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3 Setembro de 1770 a julho de

No documento Do português arcaico ao português brasileiro (páginas 148-152)

Marcar o tempo em que se escreveram as suas missivas foi preocupação entre os escravos. Dos 14 documentos, 9 trazem explicitamente a data de sua feitura, geralmente no início, mas também, como foi o caso de dois, no fim. Restam-nos 5 a cuja referência temporal não se alude. Contudo, outros vieses permitem localizar o seu tempo. Para a carta do escravo suicida, é o relatório do subdelegado, de 18 de março de 1871, que nos fornece a informação. Segundo ele, o ato contra a própria vida teria acontecido “hotem”, por volta de 9 horas da noite. Mesmo que tenha concluído que o bilhete confirma estar o suicídio premeditado há muito tempo, podemos concluir nós que a sua confecção não tenha sido efetuada em tempo muito anterior ao ato. Assim sendo, não há riscos em datá-lo na década de 60 do século XIX. Quanto à carta de Esperança Garcia, aquela escrava do Piauí, Mott (1985) diz ser datada de 6 de setembro de 1770. Essa referência foi colhida pelo antropólogo em outro lugar, pois nem a carta nem o documento que a acompanhou referem-se ao tempo, que, no entanto, poderia talvez ser rastreado, por fazerem referências a algumas circunstâncias históricas. 5 das cartas feitas a mando de Teodora infor- mam que foram escritas no ano de 1866, não há razões, portanto, para duvidar de que as outras 3 também o foram nesse ano. Dito isso, a carta de Esperança Garcia é a única a nos testemunhar o português escrito por um escravo no século XVIII; as demais, escritas na segunda metade do XIX, surpreendem pela proximidade dos anos: um pouco mais de uma década e meia separa a mais antiga (de 1861) da mais recente (de 1879). Segunda metade do século XIX: momento em que se acaloram os debates acerca da abolição e, com eles, soerguem alguns projetos de escolas para escravos; em que alguns membros do clero se mostram sensibilizados com a condição escrava e propõem a fundação de estabelecimentos populares “onde seja dada gratuitamente a instrucção secundária à classe pobre de nossa sociedade”, como escreveu o cônego da Sé Metro- politana de Salvador Romualdo Maria de Seixas Barroso, em 1872, que, inclusive, fundou e regeu nesse mesmo ano, na sua paróquia, uma escola noturna para pobres, escravos e libertos e, em 1881, fundou a Associação Protetora da Infância Desvalida para suprir de vestuário e material escolar as crianças carentes (Costa e Silva, 2000: 483); em que indivíduos de ancestralidade africana encaminham ao governo petições para fundar escolas para os seus,

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inclusive escravos, como foi o caso de Pretextato dos Passos Silva, cuja trajetória foi recuperada por Silva (2000), no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX; em que casos como o de Pretextato parecem não ser exceções (Silva, 2000); em que a experiência já mostrara muito bem aos escravos os usufrutos que a escrita poderia lhes oferecer. Estamos a falar de um tempo histórico mais aberto e propício ao letramento de escravos? Os textos dos nossos parecem confirmar isso.

A segunda metade do século XIX conhece também, logo no seu início, a proibição oficial da importação de escravos da África, o que intensificou a sua venda, e conseqüente locomoção, no espaço brasileiro, conseqüência do tráfico intra e interprovincial que se praticou como alternativa. Diante disso, para ter notícias dos seus pares e para deles se reaproximarem, como demonstram as cartas de Teodora e de Antônio Rigão, as primeiras décadas da segunda metade dos oitocentos contribuíram com uma circunstância histórica que teria bloqueado os contatos orais entre os escravos, fazendo-os recorrer à pena para se comunicarem.

