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OCORRÊNCIAS DO FUTURO

No documento Do português arcaico ao português brasileiro (páginas 188-195)

2 Abordagem histórica das formas de futuro

OCORRÊNCIAS DO FUTURO

Informantes do NURC – F. etária II Informantes não-escolarizados – F. II Fut. do presente sintético 150 - Fut. do presente analítico 400 450 Fut. do pretérito sintético 250 120 Fut. do pretérito analítico - -

Quadro 02 – Ocorrências do Futuro em Informantes do NURC e Informantes não-escolarizados Faixa II (36 a 55 anos).

Os resultados obtidos, no quadro acima, demonstram um indício de mudança, uma vez que há uma preferência, pelo menos, regional, no português coloquial do Brasil, pelo emprego do futuro perifrástico, enquanto o futuro sintético, como em latim, é de emprego parcial, confi- nado à língua escrita e às situações orais formais.

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Observa-se que os falantes da língua culta, apesar de darem preferência ao uso do futuro do presente perifrástico, empregam também o futuro do presente sintético, enquanto os falantes não-escolarizados empregam apenas o futuro do presente perifrástico.

Quanto ao futuro do pretérito, há uma predominância por parte de ambos os estratos pelo emprego da forma sintética.

Tais fatos comprovam indícios de uma mudança, no que se refere apenas ao futuro do presente no português atual, uma das línguas da România Nova.

No que se refere ao processo de gramaticalização, ocorreu, inicialmente, com as formas de futuro um processo de morfologização, fonologização e semanticização. Em primeiro lugar, no latim, as formas foram usadas lado-a-lado (amare habeo), o que corresponde ao primeiro estágio apontado por S. Svorou: embraced (‘enlaçado’).

Numa segunda etapa, na passagem para o português, essas formas se fundem, perdendo elemento fonológico (estágio fused ‘fundido’). Ocorre, então, a fonologização (amar + hei = amarei). Finalmente, a forma latina amabo desapareceu, chegando ao estágio zero da gramaticalização.

Para chegar a esse estágio, devido à grande freqüência de uso, houve um enfraquecimento semântico dessas formas. Mas, os falantes da língua portuguesa, desejosos de expressar o futuro, continuaram, na comunicação oral, em busca de novas formas verbais.

Assim é que, no português atual, eles empregam as formas perifrásticas, dotadas de maior força semântica. Entretanto, no momento atual, não se pode afirmar se esse processo continuará ou permanecerá apenas nesse estágio. Dessa vez, os falantes empregam o verbo ir e novamente surge um processo de gramaticalização: a morfologização. Ela ocorre quando, no seu primeiro estágio (embraced), os elementos encontram-se lado-a-lado, formando uma locução verbal, como vou amar em lugar de amarei, que se tem enfraquecido.

Procura-se investigar documentos dos séculos iniciais de existência do português e de outros séculos para verificar, diacronicamente, desde quando vem ocorrendo essa mudança na língua portuguesa.

Outro fato observado, através dos inquéritos, foi o emprego do presente com idéia de futuro, que é também muito comum no português atual. Basta, para isso, o emprego de certos advérbios de tempo que se referem às circunstâncias futuras. Ex.:

Presente com idéia de futuro:

(17) [...] mas quando chegar no inverno, você não vê nada disso, [...] (Fal. não-esc., p. 5, l. 3).

Nos Diálogos de São Gregório, observa-se que o tempo futuro está expresso através da forma sintética, como já se observou, resultado da fusão do infinitivo do verbo principal mais o auxiliar haver no presente ou no pretérito imperfeito do indicativo, para expressar, respectiva- mente, o futuro do presente ou o futuro do pretérito, estando já o verbo haver transformado em afixo, como se vê nos exemplos abaixo:

(18) E deves a entender, Pedro, que alg~u~us feitos contarei eu per razon daquelas cousas que entendo per eles […] (DSG, 1, 1, 39)

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(19) E deves saber que tu passarás o mar e entrarás en Roma e reinarás ainda nove anos e aos dez anos morrerás. (DSG, 2, 15, 8)

(20) Ca ali hu cuida a ensinar verdade ensinaria muitos errores. (DSG, 1, 1, 22)

(21) […] que prometeu aos seus enmiigos que lhis daria o sinal de Jonas, o profeta, […] (DSG, 2, 8, 36).

O emprego da forma perifrástica haver de mais verbo principal é freqüente no texto estuda- do, para expressar o valor de obrigação/necessidade, como se pode observar nos exemplos:

(22) E assi acaeceu que a homildade do discipolo foi meestra daquele que era abade e meestre que avia de reger e ensinar os outros. (DSG, 1, 5, 16)

(23) E porque o monte era muito alto […] se paravan mentes a fundo hu aviam d’ir e iam sempre a gram perigoo […] (DSG, 2, 5, 4).

No que se refere ao emprego do verbo ir mais infinitivo do verbo principal, foram encon- tradas poucas ocorrências, nos Diálogos de São Gregório. É importante ressaltar que esse emprego ainda não estava gramaticalizado na expressão do tempo futuro, mas já se inicia o processo de enfraquecimento de ir, ao se tornar auxiliar, embora ainda se perceba nos exemplos colhidos uma idéia de movimento inerente ao verbo ir. Segundo R. V. Mattos e Silva (1993), todas essas passagens apontadas expressam a intenção a realizar-se:

(24) E muitas vezes acaece, Pedro, aos homens perfeitos que quando veen que o seu trabalho he sen fruito van demandar outro logar en que ajam trabalho de que saia fruito que praza a Nosso Senhor. (DSG, 2, 3, 57). (25) E quando San Beento ouvia o sõõ da campainha levantava-se e ia tomar o pan. (DSG, 2, 1, 45). (26) […] deitou o corpo do filho morto ant’a porta do moesteiro e foi demandar muit’agiha con gram dôo de seu coraçon o santo homen. (DSG, 2, 32, 3).

