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CAPÍTULO 3: O CONHECIMENTO CIENTÍFICO CONTEMPORÂNEO:

3.4 A Constituição e a Consolidação do Campo Científico

3.5.1 Fundamentos da Epistemologia Interdisciplinar

3.5.1.1 Domínios da Epistemologia Interdisciplinar

Existem pelo menos dois domínios epistemológicos do interdisciplinar, na constituição e no desenvolvimento de uma disciplina, que, por questões de ordem metodológica, pode-se denominar de externo e interno. De outra maneira, a interdisciplinaridade pode ser discutida e levada a cabo tanto a partir do processo amplo de construção de conhecimento, considerando todos os seus condicionantes sócio-históricos, quanto no interior de uma disciplina ou campo disciplinar, que, embora este não desconsidere as condições amplas de produção/transformação do campo do conhecimento, inscreve-se em um espaço particularizado pelas condições mais imediatas em que se desenvolve.

Pimenta (2003, p. 4) esclarece que “são situações diferentes a interdisciplinaridade entre subdisciplinas da mesma disciplina ou entre disciplinas diferentes ou, por outras palavras, talvez mais precisas, entre as disciplinas que estão em processo de autonomização, de separação, e entre disciplinas que já são completamente autônomas”. Embora complementar, em uma perspectiva ampla de produção de conhecimento, a atenção interdisciplinar se subdivide e atua centrada nesses dois domínios distintos. Em disciplinas

autônomas ou com domínios epistemológicos já consolidados, a interdisciplinaridade assume a função de abertura e dinamização dos objetos e campos de estudos. Nesse sentido, entra em ação, principalmente, o movimento de descentração. Por outro lado, em campo de conhecimento em estágio de consolidação epistemológica, a interdisciplinaridade deve ser pensada e assumida em um movimento de concentração, buscando a construção de identidade de seu domínio disciplinar.

A compreensão desses dois domínios se faz necessária porque coloca certa relativização na autonomia das discussões por um lado e nas próprias práticas científicas, por outro. Há, nesse sentido, uma complementaridade entre os dois domínios que exige a definição de alguns contornos contextuais para prática e análise da epistemologia interdisciplinar. As dinâmicas teóricas e práticas desses domínios se desenvolvem necessariamente em um complexo processo de interdependência de interesses econômicos, políticos, sociais, simbólicos, ideológicos e, a um só termo, culturais.

Com efeito, por um lado, existe a relação de força no espaço que se pode denominar de forma-ciência, em uma analogia com a forma-sujeito de Pêcheux (2009), que se estabelece a partir de todos os condicionantes sócio-históricos dominantes e, por isso, coloca-se como o já-aí, um universal, ou seja, como aquilo “que todo mundo sabe”; e, por outro, os diversos campos científicos, que resultam de situações mais imediatas, mas que a todo tempo são atravessados pelo jogo ideológico que engendra a prática científica como prática sociocultural.

Há aí, conforme Bourdieu (2008)6, um princípio lógico de dominação tal qual existe no campo político-econômico. Porém, é preciso considerar que esse princípio se apresenta de forma invertida na medida em que o sucesso nas/das práticas científicas, artísticas e culturais, diferentemente nas/das práticas político-econômicas em geral, encontra-se em termos de criação de valores. É nesse aspecto que existe, a um só tempo, simetria e oposição entre o capital econômico e o capital simbólico. Isso implica que a luta pela dominação se dá essencialmente no espaço do capital simbólico que se traduz em luta pela distinção, créditos,

6 Segundo Bourdieu (2008), todo indivíduo possui certo volume de capital material e de capital cultural. O

primeiro é composto por recursos econômicos materiais, enquanto que o segundo é formado pelo conjunto de elementos culturais determinado pela sua educação e sua trajetória de vida. A estrutura de posse definida pelo volume e pela distribuição das formas de capitais corresponde à base de organização dentro de uma classe e também da distinção entre as classes. Essas formas de organização são por ele denominadas de frações de classe. Em toda classe existe um polo dominante e um polo dominado. A classe é caracterizada pela luta constante pela dominação entre os indivíduos que possuem capital econômico e aqueles que possuem capital cultural. Entre classes diferentes e também no interior das classes, isto é, nas frações de classes, existe uma constante luta entre um polo dominante e um polo dominado. Essa mesma estrutura de posse se apresenta como vetor de distinção nos diversos espaços de produção cultural, tais como arte, literatura e ciência.

reconhecimento, status e poder. Alguns campos de conhecimento e práticas culturais são mais próximas do polo do capital econômico por serem mais ligados ao mercado e ao governo. Por outro lado, alguns campos científicos, tais como as artes, ciências sociais e as humanidades, são mais próximos do polo do capital cultural. Estes últimos são considerados mais autônomos para definir seus projetos e princípios de legitimação de forma independente e até mesmo avessos aos interesses político-econômicos.

Longe de significar um espaço desinteressado e caracterizado por negociações e acordos passivos, o domínio da epistemologia interdisciplinar, no seu conjunto, é povoado por disputas, que, segundo Bourdieu (2008), tem na sua base a busca pela conquista de distinção, prestígio e reconhecimento, além dos necessários recursos técnicos e financeiros destinados à operacionalização e à manutenção das práticas científicas e culturais. É nesse contexto que Lenoir (2004) assevera que desinteresse e autonomia são meras idealizações artificiais impostas sobre os sujeitos envolvidos na construção do conhecimento científico, na produção das disciplinas e nas práticas interdisciplinares. A institucionalização das práticas científicas se dá em um espaço povoado de instituições que guiam, habitam e constrangem quase todos os aspectos da realidade sócio-histórica. Disso decorre que, “nos campos científicos, a vida profissional se estabelece inteiramente dentro de um contexto de instituições que se aninham, interagem e muitas vezes entram em conflito” (LENOIR, 2004, p. 12).

Para conciliar a noção de conhecimento como interessado em duplo sentido de abranger tanto um engajamento interpretativo ativo com o mundo quanto os interesses sociais e econômicos dos atores envolvidos na construção do conhecimento, parece melhor perseguir um modelo de investigação que trate o cognitivo e o social como mutuamente implicados um no outro (LENOIR, 2004, p. 19).

O domínio da epistemologia interdisciplinar circunscreve-se em um espaço teórico- prático povoado de ranhuras e quebras promovendo o diálogo entre os diversos campos de conhecimento que constituem uma ciência desunificada. É no domínio epistemológico interdisciplinar que os campos científicos se diferenciam em um jogo complexo de relações de força e de demarcação de domínios, mas é também nesse processo de demarcação de domínio que os campos científicos se identificam e se consolidam de forma coordenada. Em outros termos, o domínio interdisciplinar é necessariamente o lugar do encontro entre diferentes disciplinas, em movimentos contínuos de diferenciação e, paradoxalmente, de integração.