4 Para “Vossa Excelência”, “mêo Senhor”, “meo filho”

e outros que tais

Tinham variados perfis os destinatários das missivas dos nossos escravos. De governado- res de províncias a filhos, a impressão que se tem é que todos poderiam ter nas mãos uma carta de um escravo, que funcionaria, em alguma medida, como um instrumento que encurtava as distâncias físicas, mas também as sociais. Esperança Garcia dirige-se ao Governador da Provín- cia do Piauí; Vitorino, ao seu senhor; Arnaldo Rigão, ao seu ex-senhor; Timóteo, provavelmente à sua e à família que o criou. As cartas de Teodora e as de Claro, pelo número maior de testemu- nhos, descortinam um leque mais amplo de destinatários. As executadas a pedido de Teodora destinam-se: 4 ao marido, 1 a um irmão de seu ex-senhor, 1 ao seu atual senhor e 1 ao filho; as de Claro são dirigidas a um senhor chamado Inocêncio e a uma mulher cujo nome é Gertrudes Jesus Maria da Conceição. A procuração de bens desse escravo foi passada em nome de Benedito Assis, seu amigo, que, provavelmente, quando chegasse a hora, deveria encaminhá-la às instân- cias legais.

Eleitos a depender da mensagem enviada, os destinatários dos nossos escravos foram predo- minantemente do universo masculino. Bastante compreensível esse aspecto nas missivas, em cujo teor permeiam as súplicas; relatar os maus tratos sofridos, pedir transferência para uma cadeia mais próxima, voltar ao seio da família, sonhar com a alforria, isso, se se quisesse retorno favorá- vel, deveria ser encaminhado a quem evidentemente pudesse, de alguma forma, interceder: os homens, regentes das principais instituições de nossa sociedade escravista. Vitorino nos conta em sua carta não conhecer o seu atual dono, Antônio de Aragão Bulcão, porque, 8 dias antes do casamento do seu dono com a sua ‘senhor’ Maria, lhe acontecera a razão da sua infelicidade e, por isso, foi encaminhado ao cárcere. Mesmo assim, preferiu o escravo dirigir-se a Antônio Bulcão, que lhe era desconhecido, e não a sua senhora, por quem tinha tanto apreço. Reflexo claríssimo do seu interesse. Mas o amor e os negócios pareciam desconhecer distinção de gênero entre os desti- natários. Claro não hesitou em escrever a Gertrudes Jesus para que entregasse a Benedito Assis dinheiro dele que estava em suas mãos; se Teodora escreveu ao filho e ao marido, foi muito mais por seu instinto de mãe e de esposa, que queria dar as suas e ter notícias dos seus, que lhe permitia

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algumas cobranças e o compartilhamento dos seus sonhos e esperanças. Imagino que, se a escrava tivesse uma filha ou conhecesse uma irmã, lhes escreveria também.

5 Ao sol, carta é farol?

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Para que chegassem aos seus destinos, as cartas, principalmente, deveriam percorrer dis- tâncias variadas: a de Esperança Garcia, da Fazenda administrada pelo Capitão Antônio Vieira ao centro da Província do Piauí, onde certamente se encontrava o Governador; a de Arnaldo Rigão, do Rio de Janeiro à Bahia; a de Vitorino, de Salvador a Cachoeira; a de Timóteo não deveria sair da casa onde se suicidou e as de Claro percorreriam itinerários na cidade em que foram escritas, São Paulo. As missivas de Teodora iriam à mercê das vagas indicações que tinha sobre o paradeiro do marido e do filho: Limeira e Sorocaba. A que pediu para escrever para o senhor provavelmente deveria encontrar o seu destino na cidade de São Paulo, onde estava morando. Teodora é um exemplo de que, para fazerem chegar as missivas às mãos de seus destinatários, os escravos articulavam quantos fossem necessários. Para entregar uma carta ao marido Luís em Limeira, fê-lo através do irmão de seu ex-dono, que morava em Sorocaba:

Illustríssimo Senhor de mician no dia da Cunha em São Paulo 30 de outubro de 1866

eu i de tima que eta va aCha o a Vossa Senhoria com muita filicidade com para mim dezeio noto bem para Vossa Senhoria mi faca o favor de mi mamda eta crata para cidade da limmera para meu marido Luiz da cunha

Tiadora da Cunha

No lugar reservado ao endereçamento, consta: “Illustrísimo senhor de miciano dia da cunha para a cidade de Solrucava”. Seria este o percurso da carta: escrita em São Paulo, seguiria para Sorocaba, às mãos de Domiciano Cunha, que, por sua vez, a encaminharia para o marido, na cidade de Limeira.

