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CAPÍTULO 2: O LUGAR DA INTERPRETAÇÃO: PRESSUPOSTOS

2.3 O Processo Discursivo: Pré-Construído, Interdiscurso e Intradiscurso

O discurso não corresponde a uma unidade, mas a uma rede de relações entre o que está sendo dito e o que já foi dito em outro lugar e/ou momento, constituindo a partir dessa rede o processo discursivo. Nesse conjunto, segundo Pêcheux (2009), o pré-construído se

apresenta como o já-dito, como um objeto ideológico que atravessa o sujeito em um processo de assujeitamento. Em outros termos, o sujeito do discurso fica, em maior ou menor medida, preso aos dizeres anteriores. Há, contudo, a possibilidade de transgressão, em um processo de ressignificação na medida em que, ao mesmo tempo em que o sujeito reproduz o já-dito, o faz de um novo lugar. O pré-construído é o espaço onde se faz presente o “estranho” no “familiar”, o “passado” no “presente”, agora em um processo de reconfiguração, notadamente, pelas novas relações que se estabelecem e se atualizam.

É oportuno destacar a diferença realizada por Pêcheux (2009, p. 151, grifo do autor) entre pré-construído e articulação. O pré-construído corresponde, nas palavras do autor, ao sempre-já-aí da interpelação ideológica que impõe, ao mesmo tempo, a realidade e seu sentido sob a forma de universalidade. Também conhecida como processo de sustentação, por seu turno, “[...] a ‘articulação’ constitui o sujeito em sua relação com o sentido, de modo que ela representa, no interdiscurso, aquilo que determina a dominação da forma-sujeito”. A articulação funciona a partir daquilo que o autor denomina de discurso-transverso. Outra questão que merece destaque é o esclarecimento de que a forma-sujeito do discurso, ou seja, o sujeito enquanto sujeito, tem por base o entendimento de que a ideologia é dela constitutiva, não sendo, portanto, exterioridade.

O pré-construído remete concomitantemente àquilo que todo o mundo sabe, ou seja, ao conteúdo pertencente ao domínio do sujeito universal que, por isso, comporta-se como espaço da identificação; e àquilo que todo mundo, em determinada situação, pode ser e entender sob a forma de evidências do contexto. A articulação compreende a evocação intradiscursiva - o “como se diz”-, o retorno universal no sujeito - o “como todo mundo sabe” – e a universalidade implícita de todo ser humano – o “como todo mundo pode ver” (PÊCHEUX, 2009).

O interdiscurso corresponde a outro elemento constitutivo do processo discursivo, que estabelece, ao mesmo tempo, no discurso, a sua provisoriedade, heterogeneidade e exterioridade, na medida em que, segundo Maingueneau (1997), apresenta-se como um recorrente processo de reconfiguração a partir do qual uma formação discursiva é levada a incorporar diversos elementos pré-construídos e produzidos fora dela. Esses elementos acarretam a redefinição e o redirecionamento da formação discursiva, em um processo complexo que, ao mesmo tempo, convoca seus próprios elementos, visando à organização de sua repetição, momento em que também provoca apagamentos, esquecimentos ou até mesmo recusas a alguns de seus elementos.

[...] as palavras, expressões e proposições recebem seus sentidos da formação discursiva à qual pertencem. Simultaneamente, a transparência do sentido que se constitui em uma formação discursiva mascara a dependência desta última em relação ao interdiscurso. Na verdade, a metáfora, constitutiva do sentido, é sempre determinada pelo interdiscurso, isto é, por uma região do interdiscurso (PÊCHEUX, 2009, p. 240, grifo do autor).

O interdiscurso se refere àquilo que Pêcheux (2009, p. 148-149) denominou de “todo complexo com dominante” das formações discursivas. Ele determina o efeito de encadeamento do pré-construído a partir da dominação do complexo das formações ideológicas. Nesse sentido, Orlandi (2007) esclarece que o interdiscurso corresponde ao conjunto de formações discursivas que compõem o dizível definido linguística e historicamente. E se refere mais precisamente a uma série de formulações originárias de enunciados distintos e dispersos que compõem, em seu conjunto, a memória do dizer. Esse domínio interdiscursivo constitui a exterioridade para o sujeito do discurso, localizando-se no espaço do enunciável.

Assim, tanto na prática política quanto na produção científica, existe, segundo Pêcheux (2009), uma série de efeitos no contexto da forma-sujeito, com destaque para as relações passíveis de serem constituídas entre o “sujeito da enunciação” e o “sujeito universal”. Há destaque de, pelo menos, duas situações possíveis: o “sujeito da enunciação” sobrepõe-se ao “sujeito universal” e o “sujeito da enunciação” se posiciona contra o “sujeito universal”. Na primeira modalidade, o posicionamento do sujeito se reveste de assujeitamento “livremente consentido”, por isso, é caracterizado como “bom sujeito”. Nesse sentido, o interdiscurso determina a formação discursiva que passa a ser cegamente identificada pelo sujeito do discurso (sujeito da enunciação/bom sujeito), este refletindo, portanto, espontaneamente, o discurso do Sujeito (sujeito universal).

