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Efeito vinculante e efeito erga omnes das decisões do STF: distinção e escalada legislativa

A abstrativização do controle de constitucionalidade corresponde a um fenômeno paralelo à crescente força que o legislador vem atribuindo aos precedentes dos tribunais superiores no direito brasileiro, notadamente do STF. Deste modo, percebe-se uma constante aproximação do direito brasileiro, tradicionalmente classificado como sistema jurídico de civil law, ao sistema da common law, movimento que na realidade tem sido mundialmente observado65.

Analisada a abstrativização no capítulo anterior, entende-se, então, demonstrar que ao longo dos últimos anos o legislador vem atribuindo cada vez mais força aos precedentes do STF, juntamente com as decisões dos demais tribunais superiores. Há necessidade de tal exposição porque a regulamentação da repercussão geral, principalmente quanto ao procedimento dos recursos múltiplos, situa-se neste contexto, o que será objeto de capítulo próprio da dissertação.

No início, o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade se limitava ao controle incidental, de modo que cabia a cada interessado ajuizar ação pleiteando a declaração de inconstitucionalidade de um determinado ato infraconstitucional. Como visto, o sistema era basicamente aquele presente nos Estados Unidos, ao final do século XIX. Por isso, a regra era (e continua sendo, quanto ao controle difuso) de que os efeitos da decisão declaratória de inconstitucionalidade fossem inter partes, ou seja, limitados subjetivamente às próprias partes envolvidas no litígio.

Após a Constituição de 1934, em razão da inexistência do stare decisis no direito brasileiro, passou-se a prever que, com a decisão declaratória de inconstitucionalidade pelo Supremo, caberá ao Senado suspender a execução de lei incidentalmente declarada inconstitucional, de modo a conferir efeitos erga omnes à decisão da Corte (na atual Constituição, esta previsão está no artigo 52, inciso X).

No mais, também as decisões proferidas em sede de ações diretas, com origem na representação contra inconstitucionalidade da Constituição de 1946 e na ação direta de inconstitucionalidade criada pela EC nº 16/1965, têm efeitos contra todos (erga omnes).

65 Havendo também crescente influência do sistema da civil law sobre os ordenamentos jurídicos dos países

Portanto, o controle de constitucionalidade basicamente lidava com duas possibilidades de efeitos: inter partes ou erga omnes, sendo que, em razão deste último, todos os brasileiros passam a ficar sujeitos à decisão do Supremo, inclusive os demais órgãos do Poder Judiciário66. Como decorrência da eficácia erga omnes, atribui-se “força de lei” às decisões do Supremo67. Contudo, sempre se entendeu que apenas o dispositivo da decisão é que seria dotado de tal efeito68, isto é, apenas a ratio decidendi é que se estenderia além das partes litigantes.

Distintamente, a ideia de efeito vinculante é mais recente, tendo se desenvolvido, no âmbito legislativo, basicamente após 1992, pois as disposições anteriores não tratavam exatamente do mesmo instituto que atualmente se refere, por exemplo, às súmulas vinculantes do Supremo.

No passado, ao disciplinar a representação interpretativa trazida pela EC nº 7/1977, o artigo 187 do RISTF (vigente à época) mencionava que

a partir da data de publicação da ementa do acórdão no DOU, a interpretação nele fixada terá força vinculante, implicando sua não- observância negativa de vigência do texto interpretado.

E, além disso, por força das Ordenações Manuelinas e Filipinas, com regulamentação da Lei da Boa Razão, de 1769, permitia-se à Casa de Suplicação a emissão de assentos com força vinculativa, os quais seriam dotados de força obrigatória geral.

No entanto, mais recentemente, a expressão efeito vinculante passou a ser utilizada de forma mais técnica, como técnica distinta do efeito erga omnes, embora sejam afins. De fato, inspirada na PEC nº 130/1992 apresentada por Roberto Campos, a EC nº 3/1993 estabeleceu que

as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito

vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo (artigo 102, §2º, da Constituição, em sua redação original).

Anos depois, a Lei nº 9.868/1999 e a EC nº 45/2004 acabaram por retificar tal norma, de modo que as decisões tanto em sede das ações diretas de constitucionalidade

66 Alexandre de Moraes, Direito constitucional, p. 772. Aliás, para Dirley da Cunha Júnior, “a só eficácia erga omnes da decisão já era suficiente para se admitir o efeito vinculante, não fosse a distinção, sem sentido, feita pelo Supremo Tribunal Federal em aceitar a ação de reclamação em face deste e não acolher em razão daquela” (Curso, p. 384).

67 Hely Lopes Meirelles et. al, Mandado de segurança e outras ações constitucionais, p. 499. 68 Ibdem, p. 498.

quanto das ações diretas de inconstitucionalidade são dotadas de eficácia erga omnes e efeitos vinculantes (artigo 28 da Lei nº 9.868/1999 e artigo 102, §2º, da Constituição, em sua redação atual).

