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O suicídio: uma dimensão psicológica?

No documento Do português arcaico ao português brasileiro (páginas 161-163)

ponha aos olhos em mim”

9.4 O suicídio: uma dimensão psicológica?

Uma dimensão talvez psicológica tenha motivado a carta de Timóteo. Pelo que escreve o subdelegado, Timóteo seria vendido em praça pública e “entendeo não dever passar á outro senhores”. Seria, então, este o motivo que levou o escravo ao suicídio: o seu afastamento daque- les que o criaram. Se o subdelegado estiver certo, os laços afetivos que uniriam Timóteo a seus donos pareciam bastante firmes. A leitura do ‘bilhete’ de Timóteo parece confirmar o seu apreço à família que o criou, uma vez que ali, em tom de despedida, dizia-se grato a “Jaia Pombinha e a toda família d’ella”, pedindo-lhe perdão pelo que iria fazer. Jaia Pombinha talvez fosse a senhora do escravo suicida. Não se encontram no texto deixado pelo escravo, como supôs o subdelegado, informações que confirmem ter sido a venda próxima de Timóteo a razão para o seu ato. Vejamos as linhas iniciais escritas pelo escravo:

A muito tempo que tenho dezejo de não existir pois a vida me hé abborrecida porem não existindo não será mais, pois quem pode viver sem ter desgostos que vá vivendo.

O escravo, portanto, não quis conviver com os seus desgostos que parecem vir de há muito tempo e o seu texto surge como que para falar de um deles: “Poz-me preciso declarar = que nem fui eu, e nem sabedor daquella infaime papel... Se faço esta declaração é para livrar que vão ao inferno, estas almas que despestaraõ suas conciencias!”. Do que estaria sendo acusado Timóteo? A sua carta não deixa respostas, mas sugere que o conteúdo de um infame papel seria uma das causas do seu desgosto; sugere ainda que estaria sendo Timóteo acusado de ser o seu autor e seria essa, talvez, uma das razões pelas quais cometeu suicídio. Quanto a outros motivos, “a sepultura será sabedora, e não este infaime lugar, digo: e não esta terra de vivos”. Desse modo, acusado de fazer um uso ‘criminoso’ da escrita, o fato de ser alfabetizado parece ter contribuído para condenar Timóteo à morte. Talvez, ainda, quisesse ele que a escrita o inocentasse.

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do portugûes arcaico ao português brasileiro

“No mais”

gostaria de ressaltar o óbvio: que há muito por se fazer no que diz respeito à leitura e à escrita entre escravos no Brasil. Reunindo 14 testemunhos escritos por escravos ou como ex- pressão da sua vontade, busquei mostrar, em suma, que a história da alfabetização no Brasil não é uma história exclusivamente de brancos. A prática da leitura e da escrita parece ter tido um alcance mais lato dentro do Brasil do passado. Chegou, às vezes por caminhos tortuosos e mesmo contraditórios, àqueles que compuseram a base da pirâmide social brasileira. As linhas acima provavelmente serão modificadas a cada texto escrito por um escravo ou por vontade sua que, por ventura ou não, se localize. Isso acontecendo, serão reescritas com muito prazer.

1 Agradeço, já de início, aos historiadores Maria Inês Côrtes de Oliveira, João José Reis e Jackson

Ferreira e ao antropólogo Luiz Mott, pela indicação e doação de documentos e referências bibliográ- ficas. Sem a sua generosidade, este texto seria outro.