Na segunda modalidade, o sujeito do discurso se posiciona contra aquilo que o sujeito universal lhe oferece, em uma luta contra a evidência ideológica, em um processo de separação (distanciamento, dúvida, questionamento, contestação, revolta, etc.). Na medida em que a evidência do sujeito universal (interdiscurso) é negada, ou seja, sua formação discursiva é contra-identificada, o sujeito do enunciado passa a ser caracterizado como “mau sujeito”. Além disso, o autor esclarece que a reversão presente na segunda modalidade é explicitada por traços linguísticos, tais como “aquilo que você chama de crise do petróleo” e “tua Santa Virgem”. Dessa postura, resulta o contradiscurso, sob diversas formas; teóricas e políticas, reformistas e esquerdistas, por exemplo.

Ainda nessa relação entre os universos do sujeito da enunciação e do sujeito universal, que compõem a forma-sujeito, Pêcheux (2009) destaca uma terceira modalidade subjetiva e discursiva, na medida em que integra os efeitos da produção científica e da prática política do proletariado sobre a forma-sujeito, promovendo um efeito de desidentificação, ou seja, um posicionamento não-subjetivo do sujeito do enunciado. Isso não significa, contudo, um processo de dessubjetivação do sujeito que se traduziria em desassujeitamento. Essa compreensão está vinculada ao fato de que:

[...] os conceitos científicos não possuem “um sentido” apreensível no funcionamento de uma formação discursiva, o que acarreta, ao mesmo tempo, o fato de que, enquanto conceitos, não há nenhuma “representação” que lhes corresponda. [...] Na realidade, o funcionamento dessa “terceira modalidade” constitui um

trabalho (transformação-deslocamento) da forma-sujeito e não sua pura e simples

anulação. Em outros termos, esse efeito de desidentificação se realiza paradoxalmente por um processo subjetivo de apropriação dos conceitos científicos e de identificação com as organizações políticas “de novo tipo” (PÊCHEUX, 2009, p. 201-202, grifo do autor).

Outro elemento importante no funcionamento do discurso corresponde ao “[...] intradiscurso, isto é, o funcionamento do discurso com relação a si mesmo (o que eu digo agora, com relação ao que eu disse antes e ao que eu direi depois; portanto, o conjunto dos fenômenos de ‘co-referência’ que garante aquilo que se pode chamar de ‘fio do discurso’, enquanto discurso de um sujeito)” (PÊCHEUX, 2009, p. 153, grifo do autor).

O intradiscurso corresponde à forma como o discurso se constitui em seu interior. E se refere, segundo Orlandi (2001), ao dizer presentificado, mas que mantém uma relação de dependência com o interdiscurso que o sustenta a partir da memória discursiva. O intradiscurso diz respeito à formulação da enunciação no aqui e agora do sujeito discursivo.

Além disso, é oportuno destacar que na literatura da AD o lugar onde estão os pré- construídos disponíveis para ser convocados pelo processo interdiscursivo, não como repetição, mas como ressignificação, é denominado de memória discursiva ou saber discursivo. Nesse retorno à memória discursiva, esta sofre alterações porque nesse processo ocorrem lacunas, falhas e apagamento daquilo que não pode e/ou não deve ser dito. Esse processo se constitui, portanto, em um movimento dinâmico entre memória e esquecimento, por intermédio de idas e vindas entre diferentes formações discursivas, resultando em um processo constante de tensão entre lembranças e esquecimentos.

Nesse complexo movimento de produção do discurso, há três categorias analíticas fundamentais, o esquecimento, o dizer e o não-dizer. Acontece que o que foi dito, mas esquecido, tem efeitos sobre o dizer que se atualiza em uma formulação.

A partir do apagamento da memória, surge no sujeito a ilusão necessária de que o discurso por ele produzido é original, parte dele sem nenhum vínculo histórico. É justamente esse apagamento que Pêcheux (2009) denomina de esquecimento, que se manifesta de dois modos. O primeiro denominado de esquecimento nº 1 promove a ideia de identidade do sujeito, embora esta não se fixe, na medida em que a memória abre brechas, permitindo novos dizeres. O segundo chamado de esquecimento nº 2 corresponde àquele que provoca a ilusão de autonomia da forma de dizer presente no sujeito do discurso. Nesse esquecimento, o sujeito tem a ilusão de que o seu enunciado é produzido com o uso de determinadas palavras em detrimento de outras.

