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CAPÍTULO 3: O CONHECIMENTO CIENTÍFICO CONTEMPORÂNEO:

3.4 A Constituição e a Consolidação do Campo Científico

3.5.2 Condições Teórico-Metodológicas da Interdisciplinaridade

3.5.2.2 Modalidades e Programas Interdisciplinares

Na linha do continuum de integração disciplinar proposto por Pombo (2003), localizam-se diversas possibilidades de relações disciplinares que resultam em diferentes modalidades de interdisciplinaridade. De acordo com Japiassu (1976), algumas modalidades de colaboração estão vinculadas à natureza das próprias disciplinas enquanto outras estão afetas ao grau de integração existente entre estas.

Referente à natureza das disciplinas, o autor considera inicialmente que as ciências naturais e as humanas apresentam diferentes modalidades de colaboração. Essas diferenças se encontram, notadamente, no nível de hierarquização existente entre as primeiras e inexistente entre as segundas. A definição de hierarquia entre as disciplinas naturais se realiza em uma ordem de dependência lógica, que se encontra confirmada pela escala de fenômenos que explicam ou que representam. Assim, pode-se dizer que existe um tronco comum a partir do qual se pode passar da matemática à mecânica, em seguida à física e à química, à biologia e à psicologia fisiológica, em um processo de generalidade decrescente e de complexidade crescente. A interdisciplinaridade nesse domínio disciplinar se torna mais fácil de ser efetivada. É preciso considerar, contudo, que esse entendimento coloca as ciências naturais numa escala linear, que exclui a existência de dependência recíproca. Nas ciências humanas, contudo, não existe a possibilidade de definição dessa hierarquia, dificultando o estabelecimento das modalidades de colaboração existente entre elas.

A outra categoria de modalidades concerne às diferentes formas e níveis de cooperação entre as disciplinas. De acordo com Heckhausen (1972)7, existem cinco modalidades de interdisciplinaridade em escala ascendente. No primeiro nível, encontra-se a interdisciplinaridade heterogênea, que se caracteriza pelo seu caráter enciclopédico efetivado a partir da combinação de diferentes programas. Essa modalidade visa à formação de profissionais capazes de resolver problemas a partir da recorrência a algumas disciplinas científicas tidas como esclarecidas nessa questão, tais como Psicologia Social, Psicanálise e Economia do Trabalho. Segundo Japiassu (1976), essa modalidade de interdisciplinaridade se apresenta como ingênua e superficial, podendo ser facilmente encontrada nas disciplinas imperialistas, que utilizam as demais disciplinas como meras auxiliares.

A pseudo-interdisciplinaridade se encontra no segundo nível e se caracteriza pelas tentativas de utilização, nas associações das disciplinas, de instrumentos analítico-conceituais considerados neutros, tais como os modelos matemáticos. Esses instrumentos corresponderiam aos denominadores comuns entre essas disciplinas participantes, estabelecendo, portanto, relações entre elas. Contudo, a utilização desses se constitui em insuficiência na efetivação de práticas interdisciplinares, uma vez que permanece uma grande distância entre campos disciplinares tão diferentes, como Economia, Geografia e Psicologia (JAPIASSU, 1976).

No terceiro nível, encontra-se a modalidade de interdisciplinaridade auxiliar, que se caracteriza basicamente pelo empréstimo de métodos e procedimentos entre disciplinas. “Não resta dúvida de que o método de uma disciplina pode fornecer informações apresentando um valor indicativo inestimável para o ‘domínio de estudo’ de outra disciplina, inclusive para o seu nível de ‘integração teórica’” (JAPIASSU, 1976, p. 80, grifo do autor). O fato é que, segundo o autor, algumas vezes, essa modalidade de interdisciplinaridade está afeta a situações momentâneas. Por outras, esta se torna mais durável em virtude de a disciplina ser constantemente forçada a utilizar método de outra, tais como a importação de métodos da Psicologia pela Pedagogia.

O quarto nível corresponde à interdisciplinaridade compósita, que se desenvolve a partir de interações disciplinares que visam à resolução de grandes problemas postos pela sociedade atual, tais como delinquência, fome, guerra e poluição. O processo se dá a partir da reunião de diversas especialidades em torno da questão a ser resolvida. De acordo com Japiassu (1976), nessa modalidade , existe apenas uma conjugação de disciplinas, uma vez que não ocorre integração entre os domínios material e de estudo das disciplinas envolvidas. Com efeito, há contribuições das diversas disciplinas, mas todas elas mantêm sua autonomia, sem alteração de seus conceitos-chave, métodos e metodologias.

A interdisciplinaridade unificadora concerne ao último nível de inter-relação entre as disciplinas, na escala proposta por Heckhausen (1972), que se determina pela coerência entre os domínios de estudos das disciplinas cooperantes. Nessa modalidade, existe certa integração entre as construções teóricas e os métodos das disciplinas cooperantes. Esse estado de cooperação possibilita inclusive a emergência de novas disciplinas, tais como a biofísica da cooperação entre Biologia e Física, e a Psicolinguística da cooperação entre Linguística e Psicologia (JAPIASSU, 1976).

