E, dentre os advérbios, parece razoável supor que os espaciais e temporais sejam prototípicos, para a maioria dos falantes, admitindo-se aqui o conceito de categoria lingüística prototípica, segundo o qual, sendo a língua, ao mesmo tempo, produto da cognição humana e instrumento de utilização cotidiana, é espelho de habilidades mais gerais, uma das quais é, precisamente, a capacidade de categorização. Com efeito, estudos relativos à cognição humana, admitem, pacificamente, que a noção de que um elemento pertence a uma dada categoria é uma noção psicologicamente muito real ( cf., por exemplo, Rosch, 1975, apud Taylor, 1992: 43). Sendo a língua um sistema simbólico convencional, impõe, portanto, a seus usuários, um conjunto de categorias, que reflete, não só as repartições do mundo, mas categorias que se reconhecem no próprio material que se utiliza. Para esse processo é crucial a noção de protótipos, entendidos como membros centrais, exemplares, da categoria, aos quais se associ- am membros periféricos.

Para a teoria da Gramaticalização, associa-se a esse entendimento do processo de categorização, como instrumental de fundamental importância, a compreensão do mecanismo da metáfora, pensada em termos de Lingüística Cognitiva, ou seja, considerando que as línguas naturais se estruturam em paralelo ao desenvolvimento do processo de cognição, processo mental primitivo, formulando conceitos básicos que modelam, por projeção, outros conceitos, tornando-se motores de expressões lingüísticas de variados níveis de abstração.

A partir desses pressupostos, explora-se a fronteira possível, que torna contíguas, cognitiva e, por conseqüência, lingüisticamente, as noções de tempo e espaço. Lembre-se, por exemplo, a hipótese de interpretação semântica das línguas denominada Localismo, assumida por Lyons (1980 [1978]), Hjemslev, Pottier e Anderson (Heine, Claudi e Hünnemeyer, 1991: 113), para a qual as expressões espaciais são mais fundamentais, cognitiva, lexical e gramaticalmente, que diversas outras espécies de expressões não-espaciais, porque servem de modelo estrutural para essas outras. A hipótese localista foi absorvida e ampliada pela Semântica Cognitiva, teoria que postula, segundo Pires de Oliveira (1999: 309-310), não serem as línguas naturais que se cons- troem sobre uma pré-existente estrutura lógica, mas ser a lógica que se estrutura através da linguagem natural, o que chama a atenção para a importância de ser entendida a metáfora como “um processo cognitivo ubíquo”, contrariamente ao entendimento de certas abordagens, que a tratam como um desvio.

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Na classificação dos referentes de elementos semânticos utilizada por Lyons (1980: 126 e ss.), que os subdivide em participantes e circunstantes, o espaço e o tempo não são vistos como entidades de primeira, segunda ou de terceira ordem (participantes), quer dizer, respectivamente, entidades que se situam ou se deslocam no espaço, no tempo ou no discurso. O espaço e o tempo, assim como os instrumentos e a maneira/modo são considerados circunstantes, sendo o espaço o mais básico, aquele que dará o esquema imagético sobre o qual as demais noções circunstantes serão decalcadas, através de processos metafóricos. Ressalte-se que a admissão do espaço como o mais básico sofre a restrição de que, por vezes, uma noção espacial é calcada na concepção do corpo humano, de que resultaria a precedência da categoria de pessoa. Além disso, a admissão de que o tempo sucederia, necessária e imediatamente, o espaço merece ressalvas, que têm sido tratadas no âmbito da crítica à propriedade da unidirecionalidade, discutivelmente inerente ao processo de Gramaticalização.

Esses postulados basearam o desenvolvimento de tese sobre adverbiais espaciais e tempo- rais do português, simples e locucionais, cujo objetivo principal consistiu na análise das rela- ções detectáveis, quer no possível continuum lingüístico ( palavras lexicais > palavras gramaticais), quer no possível continuum conceitual ( pessoa > atividade > espaço > tempo > noção ) entre as formas-fonte e adverbiais portugueses e entre adverbiais espaciais e temporais entre si.1 Centrada

em corpus do século XVI2, a tese apresenta ainda dados relativos aos séculos XIV ( texto dos

Diálogos de São Gregório, a partir de Mattos e Silva (1989) e texto da Lenda do Rei Rodrigo, da Crónica Geral de Espanha) e século XV ( texto da Crónica de D. Pedro, de Fernão Lopes), além de observações sobre esses adverbiais na atualidade.

