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Discricionariedade judicial?

3 – REPERCUSSÃO GERAL

3.4. Discricionariedade judicial?

O termo discricionariedade foi bastante desenvolvido pelos estudiosos do direito administrativo, significando, em linhas gerais, a possibilidade de escolha entre diversas formas de se chegar ao bem comum. No entanto, muito se discute a respeito da possibilidade de se afirmar que as decisões judiciais seriam discricionárias, na medida em que ao juiz compete verificar qual a melhor solução para determinada controvérsia, não estando vinculado a uma única solução pelo legislador.

Entende-se discricionária a decisão administrativa que tenha sido definida por critérios de oportunidade e conveniência do administrador público, no tocante ao mérito do ato. Isto é, havendo a possibilidade de mais de uma escolha, o administrador opta por uma determinada, sendo que, entretanto, qualquer uma delas seria entendida como válida e correta, pois são conferidas pela legalidade administrativa. Neste sentido, não se pode falar propriamente em acerto ou erro, pois cabia legitimamente ao administrador realizar a escolha.

Com o Estado de Direito, toda atividade administrativa foi subjugada a um quadro normativo, impositivo a todos: Estado e indivíduos particulares. Por isso, desde então se entende que a atividade administrativa é uma atividade essencialmente infralegal, sendo que a Administração apenas pode atuar quando a lei permite, de modo que não goza de liberdade tal como os particulares, a quem é permitido agir conforme aquilo que não lhes é proibido. Mas, apesar dessa vinculação à lei, casos existem em que o legislador confere ao administrador uma margem de liberdade em sua atuação, denominada pela doutrina de discricionariedade administrativa209.

No entanto,

208 José Carlos Baptista Puoli, Os poderes do juiz, p. 72. 209 Celso Antônio Bandeira de Mello, Discricionariedade, p. 16.

a lei, ao regular as várias possíveis situações a ocorrerem no mundo real, pode disciplinar a conduta do agente público estabelecendo de antemão e em termos estritamente objetivos, aferíveis objetivamente, quais as situações de fato que ensejarão o exercício de uma dada conduta e determinando, em seguida, de modo completo, qual o comportamento único que, perante aquela situação de fato, tem que ser obrigatoriamente tomado pelo agente. Neste caso, diz-se que existe vinculação210.

Nas hipóteses em que a lei confere certa margem de liberdade ao administrador, normalmente haverá uma referência à situação de fato, mas frequentemente descrita por expressões envolvendo conceitos fluidos, imprecisos, também denominados de vagos ou indeterminados.

A respeito do ato administrativo discricionário, Maria Sylvia Di Pietro explica que a sua justificativa ocorre por um critério de ordem jurídica e outro de ordem prática. Como o ordenamento jurídico é piramidal, havendo vários graus pelos quais se expressa o Direito. A cada ato, acrescenta-se um elemento novo não previsto no anterior, momento em que se utiliza a discricionariedade, permitindo a final aplicação da norma ao caso concreto. Em razão do critério de ordem prática, a discricionariedade se justifica “para evitar o automatismo que ocorreria fatalmente se os agentes administrativos não tivessem senão que aplicar rigorosamente as normas preestabelecidas” e também para “suprir a impossibilidade em que se encontra o legislador de prever todas as situações possíveis que o administrador terá que enfrentar”211.

A característica central da discricionariedade certamente reside na possibilidade de que o administrador tenha alguma margem de escolha, prevista em lei, a ser preenchida por critérios de conveniência e oportunidade no caso concreto. A discricionariedade pode se dar quanto ao momento de prática do ato administrativo, à escolha entre agir ou não agir perante determinada situação, assim como quanto ao motivo e conteúdo dos atos administrativos212.

