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CAPÍTULO 4: A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: FUNDAMENTOS

4.1 Bases Históricas da Ciência da Informação

4.1.1 Perspectivas Disciplinares da Ciência da Informação

4.1.1.2 Perspectiva Documental

Preliminarmente, é necessário esclarecer, a partir de Shera e Cleveland (1977), que a perspectiva documental de origem e desenvolvimento da Ciência da Informação é compreendida, pelo menos, a partir de duas acepções de Documentação, que se definem a partir da centralidade da abordagem e, por conseguinte, da definição do objeto e dos domínios de estudo e práticas profissionais. De um lado, uma concepção europeia e de outro uma estadunidense. A primeira decorre da evolução das práticas bibliográficas, enquanto que a segunda está vinculada à aplicação das tecnologias no tratamento de informação, especificamente, nos processos de microfotografia ou microfilmagem.

Pode-se dizer, contudo, que a vertente mais clássica da Documentação se encontra na perspectiva europeia que, originada ainda no século XIX da elaboração e do aperfeiçoamento de catálogos e bibliografias, procurou se diferenciar da Biblioteconomia a partir de sua preocupação com a análise aprofundada do conteúdo dos documentos, em detrimento de tratamento para organização de unidades de conhecimento centrada no livro. Apesar da tentativa de diferenciação, a Documentação tinha inicialmente basicamente os mesmos objetivos e trabalhava com as mesmas técnicas. Contudo, se por um lado o movimento de criação e proliferação de bibliotecas públicas fez a Biblioteconomia desviar o seu foco para as questões diretamente relacionadas à universalização da educação, por outro, os documentalistas, então, adotaram e aperfeiçoaram as técnicas bibliotecárias em função da prestação de serviços de informação. Além do campo das atividades práticas, essa cisão é materializada nos espaços teóricos e institucionais, tanto na Europa quanto nos EUA (SHERA, 1980; SHERA; CLEVELAND, 1977).

Embora Otlet e La Fontaine tenham sugerido a ampliação das atividades biblioteconômicas de indexação e organização da massa documental, propuseram fazer uma análise do conteúdo do documento de forma mais aprofundada designando essa atividade de Documentação.

Pensando sobre o que ele, logo, concluiu ser o estado desordenado da literatura das ciências sociais e sobre o que seria necessário, em termos bibliográficos, para dar a essas ciências a ordem, o rigor e a cumulatividade das ciências naturais, Otlet começou a formular algumas ideias interessantes. Imaginou que ao separar o conteúdo de um livro de seu autor e de sua intenção autoral, seria possível extrair sistematicamente dos livros tudo o que representasse uma nova contribuição para o conhecimento. Essas informações poderiam então ser acumuladas em fichas e essas fichas agrupadas de forma a refletir as afinidades temáticas envolvidas no conjunto. O uso de fichas foi uma ferramenta fundamental

para o sistema tecnológico idealizado por Otlet. Elas permitiam todas as manipulações classificatórias e a contínua intercalação de fichas (RAYWARD, 1997, p. 291, tradução nossa).

As ideias de Otlet e La Fontaine começaram a se materializar e ganhar fôlego precisamente no terceiro trimestre de 1895, quando da realização da Primeira Conferência Internacional de Bibliografia, realizada com o apoio oficial do governo Belga. Nesse evento, decidiram criar o Institut International de Bibliographie (IIB), cuja sede em Bruxelas foi denominada de Office International de Bibliographie (OIB). Imediatamente o governo concedeu status semioficial sob a égide do Ministério do Interior e do Ensino Público (RAYWARD, 1997).

Nesse aspecto, a história da Ciência da Informação está relacionada à criação do IIB e do OIB sob a coordenação de Paul Otlet e a assessoria de Henri La Fontaine, que desenvolveram uma série de projetos, atividades, discussões e perspectivas bastante presentes nos discursos atuais sobre informação e tecnologia. Rayward (1997) entende que parte dos aspectos atuais importantes da Ciência da Informação já estava, em maior ou menor grau, contida nas práticas e discursos da Documentação.

