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En(de) e (h)i nos sécs XIII, XV e XVI Todas as coisas vejo remudadas

Porque o tempo ligeiro não consente Que estejam de firmeza acompanhadas

Camões (In: Andrade, 1978: 83).

No tempo dos afonsinos

Ainda relativamente jovem o rei Afonso II mandou registrar em treze cópias de pergami- nho o seu desejo testamentário, utilizando-se para isso a língua portuguesa, em uma época em que os textos oficiais eram ainda escritos em latim.

Desse documento datado de 1214, restaram apenas duas cópias, a que tinha sido enviada à Mitra de Braga – hoje em Lisboa –, e a que foi encaminhada à Catedral de Toledo para sua guarda.

Na primeira registra-se:

xxxv) L8/9 [Da out(ra) meiadade]i solten [ende]i p(ri)meiram(en)te todas mias devidas e [do

q(ue) remaser]j fazam [en[de]]j t(re)s partes e as duas partes agiã me(us) filios e mias filias e

departiãse ent(r’e)les igualm(en)te. Da t(er)ceira o arcebispo de Bragaa e o arcebispo de Santia- go e o bispo do Portu e o de Lixbona e o de Coi)bria e o de Uiseu e o d’Euora fazã desta guisa: q(ue) u q(ue)r q(ue) eu moira q(ue)r en meu reino q(ue)r fora de meu regno fazam aduzer meu corpo p(er) mias custas a Alcobaza.

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Na outra:

xxxvi) L11/12 [Da outra mia meiadade]i solten [ende]i p(ri)meiram(en)te mias deuidas todas e

[do q(ue) remas(er)]j facan [ende]j tres partes e as duas partes aian meus filios e mias filias e

departans’ antr’eles igualm(en)te. E da t(er)ceira o arcebispo d(e) Bragaa e u d(e) Sãtiago e u bispo do Porto e u de Lisbona e u d(e) Coinbra e u de Uiseu e u d’Euora facan ende desta guisa: q(ue) u q(ue)r q(ue) eu moira, q(ue)r en meu reino q(ue)r fora de meu reino, facan aduz(er) meu corpo p(er) mias c(us)tas a Alcobacia.

Esse “par mínimo” morfossintático poderia indicar opcionalidade de uso desse elemento nos primeiros momentos do registro escrito da língua portuguesa ou representaria um lapso de cópia do escriba?

Salvaguardadas ambas as possibilidades pela dificuldade de estabelecimento de uma ver- dade irrefutável imposta pela distância temporal, as diferenças nesse curto trecho de texto não se resumem ao âmbito do uso desse pronome, mas a diversas outras alterações que foram aponta- das em trabalho precedente por Machado Filho et al. (1998).

Não são, todavia, essas as únicas ocorrências de en(de) nesse documento:22

xxxvii) L8 Et mãdo q(ue) si a raina morrer en mia uida q(ue) [de todo meu auer mouil]i agia

[ende]i a meiadade.

xxxviii) L15 E o q(ue) remaser daq(ue)sta mia t(er)cia mãdo q(ue) segia partido igualme)te en cinq(ue) partes das quaes una den a Alcobaza u mando geitar meu corpo. A out(ra) ao moesteiro de Santa Cruz, a t(er)ceira aos Te)pleiros, a q(ua)rta aos Espitaleiros, [a q(ui)nta]i den por mia

alma o arcebispo de Bragaa e o arcebispo de santiago e os cinque bispos q(ue) suso nomeamos segu)do Deus. E den [ende]i aos omees d’ordin de mia casa e aos leigos.

As cinco ocorrências de en(de) detectadas na versão de Lisboa revelam em linhas gerais o seguinte:

a) ende ocorre em contexto em que o predicador verbal é do tipo V, [—DP] ou V, [— DP,PP].

b) em xxxv), o en(de) tem dois comportamentos distintos: Nos dois primeiros exemplos, funciona como adjunto de um DP, que por sua vez é o argumento interno do verbo. No último exemplo desta série que só acontece na versão de Toledo, apresenta-se como complemento do próprio verbo tipo V, [—DP].

c) em xxxvii), tem comportamento idêntico aos primeiros exemplos de xxxv), ou seja, de adjunto de um DP.

d) em xxxviii), é novamente complemento de um verbo tipo V, [—DP,PP], em que en(de) representa o DP.