Conforme exposto por Roberto Campos na exposição de motivos da PEC nº 130/1992, a ideia de efeito vinculante estava ligada ao direito constitucional alemão, onde não só a parte dispositiva da decisão, mas também os seus fundamentos determinantes se estenderiam a todos. Isto é, enquanto a teoria da coisa julgada apenas permite que a parte dispositiva das decisões tenha força de lei (efeito erga omnes), o efeito vinculante serviria para obrigar os demais órgãos constitucionais, tribunais e autoridades administrativas também aos fundamentos determinantes (obter dicta) dos precedentes do Supremo:

trata-se de instituto jurídico desenvolvido no Direito Processual Alemão, que tem por objetivo outorgar maior eficácia às decisões proferidas por aquela Corte Constitucional, assegurando força vinculante não apenas à parte dispositiva da decisão, mas também aos chamados fundamentos ou motivos determinantes (tragende

Gründe). A declaração de nulidade de uma lei não obsta à sua reedição, ou seja, a repetição de seu conteúdo em outro diploma legal. Tanto a coisa julgada quanto a força de lei (eficácia erga

omnes) não lograria evitar esse fato. Todavia, o efeito vinculante que deflui dos fundamentos determinantes (tragende Gründe) da decisão obriga o legislador a observar estritamente a interpretação que o tribunal conferiu à Constituição. Consequência semelhante se tem quanto às chamadas normas paralelas. Se o tribunal declarar a inconstitucionalidade de uma lei do Estado A, o efeito vinculante terá o condão de impedir a aplicação de norma de conteúdo semelhante do Estado B ou C69.

Todavia, não tem sido essa a exata interpretação atribuída pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Conforme os precedentes existentes sobre questões envolvendo as eficácias erga omnes e vinculante, a diferenciação se coloca na possibilidade de ajuizamento de reclamação constitucional contra a inobservância das decisões com efeitos vinculantes. O que, por outro lado, não seria possível às decisões com somente eficácia

erga omnes, cujo controle jurisdicional se submete às regulares instâncias da Justiça brasileira.

Ao decidir sobre a inadmissibilidade de reclamação constitucional contra decisão do Supremo em uma ação popular, cujo acórdão possui efeitos erga omnes, assim se justificou o Min. Ricardo Lewandowski:

69 Exposição de motivos da PEC nº 130/1992, publicada no Diário Oficial do Congresso Nacional, em

o acórdão invocado nas razões desta reclamação apreciou, especificamente, o procedimento de demarcação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, não podendo, por isso mesmo, ter sua autoridade afrontada por atos e decisões que digam respeito a qualquer outra área indígena demarcada, como é o caso narrado nos autos. Isso porque não houve no acórdão que se alega descumprido o expresso estabelecimento de enunciado vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário, atributo próprio dos procedimentos de controle abstrato de constitucionalidade das normas, bem como das súmulas vinculantes, do qual não são dotadas, ordinariamente, as ações populares. Não foi por outra razão que o Ministro Ayres Britto, Relator da Pet 3.388/RR, asseverou, ao censurar o cabimento de reclamação análoga a que ora se examina (Rcl 8.070/MS), que ação popular não é meio processual de controle abstrato de normas, nem se iguala a uma súmula vinculante70.

Solução esta que foi recentemente acolhida pelo Plenário do Supremo no julgamento de embargos de declaração na PET nº 3.388, sobre a demarcação da reserva Raposa do Sol:

a decisão do STF sobre a demarcação da Raposa Serra do Sol não vincula juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas, explicou o ministro Barroso ao analisar outro ponto dos embargos da PGR. A decisão vale apenas para a reserva em questão. Nesse sentido, Barroso lembrou que a Corte já negou reclamações em outros casos, que alegavam desrespeito à decisão tomada nesta Petição. Contudo, o ministro ressaltou que a ausência de vinculação formal não impede que a jurisprudência construída pelo STF, estabelecendo diretrizes, possa ser seguida pelas demais instâncias. Isso porque, embora não possua efeitos vinculantes, “a decisão ostenta a força intelectual e persuasiva da mais alta Corte do País”, arrematou Barroso71.

Portanto, o STF realmente parece focar na possibilidade, ou não, de propositura de reclamação constitucional como sendo o elemento central de distinção entre as eficácias

erga omnes e vinculante de suas decisões.

A par de todas essas teorias, outra interpretação possível sobre o conceito de efeito

vinculante, refere-se àquela atribuída por Eduardo Talamini, ao apontar ao menos três acepções possíveis para a “eficácia vinculante em sentido amplo”: (i) vinculação fraca ou mera persuasão; (ii) vinculação média ou regras de dispensa; e (iii) vinculação forte ou força vinculante em sentido estrito.

70 STF, Decisão monocrática na Rcl 13679/DF, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski, Dje 25.5.2012.

71 Trata-se de notícia veiculada no sítio do STF, pois o acórdão ainda não lavrado. Disponível em : [www.stf.

A primeira ideia tem relação com a força dos precedentes normalmente presente nos sistemas da civil law, ou seja, de mera persuasão, pois os precedentes judiciais são invocados com a simples finalidade de influenciar a convicção do magistrado, não havendo exatamente uma vinculação a ratio decidendi anterior.