O projeto de Otlet, na sua real dimensão, era ambicioso porque pressupunha uma série de instrumentos, técnicas, metodologias e teorias até então não desenvolvidos. Para Rayward (1997), a primeira dificuldade encontrada por Otlet foi dispor de um sistema de classificação e organização que possibilitasse a descrição detalhada dos conhecimentos constantes nos conteúdos dos documentos e que prestasse, ao mesmo tempo, de base para o agrupamento das fichas e para a organização do trabalho cooperativo de compilação do catálogo realizado pelos estudiosos. Essa lacuna foi suprida quando teve o contato com o sistema de CDD, que, devido à sua ampla cobertura do conhecimento, sugeriu que poderia desenvolver um catálogo que ultrapassasse a literatura jurídica ou das ciências sociais, cobrindo todo o conhecimento universal, que se consubstanciaria em seu Repertoire Bibliographique Universel (RBU). Esse catálogo foi organizado com base na versão ampliada daquele sistema de classificação bibliográfica, que resultou na Cassification Décimale Universelle (CDU).

Já em 1910, após uma importante conferência internacional realizada na Feira Mundial de Bruxelas, Otlet e La Fontaine criaram a Union des Associationes Internationales (UAI), em 1924, e o Mundaneum também conhecido como Palácio Mundial, inicialmente constituído pela coleção dos itens expostos naquela feira. De acordo com Rayward (1997), este funcionou no início dos anos 1920, sendo chamado de Universidade Internacional, mas não passou de uma escola de verão, sendo fechado pelo governo em 1934, mas o IIB e a UAI continuaram

funcionando como sociedade de indivíduos interessados. No Instituto, ocorreu uma série de transformações, passando a ser denomiando de Institut International de Documentation (IID) em 1931 e Fedération Internationale de Documentation (FID) no ano de 1938.

A história da Documentação demonstra que houve uma série de contribuições para a constituição do campo de conhecimento que posteriormente chamaria de Ciência da Informação. Primeiro sua preocupação com o problema documental e, posteriormente, com o conjunto de sistemas, fundamentos e técnicas de organização, que se constituem em embriões das TIC. Rayward (1997) destaca as ideias de banco de dados e coleções presentes na constituição do arquivo do RBU, que era formado por dois arquivos principais de autor e de assunto classificados, e outros secundários. Além desse, existiam outros bancos de dados compostos por fotografias, textos completos, panfletos, trechos de jornais, entre outros. Assim, “muitas das ideias de Otlet sobre o que poderia ser chamado de processamento documentário centravam-se na necessidade de um novo tipo de enciclopédia multimídia dinâmica da qual o Repertório Enciclopédico de dossiês era um protótipo” (RAYWARD, 1997, p. 292, tradução nossa).

No que concerne às contribuições de fundamentos de organização, Rayward (1997) destaca a importância da CDU, que se apresentava como um sistema de gerenciamento de banco de dados extremamente complexo. Em função das relações de coordenação e hierarquização que são estabelecidas nos conteúdos no interior desse sistema, pode-se compará-lo aos modernos sistemas de armazenamento e de recuperação de informação hipertextuais. Acrescente-se a isso a existência de organização de fichas e arquivos, nas instâncias das tecnologias de informação. Havia uma sistemática com o formato e o conteúdo da fichas, e dos armários que as acondicionavam. A Documentação também desenvolveu o princípio monográfico que se constitui em importante instrumento para a organização de ideias e produção de conhecimento em unidades de informação.

Outra contribuição aos fundamentos da Ciência da Informação pode ser observada na atenção dada aos serviços de informação. Trata-se de uma extensão daqueles bancos de dados e serviços de busca que ofereciam três serviços especiais de informação caracterizados por Rayward (1997) como sistemas hipertexto/hipermídia manuais rudimentares: Escritórios Internacionais de Documentação para Regiões Polares; Caça e Pesca, e Aeronáutica. “Os serviços exigiram o desenvolvimento de um repertório bibliográfico abrangente em cada área de sua especialidade, um repertório de material ilustrativo, como fotografias, desenhos e impressos e uma ampla biblioteca” (RAYWARD, 1997, p. 294, tradução nossa).

A ideia de rede universal para a Documentação pautada, principalmente, na cooperação e em uma rede inter-relacionada de bibliotecas, arquivos, museus e escritórios antecipa a de Internet: “em todo o mundo, estudiosos e outros interessados, por meio da Rede Universal de Documentação, seriam atraídos pela ideia e contribuiriam para a existência de um corpo enciclopédico do conhecimento cuidadosamente administrado e em expansão contínua e que estaria disponível a todos em escala global” (RAYWARD, 1997, p. 14, tradução nossa).