Separando-se as análises, tem-se o en(de) como complemento de verbos que selecionam argumentos internos, em que assume a posição de objeto direto, mas cujo Caso a si atribuído é de partitivo, o que lhe impõe, conseqüentemente, uma leitura indefinida, assim como se viu em contexto similar no Flos Sanctorum.

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Quando en(de) se comporta como adjunto a um DP, não ocorre junto a um sintagma adjetival, senão a um sintagma nominal. Sua realização é também idêntica às verificadas anteriormente no Flos.

Diferentemente do Testamento de Afonso II,23 no Foro Real de Afonso X, as ocorrências de

en(de) são bastante mais profusas.

No recorte selecionado para análise nesse códice traduzido do castelhano no século XIII e em que, segundo Ferreira (1987: 43), “foram mantidas as características lingüísticas”, o en(de) assume configurações morfossintáticas não atestadas no Flos.

As formas dende e desende não são incomuns. Contudo, apresentam-se como locuções nas formas dende a iuso24 ou desende a iuso, com uma única ocorrência de ende a suso,25 cujos exemplos

se reproduzem abaixo para registro:

xxxix) F111v Ca poys que ygaes su) en grao, ygaes son na partiçõ. E esto meesmo seya dos primos ou dende a iuso que ouuere) dereyto d’erdarense do do morto.

xl) F110r Tod’ome que ouuer filhos ou netos ou desende a iuso de molher de beeyçon, non possam erdar cu) elles outros fillos nenhuus que aya de barragaa.

xli) F110r E se no) for uiuo mays de huu), aquel herde. E se no) ouuer padre nen madre nen filho, erdeno os auoos ou ende a suso en esta meesma guysa.

O ende é também encontrado na composição da locuções conjuncionais fora(s) ende que e saluo ende se. Vejam-se alguns casos:26

xlii) F85v E se o senhor o fforrar sen preço e el forrado morrer sen fillos lijdimos e sen manda, o que o forrou [ou] seus herdeyros leuen todo o seu auer; e sse desonrra fezer a seu senhur ou a quen del for ou lho acusar de morte ou lho acusar cu) alguu de seu linagen, possao seu senhur ou seu herdeyro mays prouinco tornar a seruidoe. E isto seya outrosy das forras, fora ende que case) hu podere).

xliii) F110v e seyã ambos metudos en poder da molher primeyra cu) todo seu auer, se fillos doutro marido non auia ou ben leu legitimos que leuen toda sa boa (e) e de sa madre. E aquella molher primeyra faça d’ambos e do auer como quiser, fora ende que os non mate nen faça matar. xliv) F128v pero se o que o trouue o enuiar ou o deffender non seya teudo de responder aos outros, saluo ende se lhy deffenderõ os alcaydes que o no) enuiasse.

A par dessas ocorrências, foram identificadas 25 formas de ende,27 contra apenas 04 de en.

São as seguintes as de maior representatividade sintática para análise:

xlv) F71v E depoys resucitouse en carne e amostrouse aos seus dicipulos e comeu con elles e leyxous confirmados en sa fe sancta catholica e subyo aos ceos en corpo en dignidade e ende uerra na cruz eneste mundo dar juyzo aos boos e aos maos.

xlvi) F75r Outrosy mandamos que bispo ne) abade ne) prelado non possa uender nen alhear nenhua cousa das que garõ per razon d’acrecentar en sa eygreya, mays se algu)a cousa gaar ou

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cõprar por razõ de ssy ou por herdar que) quiser ou de seu patrimonyo faça ende o que lly prouguer e quiser.