Segundo Orlandi (2001), as noções de ideologia, formação discursiva e interdiscurso instalam na análise do discurso o não-dito. Ao longo de todo dizer, existe um conjunto de não-ditos que também significa. Isso quer dizer que quando se diz “x”, o não-dito “y” estabelece uma relação de sentido que produz o dizer “x”. Assim, uma formação discursiva sustenta a outra pelo próprio processo de diferenciação. O gesto de leitura inaugurado pelo dispositivo teórico da AD indica que o dizer tem relação com o não-dizer, na medida em que este se apresenta como subsidiário daquele em um processo de complementaridade. A autora explica que existem duas formas de não-dito: o pressuposto e o subentendido. O primeiro decorre da própria instância da linguagem e corresponde ao implícito que, embora não-dito, faz-se presente no próprio dito. O segundo concerne à forma de implícito que depende do contexto, não podendo ser apontado como necessariamente ligado ao dito.

Além desses implícitos no espaço dos não-ditos, Orlandi (1992, 2007) aborda duas formas de silêncio, que correspondem ao silêncio propriamente dito, por ela denominado de silêncio fundador, e à política de silêncio. Para a autora, existe diferença entre o implícito e o silêncio, uma vez que este não mantém uma relação de dependência com o dito para significar, ou seja, o sentido do silêncio não deriva das palavras para significar. Além disso, o silêncio não pode ser reduzido ao mero complemento da palavra, ele tem significação própria. Com efeito, “o silêncio não é o vazio, o sem sentido; ao contrário, ele é o início de uma totalidade significativa. [...] No entanto, o silêncio não está apenas entre as palavras. Ele as atravessa. Acontecimento essencial da significação, ele é matéria significante por excelência” (ORLANDI, 2007, p. 70-71).

O silêncio fundador corresponde àquele que existe antes da palavra ao passo que a política de silêncio mantém uma relação necessária com o dizer, na medida em que, ao dizer algo, apagam-se necessariamente outros dizeres possíveis, mas indesejáveis em determinada situação discursiva. Trata-se do que a autora denominou de anti-implícito, ou seja, se diz “x”

para não (deixar) dizer “y”, sendo que este corresponde ao sentido a ser descartado. Nesse sentido, apagam-se sentidos que poderiam instalar o trabalho significativo de outra região ou formação discursiva. Assim, esclarece Orlandi (2007, p. 75), “a diferença entre o silêncio fundador e a política de silêncio é que a política de silêncio produz um recorte entre o que se diz e o que não se diz, enquanto que o silêncio fundador não estabelece nenhuma divisão: ele significa em (por) si mesmo”.

Também denominada de silenciamento, a política de silêncio é subdividida em duas formas: o silêncio constitutivo e o silêncio local. Aquele se refere ao silêncio promovido pelo apagamento de um dizível, ou seja, ao dizer apaga-se outro dizer. Este, por seu turno, diz respeito a um processo de interdição de um dizer e pode ser bem exemplificado pela censura. Essa forma de silêncio se efetiva de forma política e circunstanciada, em uma política de proibição (ORLANDI, 2007).

Nesse conjunto de dispositivos, os procedimentos de análise do discurso constituem o olhar do pesquisador. Segundo Orlandi (2007), trata-se de um deslocamento do lugar-comum do intérprete-comum para o lugar do analista do discurso, que tem por base o referencial teórico-metodológico da AD francesa de um lado e a construção de um dispositivo teórico, que expõe o olhar leitor/interpretativo do pesquisador à espessura da língua e à opacidade do texto, colocando-o em contato com a historicidade, o equívoco e a ideologia, na relação com o simbólico. O dispositivo teórico visa especificamente à promoção da alteridade do analista, que significa promover o deslocamento do processo descritivo-analítico centrado na literalidade para o processo de significação engendrado no jogo de formações discursivas e ideológicas. O analista trabalha, nas palavras de Pêcheux (1990), com montagens discursivas, buscando compreender o funcionamento dessas montagens. O dispositivo teórico se apresenta como mediação no processo de deslocamento que permite ao analista do discurso trabalhar as fronteiras discursivas, evitando centrar em uma formação discursiva específica.

Partindo de uma crítica à perspectiva idealista, Pêcheux (2009) propõe um trabalho teórico cujo domínio se encontra na interligação entre a subjetividade, a discursividade e a descontinuidade ciências/ideologias. A teoria linguístico-formal do discurso é efetivamente possível, mas essa teoria continua avessa à questão do “sujeito-já-sempre-datado”, deixando-o como ponto obscuro. Nesse sentido, o idealismo não permite a compreensão da prática política e, igualmente, da prática de produção de conhecimentos que inclui a prática pedagógica. A teoria materialista do discurso proposta por Pêcheux (2009) tem na sua base as condições de reprodução/transformação das relações de produção, que não se dá apenas na esfera da ideologia, mas nos diversos elementos que constituem a formação social.

CAPÍTULO 3: O CONHECIMENTO CIENTÍFICO CONTEMPORÂNEO: