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O professor universitário, por meio da pós-graduação stricto sensu, torna-se um especialista em sua área. Ao apropriar-se do conhecimento, percebe-se legitimado academicamente no seu campo científico e sedimentado nas atividades de pesquisa que garantam a capacidade potencial de produção de conhecimento. A partir disso, é reconhecido apto para iniciar as atividades de ensino. Considerando os requisitos para o ingresso na docência universitária, é possível conceber que sua atuação será, basicamente, a partir da transmissão de saberes produzidos e interpretados por outros.

No entanto, logo no início das atividades, o professor é apresentado à complexidade da profissão, considerando que está diretamente vinculada ao ensino. Nesse sentido, Pimenta e Anastasiou (2010, p. 8) enfatizam e explicam que:

Ensinar é uma ação bastante complexa que requer compreender profundamente a área específica a ser ensinada e seu significado social; a organização do currículo como um percurso formativo; o planejamento mais amplo no qual uma disciplina se insere, bem como o seu próprio planejamento; o método de investigação de uma área que sustenta o método de seu ensino, as ações pedagógicas; os recursos adequados para o alcance dos objetivos; os modos de relacionamento com os alunos e destes com o saber; a avaliação, dentre outros tantos.

Mas que profissão é essa? Marcelo Garcia (2009a, p. 8) afirma que “a profissão docente é uma profissão do conhecimento”. Acrescenta que esse tem sido o elemento que legitima a profissão. O que justifica o trabalho docente é o seu compromisso em transformar o conhecimento em aprendizagens com relevância para os alunos, denominado por Nóvoa (2007) de processo de “transformação deliberativa” dos saberes.

Contudo, para realizar esse processo de transformação dos saberes torna- se imprescindível que “os professores – da mesma maneira que é assumido por muitas outras profissões – se convençam da necessidade de ampliar, aprofundar, melhorar a sua competência profissional e pessoal” (MARCELO GARCIA, 2009a, p. 8).

Nesse contexto, Cunha (2009, p. 83) afirma e explica que

[...] precisamos assumir que a docência é uma atividade complexa, que exige tanto uma preparação cuidadosa, como singulares condições de exercício, o que pode distingui-la de algumas outras profissões. Ou seja, ser professor não é tarefa para neófitos, pois a multiplicidade de saberes e

conhecimentos, que estão em jogo na sua formação, exigem uma dimensão de totalidade, que se distancia da lógica das especialidades, tão cara a muitas outras profissões, na organização taylorista do mundo do trabalho. Nelas, sabe-se cada vez mais de cada vez menos. Fogem dessa lógica as relações entre múltiplas dimensões e o objeto de estudo e de trabalho se fraciona.

E a autora continua explicando que

se esse modelo serve para algumas profissões de naturezas diversas, distancia-se, certamente, da docência e das atividades profissionais dos educadores, pois a sua complexidade não abre mão da dimensão da totalidade. Mesmo que seja factível a dedicação a um determinado campo de conhecimento, o exercício da docência exige múltiplos saberes que precisam ser apropriados e compreendidos em suas relações (CUNHA, 2009, p. 83).

O trabalho docente precisa ser reconhecido como atividade intelectual, considerando que é preciso ter autonomia e consciência crítica para analisar o que acontece com o ensino, tanto dentro como fora da sala de aula, e o modo como ocorre o relacionamento com a função social do trabalho docente, em um contexto social mais amplo, tendo como indicativo as finalidades educativas pretendidas e sua concretização, pois o ensino é uma atividade teórica e prática que transforma a realidade, como explica Franco (2013).

O aspecto mais frágil da profissão docente, segundo Roldão (2007) está exatamente no seu conhecimento profissional. Para a autora,

o professor profissional – como o médico ou o engenheiro nos seus campos específicos – é aquele que ensina não apenas porque sabe, mas porque sabe ensinar. E saber ensinar é ser especialista dessa complexa capacidade de mediar e transformar o saber conteudinal curricular (isto é, que se pretende ver adquirido, nas suas múltiplas variantes) – seja qual for a sua natureza ou nível – pela incorporação dos processos de aceder a, e usar o conhecimento, pelo ajuste ao conhecimento do sujeito e do seu contexto, para adequar-lhe os procedimentos, de modo que a alquimia da apropriação ocorra no aprendente [...] (ROLDÃO, 2007, p. 101-102).

No entanto, o conhecimento da prática e a capacidade de alterá-la requer a compreensão das interações nos contextos pedagógicos, profissional e sociocultural, o que se torna desafiador para o docente.

Ao discorrer sobre sua visão de ensino, Shulman (2005) frisa que um professor sabe algo que outros, ou seja, os alunos, supostamente não compreendem. O professor pode transformar a compreensão, as habilidades para se desenvolver, as atitudes ou os valores desejados em representações e ações pedagógicas. São formas de se expressar, de se expor, de exemplificar ou de

representar de outra maneira as ideias, de tal forma que, aqueles que não sabem consigam saber, bem como aqueles que não entendem possam compreender e discernir. Dessa forma, o processo de ensino começa em uma situação em que o professor compreende o conteúdo que precisará ensinar e a forma como deverá ensinar aos alunos.

Mas o autor deixa claro que esta é uma ideia básica da docência, uma noção incompleta, pois o ensino extrapola a ampliação da compreensão do conteúdo que será ensinado e o conhecimento da forma como irá ensiná-lo aos alunos. Para complementar a ideia de docência, Shulman (2005) elabora as categorias do conhecimento que, segundo ele, são necessárias na compreensão que o professor deve ter para que os alunos possam aprender: conhecimento do conteúdo; conhecimento didático geral; conhecimento do currículo; conhecimento didático do conteúdo; conhecimento dos alunos e de suas características; conhecimento dos contextos educativos; e conhecimento dos objetivos, das finalidades e dos valores educativos, de seus fundamentos filosóficos e históricos.

Esses conhecimentos, segundo o autor, são próprios da profissão do professor e a partir dos quais deveria acontecer sua formação e avaliação. Dentre essas categorias, vale destacar o conhecimento didático do conteúdo, justificando que ele representa a sincronia entre o conteúdo e a didática, possibilitando uma compreensão de como certos tópicos e problemas são organizados, representados e adaptados aos diversos interesses e habilidades dos alunos.

Ao discorrer sobre a importância da docência universitária, Zabalza (2009) também ressalta que ensinar é uma atividade complexa, que tem a intervenção de múltiplas variáveis e traz a diferença entre as três abordagens para o conhecimento do ensino a saber:

- Abordagem empírica e artesanal: referente ao conhecimento do ensino

baseado no próprio trabalho como docentes, fruto do contato com a realidade e a experiência diária. Esse não é um conhecimento suficientemente formalizado e firme, pois está baseado, com mais frequência, em intuições do que em dados sistemáticos sobre o que acontece na prática. É a ideia própria do que deveria ser o ensino, baseada na vivência como estudantes, pais, filhos, cidadãos etc., estando na função de professor, ou seja, do outro lado do processo. É todo um conjunto de conhecimentos que serve para que o docente tenha suas próprias ideias,

convicções, planejamentos e, inclusive, as formas de atuação a serem empregadas como docentes.

- Abordagem profissional: é referente a uma modalidade de conhecimento

mais sistemática e fundamentada, que requer uma preparação específica para executá-la e recursos metodológicos apropriados para coletar, analisar e interpretar os dados. Constitui uma dimensão importante do perfil dos profissionais do ensino e requer, portanto, uma formação específica para executá-la. Revela-se uma modalidade com maior nível de exigência que a primeira, considerando que se trata de uma das competências que caracterizam os profissionais que a exercem. Trata- se de um conhecimento mais sistemático, baseado em dados obtidos por meio de processos e de fontes selecionados para ele e em sistemas de análises certificados e validados.

- Abordagem técnica especializada: inerente a especialistas e investigadores

sobre o ensino, serve de dispositivo para identificar e descrever de uma forma satisfatória e por meio de processos e de meios bem controlados, os diversos fatores e condições implicados no ensino e na aprendizagem.

Dessas três possíveis abordagens ao ensino, Zabalza (2009) chama a atenção para a segunda, ressaltando ser aquela que pode ser executada pelos próprios professores. Ele enfatiza que para a análise do ensino não é possível se basear em conhecimento pessoal e opiniões próprias, típicas da primeira abordagem. Há necessidade de que todo professor tenha um conhecimento profissional do ensino, considerando que esse é o seu trabalho e executá-lo em boas condições exige saber sobre ele, sobre sua teoria e sobre sua prática com certa profundidade. Esse revela-se um tipo de conhecimento que se constrói sobre a prática e não somente a partir dela. A prática atualizada gera teoria, que possibilita iniciar um tipo de prática mais fundamentada. E assim o circuito prática-teoria- prática, pelo qual é construído o conhecimento da realidade docente, vai se formando e se tornando uma constante e importante ação a contribuir para a construção do perfil docente.

Corroborando o entendimento da complexidade da docência e partindo do pressuposto de que os saberes docentes considerados legítimos decorrem da concepção do que seja um bom professor, Cunha (2006a) apresenta os saberes docentes agrupados nas seguintes categorias: saberes relacionados com o conteúdo da matéria de ensino; saberes relacionados com a prática pedagógica,

envolvendo desde o “saber transmitir” até o motivar os alunos e entender como eles aprendem; saberes que decorrem de uma postura ética, incluindo a condição de saber ouvir, respeitar os alunos, conviver com a diferença, ser justo nas avaliações, ser honesto etc.; saberes próprios das posturas e atividades investigativas, entendidos como aqueles que fazem do professor um produtor de conhecimento, incluindo a capacidade de formar um aluno crítico e criativo, capaz de continuar aprendendo, numa postura epistemológica emergente.