Os escravos certamente aguardavam o retorno das suas cartas e, sendo assim, entre a escrita e a resposta esperada, o caminho e os intermediários poderiam ser mais numerosos. Um esforço extremo nesse sentido é mais uma vez ilustrado por uma das missivas de Teodora ao marido:

Illustríssimo Senhor Luiz da Cunha em São Paulo 20 de outubro de 1866

Eu (hei) de tima muito que eta vom gonzamdo e a sua filicidade como para mim dezeio noto bem para mi fazer o favor de vi por o nata falla com migo sem falta mi falta 198 mireis para minha li ber dade no mais mi mamde a repota desta para o senhor de mi cian no na ci da de de solcrava sem falta no mais eu itou pagamdo como huma i crava deste pader mavado no mais a Deus a Deus a te hum dia que Deus me a jun de com sua garça divina mizeicode no mais sou a sua mulhe

Ti a do ra da Cunha dia

Illustríssimo Senhor Luiz dia da Cunha cera itegue para o i cravo do senhor João dia da cunha nacida de da limmera

A mensagem ao marido é simples: informar-lhe o quanto lhe falta para a alforria, mas o percurso imaginado por Teodora é por demais complexo. Tentemos entendê-lo: a carta, escrita

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em São Paulo, seria encaminhada à cidade de Limeira, onde deveria chegar às mãos do escravo do senhor João Dias da Cunha, que, por sua vez, imagino, entregaria a missiva a seu dono. De posse dela, encaminhá-la-ia João Dias da Cunha ao marido de Teodora, que, depois de lê-la ou de pedir a alguém que a lesse, mandaria a resposta até a cidade de Sorocaba, ao Senhor Domiciano. Domiciano, se estivesse disposto, iria até São Paulo levar a resposta de Luís, marido de Teodora, à escrava, mas o mais provável é que articulasse um outro intermediário para fazê-lo. Teodora entendeu que todos, escravos e senhores, deveriam ajudá-la no seu intento. A escrava, não resta dúvidas, queria muito a sua liberdade e, se não tivesse sido presa, não duvidemos de que teria conseguido.

Se alguns itinerários a serem trilhados pelas cartas de Teodora podem ser recuperados, os dos outros textos não. Entretanto podemos supor o quão dificultoso foi para os escravos fazerem com que a sua escrita encontrasse o destino desejado. Imaginemos o que deve ter feito Arnaldo Rigão para que a sua carta, do Rio de Janeiro, chegasse à Bahia. No caso de Teodora, imagino que as referências difusas que tinha dos locais em que estavam seu marido e filho contribuíram para o ‘vai e vem’ das suas missivas; em outros casos, talvez por serem destinadas a indivíduos mais localizáveis, as resistências se dariam menos pelas distâncias geográficas e mais pelas barreiras sociais. Interessar-se-ia um senhor em receber a carta de um escravo preso por assassi- nato, como foi o caso de Vitorino? Receberia um governador a carta de uma escrava ‘perdida nos cafundós do Piauí’, como foi o caso de Esperança Garcia? Ficaremos sem saber se, de fato, os textos dos nossos escravos chegaram ao seu destino. Wissebbach (1998: 251), por exemplo, afirma que, com exceção daquela dirigida ao seu atual senhor, as cartas de Teodora jamais alcançaram os seus destinos. Não consegui localizar documento algum que indicasse ter Vitorino retornado à cadeia de Cachoeira como pedia na sua carta. Se a carta de Arnaldo foi preservada em arquivo baiano, chegou ela à Bahia, mas a certeza de que o seu ex-senhor a tenha lido, essa não há. Quanto ao ‘bilhete’ do escravo suicida, não só o leu o subdelegado, como provavelmente os seus prováveis destinatários, alguns integrantes da família que o criou e da sua própria. Mas é provável que missivas de escravos no Brasil, embarreiradas por contratempos de variada natureza, tenham se perdido pelo caminho.