A eleição do século XVI como período de observação justifica-se pelas características culturais de Portugal à época, dentre as quais se destacam a normativização lingüística progres- siva, a implementação da produção tipográfica, que envolvia vários agentes (autores, impresso- res, livreiros, censores, revisores, etc.) e o início da utilização do português como metalinguagem, vista a produção de gramáticas, quer descritivas, quer normativas (Castro, 1996: 137, apud Mattos e Silva, 1999: 2-3). Inclua-se também o fato de ser o português do século XVI o ponto de partida do português no Brasil.

A eleição dos textos, além de submeter-se à confiabilidade do tratamento lingüístico das edições disponíveis, pretendeu diversificar a amostra, incluindo textos narrativos, epistolares e metalingüísticos. A inclusão da Carta de Pero Vaz de Caminha (CPVC), texto do último ano do século XV, deveu-se, não só à relevância sócio-histórica do texto, datado, localizado, testemu- nho vivo de característica tão marcante da história portuguesa dos Quinhentos – o confronto com um outro cultural – como à sua relevância lingüística: é uma carta-narrativa, escrita à moda de diário em dias seqüenciados, no calor dos acontecimentos. É, portanto, um texto rico na expressão das circunstâncias que cercam os atos de fala ou que delimitam o âmbito das predicações, apresentando, devido ao apuro nos detalhes demonstrado pelo seu autor, ampla variedade de noções normalmente expressas por itens adverbiais. O texto foi, então, tomado como exemplar do estágio inicial da língua portuguesa do século XVI.

1 Espaço

Para a categoria de espaço, sob inspiração de Svorou (1993), Lyons (1980[1978]) e Lakoff e Johnson (1980), e a partir de exame das formas adverbiais encontradas e dos seus respectivos sentidos, foi adotada a seguinte subdivisão: espacialização de base exofórica, espacialização

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vertical e espacialização horizontal. A primeira classe, embora pudesse ter sido distribuída entre as duas outras, foi selecionada, por ser significativo o número de adverbiais que expressam a referência espacial de um elemento, a partir da relação de distância/ proximidade entre esse elemento e o falante (vinte e cinco formas). Por outro lado, a pertinência das categorias da verticalidade e horizontalidade evidencia, para o português, observação feita sobre outras lín- guas pelos teóricos citados, ou seja, a de que os falantes referem os elementos, em termos espaciais, em planos que tomam em consideração esses eixos perpendiculares. A horizontalidade mostra-se bem mais representativa no corpus analisado, com trinta e sete formas e doze subcategorias, a saber: área interior (com quatro formas, como dentro), área exterior (com cinco formas, como fora), área distante (com quatro formas, como longe), área próxima (com três formas, como perto), área extensiva (com duas formas, como ao longo), área precedente (com quatro formas, como antes), área intermédia (com duas formas, como no meio), área seqüente (com quatro formas, como adiante), área de frente (com cinco formas, como diante), área de costas (com três formas, como atrás), área indeterminada (com três formas, como algures) e extensão horizontal (com uma forma – de ponta a ponta)3.

