a discussão de um problema em relação aos textos aqui reunidos: a questão da autoria. Dito de outro modo: como saber se, de fato, estão eles a testemunhar o português escrito por escravos. Comecemos por Claro, autor de 3 textos em seu nome e de 6 das 7 cartas a mando da africana Teodora. Em duas ocasiões, ao longo do processo que lhe moveram, quando lhe per- guntaram se sabia ler e escrever, o escravo respondeu que sim, porém mal. Além dessas duas passagens, o primeiro encontro de Teodora, já mencionado acima, com Claro parece não deixar dúvidas de que era o escravo alfabetizado, esse, inclusive, foi o motivo de aproximação entre os dois. Claro ainda registra, em algumas das 408 páginas do processo, a sua assinatura, inequivocadamente idêntica à dos seus 3 textos e à das 6 cartas de Teodora. Quanto a ter declarado que lia e escrevia mal, fica a dúvida: estaria Claro a querer que a sua figura não crescesse aos olhos dos seus inquisidores ou tinha ele consciência da sua precária habilidade com o português escrito? O escravo tinha, sem dúvidas, uma mão pouquíssimo hábil. Traçado inseguro, uso de módulos grandes, hipersegmentação, recurso a letras do alfabeto maiúsculo, mesmo em interior de palavras, são algumas das características listadas por Marquilhas (2000: 238) para as mãos inábeis portuguesas setecentistas que também encontram eco nos textos de Claro. Quanto ao seu domínio do português escrito, que nos revele uma das suas cartas:
Illustríssimo Senhor I no cemso de Memto
Sao Paulo 1º. de Maço de 1867
eu es timae ri que eta dua linha quer V a aCha o meu esti mado Senhor com muita Saude como para mim dezeio noto bem para Vossa Mercê filca Ss bemdo que eu ia fai 3 es momna que eu ando fora de mimha
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do portugûes arcaico ao português brasileirocaza eu ia caber que o Senhor vai para o Judiahi (vemho) falla [?] Senhor Franscisco Ben e dito de Asil na Rua de Santa Curlze pegado o pos tao de minha caza falla com elle para mim Saber no mais Sou de Vossa Mercê esicravo criado Obirgado
Claro Antonio do Santos e a sua procuração8:
em Sao Paulo no dia 21 de fer verio de 1867 Illustríssimo Senhor
1 mais cor lete de esda peta com huma gavata 9$000 1 hum di to Cha peo de Sol de esda 8$000 1 mais hum Cha peo de car beça 7$000 1 hum di to Chalé de lam bamco 9$000 1 mais dita caixa de esda peta 12$000 1 dita hum a i car ça de garremira peta 20$000 1 dito hum i carça de binco 9$000
1 dito hum palito de lam 6$000 1 di to hu camiza de lam vermeia 5$000 4 camiza de a mor ri fim no 24$000 2 camiza de xita 33$000
1 dito mais huma pé da de com es va 14$000 1 mais hum dito itojo de na vaia 3$0005 mais hum Cha peo de cabeça 3$0005
paço eta pecura cao para Semhor Francisco Be me ditto de a Sil pela or dem mimha Claro Amtonio do Santos
As característica paleográficas dos 9 textos escritos por Claro 3 em seu nome e 6 em nome de Teodora autorizam excluir uma como advinda de suas mãos. Trata-se de uma dirigida ao então senhor da escrava. Nela, o escriba parece estar muito mais familiarizado com a escrita; o traçado seguro e harmonioso do texto, o uso apropriado das maiúsculas, a ausência de segmentação nas palavras corroboram a favor da hipótese de que se trata de alguém mais habili- doso e acostumado à escrita que Claro. Isso, entretanto, não evitou que a pena deixasse escorrer alguns traços de um português popular (vortar, pormeça, enxú, para eu tira ismola nos domingo). Das duas, uma, ou as duas (ou nenhuma?!): ou o escriba buscou reproduzir ipsis litteris a fala que lhe era ditada pela autora intelectual, a escrava Teodora, ou maior treino escriptológico nada tem a ver com o aprendizado de um português mais normativo. Quanto à possível não equivalência entre treino escriptológico e domínio de um português mais padrão, vale a pena abrir um parêntese para ilustrá-lo com o caso dos juízes de paz, na Bahia do século XIX. O exercício desse cargo não exigia formação jurídica, apenas que seus ocupantes fossem cidadãos respeitáveis, geralmente comerciantes, proprietários médios e senhores de escravos, eleitos entre os seus (Reis, 2003: 429). Contudo, dadas as suas atribuições, escrever com fre- qüência fazia parte do seu universo. É o que demonstra o juiz de paz da freguesia de Brotas Antônio Gomes de Abreu Guimarães, que, na vasta correspondência trocada com a presidência da província, demonstrava, pela sua letra, ter intimidade com a escrita, mas, no que respeita ao português, deixou registros de que era utente de uma modalidade bastante popular9.
E agora, com a escrita, os escravos!
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Quanto à carta do escravo suicida, o relatório do subdelegado comprova a sua autoria: foi, de fato, escrita por Timóteo, uma vez que, criado em casa de seus senhores com alguma liberda- de, aprendeu a escrever. Possivelmente colheu o subdelegado essa informação dos senhores de Timóteo (teriam sido eles os que atribuíram a autoria da carta a Timóteo, uma vez que, como sugere o próprio escravo, os seus donos pareciam estar familiarizados com a sua letra?). Diferen- temente de Claro, a letra segura de Timóteo parece indicar alguém que escrevia com alguma constância o próprio escravo nos dá essa indicação: Poz-me preciso declarar = que nem foi eu [o autor?], e nem sabedor daquella infaime papel, embora deixe escorrer alguns traços da oralidade (addemirava, infaime) e de alguém que ainda titubeava nas regras da escrita (Não persuadão-se que eu fiz, por temer o que estava-se fazendo).
Sabemos ter sido Esperança Garcia alfabetizada, pelas informações do antropólogo Luiz Mott, já referido. Isso nos aponta para o fato de que teria sido a autora de sua própria carta, mas não para a certeza completa. O seu texto nos lega algum indício de que foi escrito por alguém que não conseguiu ocultar alguns traços da língua oral (dministração, adeministrar, algodois, vevia, ordinando), mas, daí a atribuir a autoria do documento à escrava, é outra história. Fica, então, essa carta como de provável autoria de Esperança Garcia.
estas enfeliz Linhas, obidiente, omeno, proteição, dos Carçado, Cazoci, Ingenho, urige são alguns exemplos que demonstram o português vazado na carta de Vitorino. A letra com traçado seguro e o conjunto harmonioso do texto revelam o cuidado do autor, pelo menos no momento em que produziu a carta. Quanto ao autor, não há dúvidas, foi o próprio Vitorino, porque, no processo movido contra ele, assina duas vezes o seu nome e a coincidência entre essas assinaturas e a constante do seu texto confirma o que se disse.
Quanto à carta de Arnaldo Rigão, nenhum indício autoriza nem desautoriza a afirmar que tenha sido escrita pelo punho do próprio escravo. Ressalte-se que, dentre as citadas, essa é a que mais se aproxima de um português padrão. De qualquer sorte, o texto parece nos revelar, tanto quanto ao português, como ao conjunto do texto, se tratar de alguém para quem a escrita era uma amiga das mais íntimas.