Pela segunda acepção, também assim se denominaria o conjunto de regras de dispensa ou autorizações de simplificação, que são hipóteses em que, tendo em vista a “existência de precedentes ou de uma orientação jurisprudencial consolidada, a lei autoriza aos órgãos judiciais ou da Administração Pública a adotar providências de simplificação do procedimento e consequente abreviação da duração do processo”72, o que seria caso de vinculação média.

Em terceiro lugar, por vinculação propriamente dita, entende-se a possibilidade de imposição obrigatória de um pronunciamento da Corte, cujo descumprimento implica afronta à sua autoridade, nos moldes da jurisprudência do STF acima mencionada. E, a respeito desta acepção, o primeiro elemento para se identificar a força vinculante em sentido estrito refere-se ao conteúdo da decisão. Isso porque “a decisão investida da força vinculante consiste em pronunciamento sobre a validade, eficácia ou a interpretação de ato normativo. Por isso, afirma-se que o processo destinado à produção de tal ato é objetivo”73. Além disso, neste último caso, (i) a competência é concentrada em um único órgão; (ii) a via processual utilizável é tipicamente fechada, não sendo permitidas as vias ordinárias de tutela processual; e (iii) a decisão proferida não tem mera eficácia declaratória, pois também possui “eficácia anexa impositiva”74 da aplicação do comando declaratório em relação aos outros órgãos estatais.

Como já introduzido no início deste tópico, esta vinculação já estava presente nas decisões liminares e acórdãos de acolhimento ou improcedência do pedido na ação direta de inconstitucionalidade, na ação declaratória de constitucionalidade e na arguição de preceito fundamental, nos termos dos artigos 102, §§1º e 2º, da Constituição e 11, §1º, 12- F, §1º, 21, 28, parágrafo único, da Lei nº 9.868/1999, 5º, §3º, e 10, §3º, da Lei nº 9.882/1999.

Sendo que, mais recentemente, com a EC nº 45/2004, o STF foi autorizado a editar súmulas vinculantes aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração, após

72 Objetivação do controle incidental, p. 144. 73 Eduardo Talamini, Op. Cit., p. 138. 74 Ibdem, p. 140.

decisões reiteradas sobre o tema e mediante a aprovação de dois terços de seus membros. Contra a decisão ou o ato administrativo que violar súmula vinculante, caberá reclamação diretamente ao STF (artigo 103-A da Constituição):

a súmula vinculante, como o próprio nome indica, terá o condão de vincular diretamente os órgãos judiciais e os órgãos da Administração Pública, abrindo a possibilidade de que qualquer interessado faça valer a orientação do Supremo, não mediante simples interposição de recurso, mas por meio de apresentação de uma reclamação por descumprimento de decisão judicial (CF, art. 103-A)75.

No mais, com relação às regras de vinculação média, e em que pese a impropriedade do termo76, vale mencionar que também houve notável escalada legislativa, confirmando que, ao longo do tempo, o legislador vem cada vez mais valorizando os precedentes judiciais de nossas Cortes Superiores.

Em 1998, a Lei nº 9.756 alterou a redação do caput do artigo 557 do CPC e introduziu os §§1º-A e 2º, atribuindo ao relator poderes para negar ou dar seguimento ou provimento a recursos – conforme o caso, quando haja súmula (persuasiva) ou jurisprudência dominante do STF – do próprio tribunal ou de outro tribunal superior.

O parágrafo único do artigo 481 do CPC, também acrescentado pela Lei nº 9.756, prevê exceção à reserva de plenário, no julgamento pelos tribunais a respeito da arguição de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, quando já houver pronunciamento do plenário do respectivo tribunal ou do plenário do STF.

No ano de 2006, a Lei nº 11.276 instituiu a chamada súmula impeditiva de recursos, que na realidade corresponde a um instrumento de reforço das súmulas editadas pelo STF ou pelo STJ, pois desde então o §1º do artigo 518 do CPC autoriza ao juiz não receber recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula desses tribunais.

Por fim, ainda no ano de 2006, com a Lei nº 11.418, ao regulamentar o procedimento da repercussão geral, mais uma vez atribuiu-se “força vinculante média” às decisões do STF. De acordo com o artigo 543-A, § 5º, do CPC, uma vez “negada a repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente”.

75 Gilmar Mendes Ferreira et. al., Curso, p. 1.009.

76 Por vinculatividade deveria-se entender somente as hipóteses de vinculação forte, conforme classificação

Além disso, quanto ao procedimento dos recursos extraordinários múltiplos, “julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se” (artigo 543-B, §3º). Caso seja mantida a decisão, contrariamente à decisão de mérito do STF, após admitido o recurso extraordinário, “poderá o Supremo Tribunal Federal cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada”.

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