Essa abordagem permitiu verificar-se, por exemplo, que, no século XVI, o subsistema adverbial espacial de base exofórica organizava-se em quatro graus de exófora, representados, em termos majoritários, pelas formas aqui/cá; i/aí; ali, lá; como se vê dos exemplos abaixo, e considerando-se também o registro de acolá:

(1) preguntou mais se seria boo tomar aquy per força huu) par destes homee)s (CPVC, f. 6, l. 16- 18)

(2) que se pareciam cõ outras qÛ cá no reyno tem hu)as flóres a que chamã rósas de sancta Maria (DA.I p.22, ls. 29 – 30)

(3) Se o que este Miguel Fernandes diz nam he verdade, e ha hy armadas que posam sayr... (CDJIII, c. 16, l.59-6)

(4) de quaesquer leis e ordenações que ahy aja em contrairo (CDJIII, c. 4, l. 18) (5) ou queremdo todavia que aly lhe falleis (CDJIII, c. 6, l. 23)

(6) Belçhior Lleiram, meu esprivam do tesouro, vay lla a lliquidar o que me he devido nesa casa (CCDJ, c. 8, l. 1-2)

Quando comparado ao sistema que utilizamos hoje, chama-nos a atenção, além, natural- mente, da total substituição do i por aí, consolidada no século XVI, o adverbial ali que, àquela época, era de uso essencialmente anafórico e hoje é essencialmente exofórico de terceiro grau, expressando distanciamento compartilhado pelo emissor e pelo receptor, grau que não exclui os três outros. Aqui (e cá), na atualidade, pelo menos no português brasileiro, indicam que a área espacial referida pertence ao campo do emissor; aí indica que a área pertence ao campo do receptor; lá, que o elemento está distanciado tanto do emissor quanto do receptor. Já o ali indica que o campo espacial referido não é nem o do emissor, nem o do receptor, estando, portanto, deles distanciado, mas a ponto de ser alcançado pela visão, compartilhadamente, por ambos. O acolá, bastante restrito dialetalmente, pode eventualmente expressar um quinto grau .

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Por isso, o ali parece “mais perto” que o lá, como se pode depreender da seguinte frase, ouvida em conversa entre adolescentes:

(7) Se sua mãe foi ali, dá pra esperar; se foi lá, não.

Ainda com relação à espacialização de base exofórica, observa-se que locuções espaciais, dentre as quais algumas também ocorrem em sentido temporal, constituem na atualidade um grupo paradigmatizado, no sentido de Lehmann (1982: 137-138), ou seja, seus elementos se incluem em um paradigma bem estruturado, integrado, com regulares distinções intra- paradigmáticas, pois as quatro preposições que as iniciam (de, para, até, por) são, regular e sistematicamente, utilizadas para expressar quatro possibilidades dinâmicas no espaço/tempo horizontalmente considerados: a origem, a direção, o alvo (quando expressa limite) e a região do trajeto; e quatro graus de exófora. Mesmo nos casos em que não foram encontradas no corpus, sabe-se da sua existência na atualidade. Assim, são perfeitamente familiares as formas adverbi- ais:

Locuções adverbiais exofóricas espaciais no português brasileiro atual Adverbiais exofóricos espaciais no português brasileiro atual

Como se sabe, a integração de elementos, antes esparsos, em paradigmas estruturados é uma marca de gramaticalização, consistindo, sob a denominação de paradigmacidade, em um dos chamados parâmetros de Gramaticalização, segundo Lehmann (id., ibid.).

No que diz respeito à espacialização vertical, chama a atenção que os quatorze adverbiais que a representam (com setenta e oito ocorrências) formam-se a partir de apenas quatro bases lexicais, cima, meio, fundo e baixo, que fazem jus e, pelo número exíguo, permitem algumas considerações diacrônicas.

Cima é originalmente um nome português, provindo de cyma, nome latino, ‘pimpolho, renovo, grelo de plantas’ (Saraiva, s.d.: s. v. cyma), por sua vez, proveniente de kyma, nome grego, ‘onda, vaga, qualquer produção, animal ou vegetal’. (Houaiss, 2001: s. v. cima). Segundo Houaiss, no latim vulgar, o termo assumiu o sentido de ‘que avulta à superfície, extremidade, parte superior ou mais alta das coisas’ e, no português arcaico, significou ‘cobro, remate, termo’ sendo citada uma expressão exemplificativa, ‘dar cima a um mal-entendido’. Já Mattos e Silva (1989: 249) registra a ocorrência de aa cima no século XIV, com o sentido do atual ‘finalmente, afinal, por fim’ tal como também encontrada na Lenda do Rei Rodrigo (LRR, do séc. XIV) e na Crónica de D. Pedro (CDP, do séc. XV).Vejam-se alguns exemplos:

