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Tendência de abstrativização do controle de constitucionalidade no direito brasileiro

dos jurisdicionados.

Desta forma, é possível concluir que a função uniformizadora realmente perdeu relevância em nosso sistema constitucional. Isto é, como mais uma das consequências das alterações promovidas pela reforma do Judiciário, pode-se adicionar a autonomia e valorização da função paradigmática no direito brasileiro62, enquanto relativa à maior vinculação e extensão de efeitos dos precedentes do Supremo Tribunal Federal. Todavia, tal valorização dos precedentes, contraditoriamente, foi acompanhada de desvalorização da tradicional função uniformizadora desempenhada pelo recurso extraordinário.

1.10. Tendência de abstrativização do controle de constitucionalidade no direito brasileiro

Os sistemas de controle difuso de constitucionalidade admitem que diversos órgãos possam realizar tal controle jurisdicional, tendo origem no modelo adotado pelos Estados Unidos da América após o famoso julgamento do caso Marbury vs. Madison. Em síntese, a Suprema Corte Americana decidiu que qualquer juiz poderia declarar a inconstitucionalidade de atos ou normas. Diante das características de tal modelo, em que o

62 “Pode ser mencionada uma função contemporânea dos recursos excepcionais, que é a chamada função

paradigmática ou persuasiva (...). Ao atentar para essa função paradigmática ou persuasiva, as instâncias ordinárias estão respeitando o prestígio e a autoridade que devem ser atribuídos às decisões proferidas pelos Tribunais de cúpula” (Clara Moreira Azzoni, Recurso especial, p. 25-26).

controle de constitucionalidade é realizado incidentalmente em um caso concreto, as decisões geram efeitos apenas em relação às partes litigantes (efeitos inter partes).

Desenvolvido por Hans Kelsen, o controle de constitucionalidade previsto na Constituição Austríaca de 1920 previa competência exclusiva do Tribunal Constitucional, vedando-se às demais instâncias negar aplicação de uma norma por entender que esta seria inconstitucional. E diferentemente do sistema norte-americano, um determinado ato normativo geraria efeitos até o momento em que a Corte se pronunciasse sobre sua inconstitucionalidade. Entendia-se a inconstitucionalidade como causa de anulabilidade e não nulidade.

Com inspiração no modelo norte-americano, o sistema de controle de constitucionalidade estabelecido pelo constituinte brasileiro de 1891 previa tão-somente a possibilidade de controle incidental e concreto, por meio do recurso extraordinário. Desta forma, o eventual reconhecimento de inconstitucionalidade teria efeitos apenas entre as partes litigantes, não se afastando a norma inconstitucional do ordenamento jurídico.

No entanto, o sistema de controle difuso acarreta inúmeros problemas práticos, em razão dos efeitos inter partes, gerando desigualdade entre aqueles que ajuizaram demandas e aqueles que permaneceram inertes, além de exigir do STF que a mesma decisão seja proferida em diversos processos discutindo questões idênticas, o que contribui para o excesso de demandas na Corte.

Por isso, desde 1934, o legislador tem previsto meios de acesso direto ao STF, como vistas à declaração de inconstitucionalidade com efeitos erga omnes, extirpando-se a norma inconstitucional do sistema jurídico nacional.

A Constituição de 1934 criou a chamada representação interventiva, instrumento relativo a controle abstrato de normas pelo STF, sendo que a partir de então era necessário o prévio reconhecimento, por parte da Corte, da constitucionalidade da lei que dispusesse sobre eventual intervenção federal, nas hipóteses de ofensa aos chamados princípios sensíveis. Cabia ao Procurador-Geral da República provocar o Supremo para tanto, conforme previsto no artigo 12, §2º, do texto constitucional. Além disso, a Constituição de 1934 também permitiu ao Senado suspender a execução de lei incidentalmente declarada inconstitucional pelo STF, de modo a conferir efeitos erga omnes à decisão da Corte, o que foi mantido por todas as futuras cartas constitucionais, à exceção da Constituição de 1937.

Interessante apontar que, na assembleia constituinte de 1891, havia sido apresentada proposta, neste sentido, pelos Deputados João Pinheiro e Julio de Castilhos. Todavia, como bem esclarecido por Ruy Barbosa63, naquela época se pensava que a utilização de ações diretas poderia levar a conflitos entre os Poderes, preferindo-se um modelo exclusivamente incidental.

Diante desta formatação, assinala Gilmar Ferreira Mendes que a representação interventiva se tornou verdadeira via de controle abstrato de normas, sendo que, muitas vezes, o Procurador-Geral da República simplesmente remetia as representações provocadas por terceiros ao Supremo, sem quaisquer alterações ou até mesmo apresentando parecer favorável à constitucionalidade da norma estadual impugnada64. Entre 1946 e 1965 mais de 500 representações foram apresentadas ao STF.

De qualquer modo, o controle incidental ainda era notoriamente preponderante, sendo que somente em 1988 tal forma de controle foi reduzida, ante a marcante ampliação da legitimação para a propositura de ações diretas. De fato, até então, apenas o Procurador- Geral da República possuía legitimidade para provocar o Supremo mediante processo abstrato de controle de normas.

Mas o constituinte de 1988 foi além de seus antecessores e estabeleceu diversas vias diretas ao Supremo (ação direta de inconstitucionalidade, arguição de descumprimento de preceito fundamental e ação interventiva), além de ampliar significativamente o rol de legitimados ativos. De acordo com o artigo 103 da Constituição, são legitimados para proposição de ações diretas o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa da Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Governador do Estado ou do Distrito Federal, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional, confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Conforme o texto original da Constituição de 1988, o controle jurisdicional de constitucionalidade pode ser realizado: (i) por qualquer juiz ou instância do Poder Judiciário, incidentalmente, tendo a decisão efeitos inter partes. Na hipótese de controle incidental pelo STF, é possível a expedição de ofício ao Senado Federal, para que este, discricionariamente, edite Resolução suspendendo a eficácia da norma declarada

63 Ruy Barbosa, Os actos inconstitucionaes do Congresso e do Executivo ante a Justiça Federal. 64 Jurisdição constitucional, p. 66-67.

inconstitucional em todo o território nacional; ou (ii) concentradamente pelo STF, por meio das ações diretas, as quais discutem a inconstitucionalidade em tese das normas impugnadas, tendo a decisão efeitos erga omnes e vinculantes à Administração e aos demais órgãos do Poder Judiciário.

No ano de 1993, a EC nº 3 veio a incrementar o controle abstrato de normas criado pela Constituição de 1988, instituindo a ação direta de constitucionalidade, de modo que as ações diretas passaram a ter caráter dúplice, ganhando, portanto, ainda mais importância para o sistema.

Poucos anos depois, as Leis nº 9.868 e 9.882, ambas de 1999, regulamentaram o procedimento das ações diretas e da arguição de descumprimento de preceito fundamental, mais uma vez prestigiando o controle abstrato.

E prosseguindo no que se pode chamar de abstrativização do controle de constitucionalidade brasileiro, em 2004 foi editada a EC nº 45, que permitiu ao Supremo diretamente atribuir efeitos erga omnes às decisões proferidas em sede de controle incidental, por meio da edição de súmulas vinculantes e da repercussão geral. Como se sabe, tais súmulas vinculam toda a Administração e os demais órgãos do Poder Judiciário, sendo que os precedentes quanto ao reconhecimento ou não de repercussão geral influenciam diretamente todos os demais recursos debatendo as mesmas questões constitucionais. E tais efeitos erga omnes independem de qualquer ato do Senado.

Com a regulamentação da repercussão geral, pela Lei nº 11.418, de 2006, atribuíram-se efeitos erga omnes ao julgamento de mérito dos recursos extraordinários múltiplos, na forma do artigo 543-B do CPC.

Neste contexto, verifica-se que a tendência de abstrativização do sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, além de progressivamente conceder maior prestígio às ações diretas, acabou por objetivar o recurso extraordinário e reduzir drasticamente o papel do Senado Federal na suspensão da execução de normas declaradas inconstitucionais incidentalmente.

1.11. Efeito vinculante e efeito erga omnes das decisões do STF: distinção e escalada

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