xlvii) F78r E se mostrar carta de pessoarya mostrea ao contendor da outra parte e délhy ende o translado, se o demandar, per que o possa saber de que é pessoeyro ou en que maneyra.

xlviii) F99r Se peruentura o teedor daquella cousa no) for na terra presente e aquel que diz que a cousa é sua ueer ante o alcayde e querelese do teedor da cousa e o teedor no) é na terra, o alcayde metao na teença da demanda ante boas testimonhias e thenha aa tença per . VIIIº . dias e nenhua cousa no) tome nen alee ende <e> des . VIII . dias adeãte leyxea en paz pera aquel que a ante tija. xlix) F105v E se lhy deu arras ante que morresse e no) ouue que ueer cu) ella, torne as du)as a seus parentes ou a que) el mandar, e se ouue que ueer cu) ella, ayaas como manda a ley. E se elha der ende algu)a cousa a seu sposo quer a beygasse quer non, se no) ouue de ueer mays cu) elha […], non lhy torne nenhu)a cousa das doas que dela ouue.

l) F108v E outrosy, se daquilho que primeyro auya mandado, algu)a cousa tolher ou der ou alhear da manda que auya feyta daquelho, non ualla, empero que nomeadame)te ante a desfez ca atanto ual que a desfaça toda se quiser per feyto como per dito quandu lhy prouger. E se aquillo que auya mandado ia, depoys manda enoutro logar ou ende algu)a cousa dar ou alhear, possao fazer. li) F121r Quen caualo ou boy ou outra cousa qualquer receber en guarda por preço que receba ende ou que aya de receber, se se perder peyte outro tãto como aquilo era, empero que se no) perdesse per sa culpa ou per sa preguyça, se no) foy cousa que morresse per morte natural.

Como se pode depreender pelos exemplos apresentados, en(de) é argumento interno em VPs do tipo V, [—DP], ou seja, funciona em construções transitivas como complemento, ocu- pando o lugar de objeto direto, a exemplo de xli) com o verbo receber, em que lhe é atribuído Caso partitivo, consoante ao que acontece no Testamento de Afonso II e no Flos Sanctorum.

Serve de adjunto em construções inacusativas do tipo V, [DP], que, como se viu, identifica verbos que selecionam argumento interno, mas como não têm capacidade de lhe atribuir Caso acusativo, essa atribuição se realiza na categoria funcional I, fazendo com que o argumento se mova para a posição reservada ao sujeito, como em xlv), com o verbo viir [> vir].

Nas outras ocorrências, o en(de) se adjunge a DPs. Nesses casos, os exemplos são bastante claros no sentido de reforçar a idéia de não funcionarem como complementos e, sim, como adjuntos. Observe-se o exemplo xlix), mais uma vez apresentado em lii):

lii) F105v E se lhy deu arras ante que morresse e no) ouue que ueer cu) ella, torne as du)as a seus parentes ou a que) el mandar, e se ouue que ueer cu) ella, ayaas como manda a ley. E se elha der [ende]i algu)a cousa [ ]ti a seu sposo quer a beygasse quer non, se no) ouue de ueer mays cu) elha

[…], non lhy torne nenhu)a cousa das doas que dela ouue.

O verbo dar, do tipo V, [—DP,PP], ao satisfazer toda a sua predicação com os argumentos elha (—), algu)a cousa (DP) e a seu esposo (PP), permite a leitura de que ende estaria relacionado ao DP (algu)a cousa), que, por sua vez, não seleciona qualquer tipo de argumento, apenas, como é sempre possível se esperar, admite adjuntos.

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Quanto ao (h)i, este ocorre uma única vez no Testamento de Afonso II:

liii) L5 E mãdo da dezima dos morauidiis e dos dieiros q(ue) mi remaseru) de parte de meu padre q(ue) su) [en Alcobaza]i e do outr’auer mouil q(ue) [i]i posermos pora esta dezima q(ue) segia

partido pelas manus do arcebispo de Bragaa e do arcebispo de Santiago.