1º grau (emissor) 2º grau (receptor) 3º grau distância média 4º grau distância maior 5º grau (?) grande distância

aqui / cá ali acolá

preposição 1º grau 2º grau 3º grau 4º grau

de daqui de cá daí dali de lá

para para aqui (praqui) para cá (pra cá) para aí (praí) para ali (prali) para lá(pralá)

até até aqui até cá até aí até ali até lá

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(8) E aa cima a piedade venceu a homildade. (Mattos e Silva, 1989: 250).

(9) Pero, aacima, acordarom-se de ir por diante e entrar por Espanha. (LRR, p. 73, ls. 47-48). (10) Aacima, vendo-se el-rrei como perdia as gentes... (CDP, p. 165, l. 165).

O significado do item lexical parece, portanto, ter sofrido mudança semântica de tipo metonímica, a partir da qual veio a predominar o traço de referência à extremidade, freqüentemente ponto mais alto das inflorescências ou germinações nos vegetais, de modo que, em português, veio a expressar a temporalização de um processo (fase final), sentido que aparen- temente se perdeu e, desdobrado nas formas cimo (nome) e cima (nome e elemento formador de adverbiais e de locuções prepositivas), veio a expressar a espacialização relativa ao plano supe- rior.

Meio é nome português, provindo de me(di(u(m, -i(i, nome latino, ‘meio, centro; espaço; intervalo de tempo’ (Saraiva, s.d.: s.v. me(di(u(m). No corpus analisado, além de uma ocorrência expressando verticalidade, há seis ocorrências expressando horizontalidade. Embora haja, no latim, registro de valor temporal, não ocorre com esse sentido no corpus analisado. Contudo esse sentido é perfeitamente reconhecível na atualidade, por exemplo, em locução prepositiva, como na frase:

(11) Farei isto no meio da tarde.

Fundo é nome português provindo de fu#ndu(s, i# nome latino, ‘fundo, base’. Foi o núcleo lexical que predominou até o século XV para a expressão adverbial do plano inferior. A forma adverbial latina clássica infra não continuou, pelo menos como base de adverbiais, no vernáculo português, enquanto a forma do latim tardio ju#su(m continuou no português arcaico, juso, forma não documentada no corpus analisado. Até o século XVI, a gramaticalização do termo fundo se deu no nível morfossintático, evidenciando deslizamento no continuum estritamente lingüístico, mais que no continuum conceitual propriamente dito (semântico), visto que, de nome, elemento lingüístico mais lexical, signo lingüístico denominativo de elemento do mundo, passa, ao atuar precedido de preposições (a, de, ataa, pera), a componente de adverbial, elemento lingüístico mais gramatical, que expressa circunstância espacial afeta a elemento do mundo, sem que seu conteúdo significativo propriamente dito tenha sido recortado e/ou generalizado. Posterior- mente, o adverbial veio também a gramaticalizar-se no continuum conceitual, posto que, na atualidade, é também reconhecido no sentido de ‘base mental, psicológica’, em frases como:

(12) No fundo, ele te quer bem.

Baixo é predominantemente um adjetivo português, provindo do adjetivo latino tardio ba#ssu(s, -a( -u(m, ‘gordo’, (Saraiva, s.d.: s.v. bassu(s); ‘gordo e pouco alto’ (Corominas e Pascual, 1980-1991: s.v. bajo). A partir do que se depreende do verbete de Nascentes (1932: s.v. baixo), a ba#ssu(s foram atribuídos também os sentidos de ‘curto’e ‘humilde’. A generalização semântica do adjetivo, portanto, é ainda do período latino. No corpus analisado, a forma isolada não ocorre como adverbial, apenas como nome e como adjetivo. Ocorre, contudo, como componente de adverbiais, precedida de preposições. É forma característica do português moderno, sobrepondo-

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se à base fondo, característica do português arcaico, ainda ocorrente no século XVI e mesmo na atualidade, embora em desvantagem face a baixo.