Embora se possa falar de um pensamento visionário presente no campo da Documentação no que se refere às tecnologias de informação e comunicação, alguns estudiosos em outros domínios compreenderam a insuficiência da estrutura tecnológica para o tratamento, a organização, a disponibilização e a recuperação da crescente e cumulativa massa de documentos e informação.

A Documentação efetivamente praticada na Europa e, em grande medida, no cenário internacional por intermédio da FID, é rotulada por Shera e Cleveland (1977) de tradicionalista em virtude de sua preocupação centrada no conteúdo dos documentos com pouca dedicação às tecnologias. Enquanto nos EUA já estava centrada no processo de reprodução fotográfica, principalmente na aplicação da microfilmagem no processo e tratamento da informação, na Europa esta se reduzia à aplicação generalizada da CDU.

De acordo com Shera e Cleveland (1977), a Documentação estadunidense se inicia tardiamente, na década de 1930, em um domínio bem distinto da europeia, mas, já na década de 1950, muda seu foco dos processos de microfilmagem para as análises de assunto dos registros do conhecimento, mantendo ainda uma forte orientação tecnológica, embora sob a égide da recuperação da informação. Esse deslocamento da centralidade da Documentação estadunidense se deu na sua retomada no período seguinte à Segunda Guerra Mundial. Há um viés tecnológico nesse domínio de estudo, nos dois momentos – antes e depois da grande guerra -, todavia, no primeiro período, esse estava relacionado aos registros bibliográficos e ao acesso a esses registros a partir das tecnologias de microfilme, enquanto que no segundo redirecionou suas atividades à análise e ao tratamento do conteúdo, com o uso das tecnologias de recuperação da informação.

A documentação norte-americana se manteve mais perto da Biblioteconomia ao ser desenvolvida a partir da aplicação das tecnologias da microfotografia, buscando a sua aplicação em alta escala no interior das bibliotecas. Além do microfilme, foram desenvolvidos outros instrumentos tecnológicos que possibilitaram o uso daqueles, tais como o sistema mini- card e o seletor rápido. Todas essas tecnologias e as bases teóricas subjacentes tiveram um

importante papel na emergência do campo, “mas o mais importante desenvolvimento, do ponto de vista do surgimento da Ciência da Informação, foi o trabalho inicial, feito em várias agências governamentais, de processamento temático dos documentos usando cartões perfurados de equipamento IBM” (SHERA; CLEVELAND, 1977, p. 254, tradução nossa).

A participação do governo nos programas e projetos que resultaram na composição do campo da Ciência da Informação se apresenta de formas estratégica e decisiva. Isso fica bastante visível na década de 1950, notadamente, no impacto promovido na organização e no financiamento das conferências realizadas na área.

Segundo Shera e Cleveland (1977), o grande impulso para a conformação do campo da Ciência da Informação nos EUA foi realizado no âmbito da National Science Foundation, que promoveu e financiou uma série de projetos de desenvolvimento científico e tecnológico, notadamente, após os progressos obtidos pela então URSS, no período do Sputnik. Assim, em colaboração com os grandes produtores da indústria da informação e comunicação, a exemplo IBM, General Eletric e Kodak, o governo norte-americano passou a coordenar um conjunto de ações em prol do desenvolvimento científico e tecnológico.

Além da mudança de foco da microfotografia, outra questão importante na reestruturação da Documentação nos EUA no período após a Segunda Guerra Mundial diz respeito à abertura do ADI para membros individuais, uma vez que no período anterior a afiliação era exclusiva de instituições. Isso representou maior participação da Documentação norte-americana no cenário internacional por intermédio da FID. A alteração das atividades de microfilmagem para as atividades de análise de assunto foi de tal monta que a influência dos microfotógrafos reduziu no instituto, levando estes a fundar a National Microfilm Association (SHERA; CLEVELAND, 1977).

A reetruturação da Documentação norte-americana nos anos que sucederam a Segunda Guerra Mundial se deu a partir do redirecionamento das práticas documentárias, que procurou analisar o conteúdo dos documentos com a aplicação das novas tecnologias da recuperação mecânica da informação. Há cada vez mais a defesa de um distanciamento das atividades bibliotecárias consideradas tradicionais e a aproximação da Recuperação da Informação.

No período subsequente à Segunda Guerra Mundial, os norte-americanos retomaram as ideias que vinham sendo desenvolvidas anteriormente, no âmbito da Documentação, e essas ganharam fôlego nas ideias de recuperação de informação, que tiveram como seu principal porta-voz Bush.