O motivo213 será discricionário quando a lei não o definir, deixando a critério da Administração, ou quando a lei o definir por meio de conceitos jurídicos indeterminados,

210 Ibdem.

211 Direito administrativo, p. 220.

212 Valendo-se o legislador de tal técnica, haverá uma interferência subjetiva no que se refere “a) à

determinação ou reconhecimento da situação fática ou b) no que concerne a não agir ou agir ou c) no que atina à escolha da ocasião asada para fazê-lo ou d) no que diz com a forma jurídica através da qual veiculará o ato ou e) no que respeita à eleição da medida considerada idônea perante aquela situação fática, para satisfazer a finalidade legal” (Celso Antônio Bandeira de Mello, Discricionariedade, p. 17).

cabendo ao administrador apreciá-los segundo critérios de oportunidade e conveniência administrativa. Um exemplo se refere à punição do servidor que praticar “falta grave”, em hipótese na qual a lei não traz elementos precisos sobre o que seria a “falta grave”.

Com relação ao conteúdo, “será discricionário quando houver vários objetos possíveis para atingir o mesmo fim, sendo todos eles válidos perante o direito”214. Exemplificativamente, mencionam-se as hipóteses em que a lei prevê diversas punições possíveis para uma mesma infração, como “multa ou suspensão” de um determinado direito.

Assim, conclui Celso Antônio Bandeira de Mello que:

discricionariedade, portanto, é a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das pressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente215. Com relação à decisão do STF sobre a repercussão geral das questões constitucionais, há quem entenda que seria discricionária, como José Levi Mello do Amaral Junior e Ives Braghittoni216, tendo em vista a ampla margem de interpretação decorrente dos conceitos jurídicos indeterminados empregados na regulamentação da EC nº 45/2004:

se o legislador quisesse que o julgamento fosse de outra forma, que não a decisão política e discricionária, sobre o que é transcendente (ou relevante, ou de repercussão geral), não teria usado essas expressões. Teria tentado definir, na própria norma, qual o seu entendimento sobre quais são as matérias transcendentes, ou relevantes, ou de repercussão geral217.

Porém, como visto, a decisão a respeito da existência ou não de repercussão geral deve ser entendida como uma decisão jurisdicional, e não um ato político da Corte. Assim, distintamente do administrador público, verifica-se que o juiz não julga com fundamento em critérios de oportunidade e conveniência, ainda que a lei lhe confira uma margem mais

214 Maria Sylvia Di Pietro, Direito administrativo, p. 223. 215 Discricionariedade, p. 48.

216 Em artigo datado de 1977 e publicado em 1988, Barbosa Moreira também concordou que “o juiz não raro

se vê autorizado pelo ordenamento a opções discricionárias. Incluem-se nesse âmbito, v.g., no terreno penal, a possibilidade de perdão judicial, bem como a de escolher a pena entre duas ou mais alternativamente cominadas” (Regras de experiência, p. 65-66).

ampla para a decisão. Na realidade, o juiz busca a melhor decisão, que será a única correta. A eventual margem no processo decisório tem como finalidade permitir ao juiz verificar qual será a melhor solução para o caso concreto, mas sem que se possa entender que as demais soluções também seriam corretas. Neste ponto reside a diferença entre a decisão judicial e a decisão administrativa discricionária.

De fato, como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, “quando realmente existe discricionariedade, não há apenas um problema de não se poder provar algo; há o problema de não se poder saber qual é a solução ótima”218. Mas as decisões judiciais devem sempre buscar a solução ótima – única decisão possível – sob pena de reforma da decisão proferida pelas instâncias superiores.

Teresa Arruda Alvim Wambier também advoga pela tese de que não se pode entender que o Poder Judiciário age com discricionariedade quando interpreta (e aplica ao caso concreto) norma que tenha conceito vago. Isso porque a ideia de discricionariedade está intimamente conectada à noção de imunidade ou impossibilidade de controle, pelo menos em certa escala. Para ser discricionária, a decisão teria que estar fora do controle das partes.