Mas 21 vezes no Foro Real.

No exemplo extraído do Testamento, sua função anafórica é inteiramente clara, já que substitui o PP en Alcobaza. Sua relação com o verbo do tipo V, [—DP,PP] parece indicar que, diferentemente do que se tem pregado, funciona como seu complemento.

Observem-se, entrementes, alguns dos dados patentes no Foro Real:

liv) F74v e porque auemos grande sperãça enella que quantos a aguardamos e manteemos en sas franquezas e en sas liuridoes aueremos poren gallardon de Deus e peras almas e peros corpos en uida e en morte e porque [i]i é onrra de nos e de nossos reynos, pore) queremos mostrar como se

guarden por todo tempo as cousas das eygreyas.

Enquanto o contexto acima não permita concluir inequivocamente sobre a relação do pronome com seu antecedente, pode referendar uma análise em prol da condição de adjunto verbal desse elemento.

Mas eis outras ocorrências em que se relaciona com o verbo:

lv) F74r Assy como nos sumos teodos de dar gualardõ dos bees d[este mundo]i aos que nos [y]i

serue), mayormente deuemos dar a Nostro Senhur Ihesu Cristo dos bees terreaes por saude de nossas almas de que auemos uida eneste mundo e todos outros bees que auemos e asperamos mayor gualardon eno outro e uida perdurauel.

lvi) F87v E nenhuu ome) que for metudo en prazo no) aduga sigo mais de . V . omees e el sexto ao plazo. E se mays […] [y]? ueere) de cada hu)a parte daquellas ou no) quisere) sair per mandado

do alcayde peyte cada huu delles . X . marauidis.

lvii) F100r E se ha hu)a das partes no) quis uijr ao prazo que lhy for posto a ouuir seu juizo nõno leixe poren de dar ou dé a sentença <de> dia e no) de noyte e seyã [y]i28 omes boos quando der

deante o juyzo per que se possa prouar se for mester.

lviii) F110v E per que sse non possa fazer engano ena nacença do fillo ou da filha, o alcayde connos parentes subredictos ponham duas molheres boas almeos que esten cu) lume deante ena nacença e no) entre [y]i29 outra molher aaquella ora que ouuer a parir, foras ende aquella (este) que

deue seruir a pariçõ.

As construções de maneira geral refletem o que até aqui se tem demonstrado, esse prono- me funciona com adjunto verbal, notadamente em construções inacusativas.

Em construções transitivas assume significação locativa de traço [-físico], sobretudo nocional, aparecendo como adjunto de sintagma nominal, mas muito restritamente, como no caso abaixo:

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lix) F110v E per que sse non possa fazer engano ena nacença do fillo ou da filha, oalcayde connos parentes subredictos ponham duas molheres boas almeos que esten cu) lume deante ena nacença e no) entre y outra molher aaquella ora que ouuer a parir, foras ende aquella (este) que deue seruir a pariçõ. E seya ben catada que no) possa fazer [y]i30 outro engano [ ]ti.

lx) F127v E entregue dublado o que tomou demays aaquel que o tomou. E se peruentura tal for a cousa de que se deue a fazer a entrega que no) aya y pe)a [ ] ti, o meyrinho ou o sayõ ou o que a

(a) entrega fezer, recebiaa seu dezimo do auer do que ouue de pagar a diuida ou que ten a cousa sen dereyto.

Então, em linhas gerais, no século XIII, segundo o testemunho dos documentos analisa- dos, enquanto o (h)i pode servir de complemento ou adjunto de um verbo e apenas de adjunto de nomes, o en(de) demonstra, nesse período, a possibilidade de ocorrer como argumento de cons- truções transitivas, em que pode ocupar a posição de objeto direto, mas cujo Caso a si atribuído é o partitivo; de funcionar como adjunto em construções inacusativas do tipo V, [DP], além de se adjungir a DPs, como inequivocamente o faz no exemplo li) antes apresentado.