Como se vê, semanticamente, não se configurou no corpus grande riqueza conceitual e, conseqüentemente, lexical, na expressão adverbial da verticalidade. Há predominância da refe- rência ao plano superior (cinco formas, como acima, e cinqüenta e duas ocorrências), contra sete formas (como abaixo, e vinte e quatro ocorrências) relativas ao plano inferior. O plano intermé- dio é representado por uma só forma (no meio), em uma só ocorrência (na Gramática da Lingua- gem Portuguesa, de Fernão de Oliveira). Também a extensão vertical é representada por uma só forma (de fundo acima), em uma só ocorrência ( na Carta de Pero Vaz de Caminha).

A expressão da horizontalidade é mais rica no corpus que a expressão da verticalidade, tanto quanto ao número de adverbiais (trinta e sete, como já visto), quanto ao número de ocor- rências (cento e oitenta e sete), quanto ao número de subcategorias semânticas (doze), e, ainda, quanto ao número de bases lexicais (dezessete), a saber: dentro, fora, longe, perto, além, aquém, longo, antes, avante, trás, meio, depois, ponta, pedaço, algures, nenhures, princípio.

É conveniente esclarecer que a decisão de considerar tais adverbiais como expressão de horizontalidade não foi apriorística, mas baseou-se na interpretação do contexto, vez que, em alguns casos, se considerado isoladamente, tanto poderia expressar horizontalidade quanto verticalidade. Assim, pares opositivos, como longe/perto ou fora/dentro, tanto podem expressar espacialização no plano horizontal quanto no plano vertical. No corpus, o único adverbial que se mostrou comum à expressão de ambos os planos foi no meio. Veja-se o exemplo (7), para a expressão da verticalidade, e o exemplo (8), para a expressão da horizontalidade:

(13) A figura do .ε. grãde pareçe hu)a boca aberta com sua língua no meyo e tão pouco não te) outra difere)ça da força do .e. pequeno. (GFO, p. 16, ls. 13-15).

(14) ...foy dar em hu) rio a entráda do qual em hu)a coróa q# se fazia no meyo, virã jazer tanta multidam de lóbos marinhos. (DA-I, p. 25, ls. 3-5).

Pela mera quantidade já se pode aquilatar o maior recurso à expressão da horizontalidade face à verticalidade, o que, de pronto, provoca a questão: tomarão as línguas a referência hori- zontal em mais consideração, devido a características do corpo humano, tais como: olhos natu- ralmente focados na horizontal, corpo em perpendicular ao chão, com deslocamento predominante na horizontal? Valeria a pena observar-se se as noções de verticalidade, talvez por serem menos tomadas em consideração, estariam freqüentemente embutidas em lexemas de outras classes de palavras como subir x descer, levantar x baixar, enquanto as noções de horizontalidade, tomadas em consideração com mais detalhes, não se resolveriam tão facilmen- te no léxico. Por exemplo, andar, ir, passear tanto podem ser entendidos como ‘deslocamento para a frente ou para trás’ de determinado ponto de referência, necessitando de adverbiais para precisar-lhes o sentido. Talvez apenas as áreas relativas à distância e à proximidade de base exofórica, beneficiem-se suficientemente do léxico, como se vê de exemplos tais como levar/ trazer; ir/vir; aqui, cá/aí/lá.

No estabelecimento dessas áreas enfocadas para a horizontalidade, a partir do corpus, avultou curiosa constatação: as noções de anterior e posterior, denominações que facilmente acorrem ao falante de português, são freqüentemente ambíguas. É que mais normalmente se

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denomina como espaço anterior aquele que precede determinado ponto de referência, aquele que, mais freqüentemente, no campo visual, está à esquerda, já que normalmente, na nossa cultura, referem-se os elementos percebidos pela visão da esquerda para a direita. No entanto, anterior é também o que está espacialmente à frente do/no corpo do observador. Analogamente, posterior pode localizar o elemento tanto à direita do ponto de referência, quanto às costas do/no