Compreende-se, assim, na perspectiva de Cunha (2006a), que a docência é uma atividade complexa, por demandar a construção de múltiplos saberes e conhecimentos que indicam uma dimensão de totalidade. Nesse sentido, a autora não deixa de considerar e reconhecer como necessário que o professor universitário precisa dominar o campo de conhecimento de sua especialidade, porém, precisa também situar a ciência pedagógica presente nesse contexto, para que o processo de ensinar e aprender tenha sentido e significado.

Considerando a complexidade da docência universitária e analisando elementos em torno do papel do docente, Pimenta e Almeida (2011) caracterizam-no nas seguintes dimensões: dimensão profissional, que é responsável pelos elementos da formação que definem a atuação docente; a dimensão pessoal, que é responsável pelo envolvimento e comprometimento com a profissão; e a dimensão organizacional, na qual se estabelece as condições de viabilização do trabalho e os padrões a serem atingidos na atuação profissional.

Diante desse contexto de discussão, trazido a partir dos autores, e considerando a complexidade da docência universitária, volto a Zabalza (2009), que toma o conceito de competência como um construto molar que serve para referenciar o conjunto de conhecimentos e habilidades que os sujeitos necessitam para desenvolver algum tipo de atividade. E tomando como referência outras definições sobre o termo, destaca que competência refere-se à capacidade individual para empreender atividades que demandam um planejamento, execução e controle autônomos. Complementa o autor que um aspecto importante a considerar nas competências profissionais é que a capacidade de atuação não surge de maneira espontânea, tampouco por via puramente experimental (pela simples prática), precisa de conhecimentos especializados.

Zabalza (2009) apresenta a docência universitária como um conjunto de competências, cujas gêneses possuem um importante papel para o conhecimento

teórico que precisa ser articulado com a prática. E assim, o autor questiona a respeito das competências da profissão docente, bem como o sentido do conhecimento e da destreza que caracterizam o trabalho que é atribuído aos docentes universitários. Mesmo evidenciando a convicção de que poderia não abarcar aspectos importantes sobre a atuação dos docentes, enumera as seguintes competências dos docentes universitários: planejar o processo de ensino e de aprendizagem; selecionar e preparar os conteúdos disciplinares; oferecer informações e explicações compreensíveis e bem organizadas (competência comunicativa); manejar as novas tecnologias; desenhar as metodologias; organizar as atividades; comunicar-se e relacionar-se com os alunos; orientar; avaliar; refletir e investigar sobre o ensino; e identificar-se com a instituição e trabalhar em equipe.

Diante dessas competências e da concordância percebida nas literaturas aqui referenciadas, acerca da complexidade da docência universitária, é possível constatar o reconhecimento da importância que tem os conhecimentos oriundos da formação específica realizada pelos docentes na trajetória acadêmica. O mesmo reconhecimento ocorre quanto à relevância da realização da pesquisa para compor o perfil profissional docente. Contudo, fica evidenciado que outros conhecimentos (definidos por Shulmam, 2005), outras abordagens (diferenciadas por Zabalza, 2009), outros saberes (agrupados por Cunha, 2006a) e outras dimensões (caracterizadas por Pimenta e Anastasiou, 2011) carecem ser considerados e dissecados, quando o professor universitário ingressa e inicia suas atividades, no sentido de contribuir para o processo identitário17 docente e, além disso, a gerenciar

a sua prática docente de modo a (re) significá-la cotidianamente.

Diante de toda a complexidade que envolve a docência, entendo que, ao assumi-la como profissão, para exercê-la, é imprescindível o comprometimento e o envolvimento do docente. Assumir a docência como profissão e vivenciar a complexidade trazida em seu bojo requer, acima de tudo, uma descoberta por parte do docente, de si mesmo como ator e autor desse processo. Descobrir-se é desvelar-se, é desnudar-se e olhar para si mesmo, reconhecendo os atributos18 que

17 “[...] mescla dinâmica que caracteriza a maneira como cada um se sente e se diz professor”

(NÓVOA, 2000, 16). “Passa também pela capacidade de exercermos com autonomia a nossa atividade, pelo sentimento de que controlamos nosso trabalho”(p. 17).

18 “Características individuais, adquiridas na trajetória pessoal e profissional e que evidenciam o nível

real de desenvolvimento do docente, portanto, precursores e produtores do seu desenvolvimento potencial, via interatividade” (CUNHA; ISAIA, 2006, p. 374).

o docente já possui e aqueles que ainda precisa desenvolver. Torna-se fundamental entender o “eu profissional individual”19 e o “eu profissional”20.