2 Alguns dos documentos com os quais lido neste texto já foram publicados. As 7 cartas da escrava

Teodora, escritas, em grande parte, por Claro, foram publicadas pela historiadora Maria Cristina Cortez Wissenbach (1998: 265-268), que descobriu, no Arquivo Público do Estado de São Paulo, o processo movido contra o escravo Claro, ao qual as cartas foram anexadas. Dos 3 textos escritos por Claro e assinados em seu nome, um – a procuração de bens – também foi transcrito pela historiadora referida, atualizando-se-lhe o português. Os outros dois, duas cartas, não foram publicados pela historiadora; são inéditos, portanto. A carta da escrava Esperança Garcia foi localizada e publicada por Luiz Mott (1985: 103-107), de quem mereceu um estudo. A historiadora Isabel Cristina Ferreira dos Reis (2001: 161) localizou e publicou a carta do escravo Arnaldo Rigão. Quanto às cartas do escravo Vitorino e de Timóteo, o escravo suicida, foram-me indicadas, respectivamente, pelos historiadores Maria Inês Côrtes de Oliveira e Jackson Ferreira.

3 Aproveito para indicar a localização dos textos com os quais trabalho aqui. Cartas de Teodora:

Arquivo Público do Estado de São Paulo, caixa 80, ordem 3980, processo 1492, 1868/1872; Cartas e procuração de Claro: Arquivo Público do Estado de São Paulo, caixa 80, ordem 3980, processo 1492, 1868/1872; Carta de Esperança Garcia: Arquivo Público do Estado do Piauí, documento não classifi- cado, 1770; Carta de Arnaldo Rigão: Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Colonial e Provin- cial, Série polícia, correspondências recebidas de delegados, maço 6245, 1877; Carta de Vitorino: Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Colonial e Provincial, Escravos (assuntos), maço 2829, 1876/1879; Carta de Timóteo: Arquivo Público de Estado da Bahia, Seção Colonial e Provincial, correspondências recebidas de subdelegados, maço 6234, 1861. Com exceção da carta escrita por Esperança Garcia, voltei a todos os documentos, transcrevendo-os nos moldes de uma edição semidiplomática. As citações que oferecerei doravante advêm dessa edição. As citações referentes à carta de Esperança Garcia, retiro-as de Mott (1985), que escreve tê-la transcrito ipsis litteris.

4 Maria Inês Côrtes de Oliveira me indicou a localização deste documento: Arquivo Público do

Estado da Bahia. Série inventários, maço 672, set. 1807.

5 São meus os grifos.

6 Milena Brito me indicou essa peça de Amélia Rodrigues.

7 Retirado de uma parte do belo título do livro de Matildes Demétrio dos Santos (1998) – Ao sol, carta

é farol. A correspondência de Mario de Andrade e outros missivistas.

8 Às páginas 219 e 220, Wissenbach (1998) transcreve essa procuração, em português atualizado e

normatizado.

9 Nascimento (1986) é quem revela a existência da correspondência expedida pelo juiz referido.

Segundo ela: “Na freguesia de Brotas, em época anterior ao censo de 1855..., existia um interessante juiz de paz que mantinha seguida correspondência com a presidência da província, e que nela usava de linguagem muito popular, deixando entrever o que se passava na freguesia de Brotas” (p. 89). Voltei a

E agora, com a escrita, os escravos!

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essa correspondência e verifiquei que popular era a sua linguagem não apenas por conta dos temas tratados, mas também pelo português ali escrito. Arquivo Público do Estado da Bahia, Presidência da Província, juízes de paz, caixa 1047.

10 Note-se, porém, que a expressão “escravo obediente” é uma fórmula bastante freqüente de finalização

de cartas no século XIX, não sendo uma expressão, portanto, que se possa considerar como um traço particular da escrita de escravos.

11 Para maior conhecimento sobre o valor histórico e social e também dos símbolos das cartas de

Teodora, é imprescindível a leitura do livro de Wissenbach (1998), todo ele. Por conta disso, não me deterei muito sobre essas missivas.

12 Como não tive acesso ao documento original, ofereço aqui a transcrição feita por Mott (1985: 106). 13 Foi a historiadora Maria Inês Côrtes de Oliveira quem me indicou o documento. Arquivo Público

do Estado da Bahia, Seção Colonial e Provincial, maço 2896, 1835.

14 São meus os grifos.

No documento Do português arcaico ao português brasileiro (páginas 161-163)