As cartas revelam que, se os pedidos fossem cumpridos conforme desejavam os escravos, escrita e oralidade tinham, em algumas circunstâncias, de se aliar, ou melhor, de se complemen- tar, cada uma a seu tempo. Vemos isso de forma clara na carta de Teodora acima transcrita, em que, em uma determinada passagem, pede para alguém ir falar com ela. Em outra, vejamos o momento em que cada uma deveria entrar em cena:

Meu marido Luis São Paulo

Mumito ide istimar que Você isteja Com Saude eu istou aqui na cidade eu vos is crevo para Você selembra daquela promeça que nois fizemos eu heidi procura por vose mandou lembraça para vose e ajun ta hum dinhero la sepuder vimfalar com min go venha senão puder me mande a reposta e dinhero va juntando la mesmo se czo eu maranjar por aqui mando próprio la

Dessa vosça Mulher

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A tinta e o papel seriam responsáveis por dizer ao marido onde se encontrava, onde foi vendida e quem era o seu dono, por lembrar-lhe de uma promessa feita por ambos, por pedir-lhe que juntasse dinheiro; já a oralidade se encarregaria de trazer a Teodora algumas respostas pelas quais ansiava. Timóteo, o nosso escravo suicida, declara ter escrito “para livrar que vão ao Inferno, estas almas que despestarão suas conciencias!”. Como? Fazendo ler a tantos quanto interessassem a sua carta? Parece-me que também, mas não só; a oralidade, em alguma medida, estava nos planos de Timóteo para que o inocentasse do que o acusavam. O escravo Claro, em 1867, escrevia a um certo Inocêncio:

...eu ia Caber que o Senhor vai para Judiahi (vemho) falla [?] Senhor Franscisco Ben e dito de Asil na Rua de Santa Curlze pegado o pos tao de minha caza falla com elle para mim Saber no mais Sou de Vossa Mercê esicravo criado Obirgado

Claro Antonio do Santos

Inocêncio, ao receber a carta, deveria falar a Benedito de Assis, em Jundiaí, que procurasse Claro em São Paulo. Para quê? O escravo, àquela altura preso, pretendia fugir e, antes, queria passar uma procuração dos seus bens em nome de Benedito, como aliás o fez. Isso, é óbvio, não escreveu Claro na sua carta, a oralidade o diria. De fato, escrita e oralidade se complementavam, mas, repito, cada uma a seu tempo. Claro nos revela que escravos poderiam saber muito bem que nem tudo deveria ser escrito. A escrava do Piauí, Esperança Garcia, relatava em sua carta ao Governador os seus amores, desamores e outras espécies de dores, mas não mencionou as inúme- ras tentativas de fugas para ficar perto do marido e dos filhos – é o que informa o documento que acompanha a sua carta. Ocultou aquilo que, talvez, na oralidade já se estava cansado de saber. Aliás, a escrava parece ter-se valido da escrita como seu último recurso, a nos guiar o documento anexo à sua carta. Outros ainda intuíam que verba volant, scripta manet. Ainda no século XVIII, as condições de vida a que estavam submetidos levaram um grupo de escravos a se rebelar no Enge- nho Santana, na cidade de Ilhéus, na Bahia. Segundo Schwartz (2001: 89-121), depois de matarem o supervisor, os escravos apoderaram-se da maquinaria do local e fugiram mata adentro. Pressio- nados, entraram em negociação com o dono do Engenho e elaboraram um “tratado de paz” em que expuseram algumas condições para voltarem ao trabalho. Esses rebelados perceberam que, naquela situação, de nada valeriam acordos firmados na oralidade; a escrita de um tratado, sim, poderia concretizar as suas expectativas. Mas o ‘mundo dos brancos’ os enganou: o dono do Engenho fingiu aceitar o acordo e, acalmados os ânimos, mandou prendê-los para em seguida vendê-los, exceto o líder do movimento. Tudo indica que o documento acima referido, transcrito por Schwartz, era, em verdade, uma cópia, conforme assinala a carta do Desembargador Cláudio José Pereira da Costa. Por outro lado, assinala esse mesmo desembargador que: “Estando as couzas nestes termos enviarão os levantados emissários a seu senhor com a proposta da Capitula- ção Constante da copia incluza”. Esta passagem sugere que, talvez, as propostas tenham sido elaboradas pelos próprios punhos dos escravos e delas tenha sido feita uma duplicata.

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