Com efeito, em relação à Administração, nosso ordenamento jurídico admite que haja certa tolerância com as decisões que não seriam ótimas, “mas, simplesmente, muito boas”, de modo que nestas hipóteses não há controle judicial sobre o poder de escolha do administrador. O poder discricionário seria, neste contexto, justamente a possibilidade do administrador em realizar escolhas, com uma certa margem de liberdade.

E se é verdade que a discricionariedade remete a basicamente dois fenômenos: (i) possível existência de uma zona de liberdade para o agente aplicador da lei, gerando o espaço onde haverá diversas soluções permitidas, e (ii) o conceito vago, havendo quem defenda que a mera existência de conceito vago já demonstraria a discricionariedade; é certo que o conceito vago, por si só, não denota a existência de poder discricionário, pois a interpretação não se confunde com discricionariedade.

Mais uma vez citando Teresa Arruda Alvim Wambier219,

o conceito vago, como observamos antes, desempenha duas funções que nos parece devam ser valorizadas positivamente: 1. Permite que se incluam, sob o agasalho da norma, casos em que o

218 Discricionariedade, p. 42.

legislador poderia não ter pensado e, então, ficariam fora do alcance da norma; 2. Permite que a mesma norma dure mais no tempo, pois o conceito vago ou indeterminado é mais adaptável; 3. Permite que a mesma norma seja aplicada de forma mais justa em um mesmo tempo, mas em lugares diferentes. Este, e só este, é o alcance que se deve atribuir à flexibilidade ínsita aos conceitos vagos.

A autora, após questionar o que seria essa liberdade concebida ao magistrado, quando necessária a interpretação de conceitos vagos, responde: “para o magistrado há, nesses casos, em que habitualmente a doutrina assevera que estaria exercendo poder discricionário, liberdade para chegar à decisão correta, que é uma só, em face de certo caso concreto”220.

Ao analisar os conceitos vagos utilizados pelo legislador, o juiz terá inegável amplitude de interpretação, mas o seu exercício será sempre vinculado, fundamentado e sujeito a controle, de modo que realmente não se pode chamar tal atividade hermenêutica de discricionariedade judicial:

o juiz, ao decidir à luz dessas regras, não o faz por conveniência e oportunidade, juízos de valor próprios da discricionariedade. Nesses casos, verificando haver subsunção da situação descrita pela parte a qualquer das hipóteses legais, não restará outra alternativa ao julgador, senão aplicar a regra invocada. Dessa decisão cabe recurso221.

Arruda Alvim corrobora esse posicionamento, afirmando que a interpretação dos conceitos vagos a respeito da repercussão geral “não comporta dualidade de soluções”222, pois uma determinada causa pode apresentar, ou não, repercussão geral, não havendo outra solução.

José Carlos Baptista Puoli, na mesma linha, adverte que

não se deverá confundir esta maior ‘margem de liberdade’ do julgador com uma atividade discricionária, pois não se trata de fazer uma opção entre duas alternativas igualmente válidas segundo o ordenamento jurídico, mas sim, de integrar o sentido da norma por intermédio da complementação de seu conteúdo com aquilo que é a única opção válida em conformidade com os valores éticos e sociais que devem ser canalizados pelo juiz223.

E no tocante ao julgamento do recurso extraordinário,

220 Ibdem, p. 193.

221 José Roberto Santos Bedaque, Discricionariedade judicial, p. 190. 222 A EC nº 45 e o instituto da repercussão geral, p. 86-87.

a despeito da possibilidade de controle ser restrita, disso não é lícito concluir que estaríamos diante de juízo discricionário. Muito pelo contrário. O sistema indica que, para caso examinado pelo STF, apernas uma solução pode ser tida como a melhor, e é justamente esse o posicionamento, baseado no sistema constitucional e nas peculiaridades do momento histórico, que se espera da mais alta Corte do País224.

No mesmo sentido, salientam Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero que há de se empreender um esforço de objetivação valorativa nessa tarefa. E, uma vez caracterizada a relevância e a transcendência da controvérsia, o Supremo Tribunal Federal encontra-se obrigado a conhecer do recurso extraordinário225.

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