(27) Aqueste glorioso San Beento, depois que se partiu dessas sabenças do mundo e propôs en coraçon d’ir morar ao deserto, h~ua sa ama que o amava […] foi-se soo con el. (DSG, 2, 1, 28).

Pode-se observar, em todos esses usos, o enfraquecimento semântico do verbo ir, ao se tornar auxiliar, primeiro passo do processo de gramaticalização. Nele ainda está presente a idéia original de movimento, que mais tarde vai deixar de existir no seu emprego como auxiliar do tempo futuro junto a um verbo principal.

Desse modo, diacronicamente, no processo de gramaticalização do verbo ir, verifica-se um enfraquecimento, ocorrendo reanálise, na passagem de ir, do ‘movimento em direção oposta ao falante’ até o uso de ir como marca de futuro, como exemplificado a seguir:

(28) E foron logo ao moesteiro do honrado padre San Beento […] (DSG, 2, 24, 7)

(29) E muitas vezes acaece, Pedro, aos homens perfeitos que quando veen que o seu trabalho he sen fruito van demandar outro logar en que ajam trabalho de que saia fruito que praza a Nosso Senhor. (DSG, 2, 3, 57) (30) […] aí que diz … que vai comprar carro mas não compra […] (Fal. Não-esc.(séc. XX, p. 14, l. 16).

No exemplo (28), ir é empregado como verbo pleno e expressa um movimento em direção a um objetivo espacial: “o moesteiro”.

No exemplo (29), o verbo ir, apesar de auxiliar, ainda expressa movimento e o objetivo é “outro lugar”.

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No exemplo (30), o auxiliar ir se liga mais ao verbo principal comprar e deixa de expres- sar ‘movimento’ para atribuir ao verbo comprar a noção de ‘futuro’, havendo, nesse caso, reanálise. Essa reorganização da estrutura, que ocorre, no caso de reanálise, pode implicar uma mudança das fronteiras na cadeia falada, como aconteceu com a expressão amar hei > amarei.

5 Aplicação dos princípios de P. Hopper ao emprego

do futuro verbal

Quanto aos princípios de gramaticalização, procuram-se aplicar, neste estudo, aqueles apontados por P. Hopper, em 1991, tendo-se obtido os resultados comentados a seguir.

Como já se observou, na língua portuguesa, coexistem a forma mais antiga e a forma nova de futuro, ocorrendo uma variação lingüística. Na fala coloquial, emprega-se preferencialmente o futuro perifrástico (vou amar), ao passo que na língua escrita e na linguagem formal prefere-se o futuro sintético (amarei). Isso comprova o princípio da estratificação de P. Hopper, que pode ser visto nos seguintes exemplos:

Futuro perifrástico:

(31) Vamos começar: quarto crescente, lua nova, quarto... quarto crecente, lua cheia e quarto minguante. (NURC, p. 138, l. 406)

Futuro sintético:

(32) É um sol... é um céu que garante que... geralmente garante que no outro dia teremos um dia de sol. (NURC, p. 134, l. 244)

O princípio da divergência também pode ser comprovado, ao se observar a existência do verbo pleno ir ao lado do verbo ir auxiliar de futuro coexistindo na língua, como se observa a seguir:

Verbo pleno:

(33) [...] ah você vai, você vai ali pra mim, que eu lhe dou um dinheiro e tal (Fal. não-esc.).

Verbo auxiliar:

(34) Aí vai depender da loja. (Fal. não-esc., p. 24, l. 4).

No que se refere ao princípio da especialização, pode-se notar, claramente, o estreitamento que ocorre com o verbo ir ao se especializar, em certos contextos, para formar o futuro perifrás- tico na língua portuguesa (vou amar).

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Considerações finais

Como já foi observado, as formas de futuro do latim clássico desapareceram por sua falta de unidade e pela sua homonímia com outras formas verbais e foi a partir de construções perifrásticas modais freqüentes na fala popular do latim que se formou o embrião de um novo tempo futuro nas línguas românicas e de um modo especial no português.

Já se ressaltou que as formas do futuro perifrástico tornaram-se com a gramaticalização formas sintéticas, perdendo, assim, a transparência e passando a ter uma carga semântica “nor- mal - gramatical”, não estando mais sujeitas ao enriquecimento semântico. Depois dessa fusão, observa-se uma volta em busca das formas analíticas.

Como já foi assinalado, nos dados analisados do português falado no Brasil, notou-se uma maior preferência pelas formas analíticas do futuro do presente, representantes de uma das construções românicas possíveis para o futuro: vado + infinitivo, enquanto que para o futuro do pretérito, preferiu-se a forma sintética. Esses fatos apontam para uma mudança na gramática da língua portuguesa, pertencente à România Nova.

É preciso também lembrar que o futuro pode ser claramente expresso pelo contexto; isso já aconteceu no latim vulgar tardio, ocorre em dialetos italianos em que a forma de futuro não existe, e ainda acontece como variante na fala coloquial do português.

Observa-se, portanto, para o português moderno, que na língua coloquial continua a prefe- rência pelas formas perifrásticas, enquanto o futuro sintético, como em latim, é de emprego parcial, confinado à língua escrita e a situações orais formalísticas.

O emprego do presente com idéia de futuro é também muito comum no português atual. Basta, para isso, o emprego de certos advérbios de tempo que se referem às circunstâncias futuras.

A continuação desta pesquisa poderá apontar o início do emprego do futuro perifrástico com o auxiliar ir mais infinitivo do verbo principal, assim como a ampliação desse uso em séculos posteriores ao XIV.

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