Considerando os níveis de relação entre as disciplinas nessas cinco modalidades interdisciplinares, Japiassu (1976) entende que estas podem ser agrupadas em dois tipos:

interdisciplinaridade linear ou cruzada e interdisciplinaridade estrutural. O primeiro se refere apenas a uma espécie mais elaborada de pluridisciplinaridade, não representando, então, grau considerável de cooperação metodológica. As disciplinas que fornecem informações às outras se colocam como disciplinas auxiliares, promovendo uma situação de dependência ou subordinação. O segundo, por seu turno, compreende um grau de cooperação caracterizado pela fecundação recíproca das disciplinas envolvidas, tornando-se comuns as suas bases conceituais e metodológicas.

Em uma abordagem prático-social, Léo Apostel8 classifica as modalidades de interdisciplinaridade, conforme as necessidades sociais, considerando os modos de produção capitalista e socialista. No primeiro modo de produção, o autor distingue duas modalidades representadas pelo capitalismo clássico e pelo neocapitalismo. Na primeira modalidade, o mundo da ciência é considerado pelas empresas como um mercado livre, obedecendo desregulamentadamente às leis da oferta e da procura. Dada a lógica da produção e do consumo individuais, as pesquisas monodisciplinares são preferidas e privilegiadas em contraposição às construções coletivas. Na segunda modalidade, o objetivo empresarial maior é a construção de grandes unidades sobre um mercado monopolítico. A diferença é que esse novo sistema de produção prima pela organização da ciência, na medida em que ela promove a produção e o consumo. Nesse contexto, “a interdisciplinaridade não somente é aceita, mas até mesmo exigida, embora em sua forma apenas pluridisciplinar. Contudo, apenas como um meio de aumentar a produtividade” (JAPIASSU, 1976, p. 86-87, grifo nosso).

No modo de produção socialista, que, de acordo com Japiassu (1976), caracteriza-se pela economia planificada e centralizada, a ciência é organizada em seu conjunto e orientada para a obtenção de um objetivo global. Em virtude da burocracia e da organização autoritária estatal sobre a ciência, a modalidade de inter-relação entre as disciplinas se caracteriza pelo estabelecimento de relações pluridisciplinares, em detrimento de construções interdisciplinares.

Essa abordagem de Apostel é muito oportuna porque situa a produção científica, especificamente, as modalidades de relações disciplinares, no espaço amplo das condições materiais de produção/transformação da realidade, destacando sua relação com os dois modos de produção capitalista e estatista. A ciência, além de se apresentar como constitutiva desses modos de produção, coloca-se como instrumento a serviço das relações de produção que, em última análise, visam à acumulação de capital e ao lucro. No mundo capitalista, a ciência se

insere em uma perspectiva mercadológica, assumindo a livre concorrência entre os campos disciplinares tal como ocorre nos diversos setores produtivos da sociedade.

Além dessas modalidades de cooperação, outra questão que merece atenção no processo de integração disciplinar diz respeito aos programas interdisciplinares. De acordo com Pombo (2003), existem, pelo menos, quatro frentes de atuação que sinalizam para a construção desse horizonte em quatro espaços distintos: em nível discursivo, em nível de reordenamento disciplinar, em nível de novas práticas de investigação, e em nível de esforço de teorização dessas novas práticas.

Nos espaços discursivos, Pombo (2003) destaca os estudos de Durand que procura estabelecer uma nova ordem do discurso sobre a descoberta científica, mais precisamente, sobre o modelo universalizante no qual elas aconteceram, mesmo naqueles momentos em que mais se apontou a importância da pesquisa especializada. De outra forma, contrariamente ao que se pensa, uma nova ordem discursiva procura evidenciar que a possibilidade de inovação se encontra mais numa formação universalista, pluralista e aberta à transversalidade, em detrimento dos espaços de investigações especializadas. Em que pese o modelo de especialização bastante presente na escola, na universidade e nos seus respectivos currículos e metodologias de trabalho, esse projeto defende as perspectivas transversais e interdisciplinares. “Porque é da presença na consciência do investigador de várias linguagens e de várias disciplinas que pode resultar o progresso do conhecimento científico. Ou seja, há uma heurística que resulta justamente dessa formação interdisciplinar” (POMBO, 2003, p. 13).

Os discursos que defendem esse projeto interdisciplinar se fundam, de acordo com Pombo (2003), em três determinações dessa heurística: a fecundação recíproca das disciplinas, o alcance do abismo da complexidade e a construção de novos objetos. A aproximação das disciplinas se apresenta inicialmente como uma possibilidade de fecundação recíproca dessas disciplinas por intermédio de trocas de conceitos, problemas e métodos, visando à compreensão da realidade mais rica. Assim, as descobertas que, aparentemente, apresentam-se como “resultante do acaso”, por não se localizarem no centro da especialidade do pesquisador, constituem-se, na verdade, em resultado de uma formação larga e de base, em que se fazem presentes outras disciplinas, que possibilitou a compreensão e a explicação do fenômeno.

Outro sustentáculo do discurso interdisciplinar diz respeito à possibilidade de maior aprofundamento nas análises em função da cooperação entre disciplinas. A aproximação interdisciplinar deve, segundo Pombo (2003, p. 14), ser pensada para além das possibilidades

cognoscíveis do pesquisador: “é algo que tem a ver com o próprio objecto de investigação e com a sua complexidade. Tem a ver com o facto de o átomo não ser efectivamente a partícula mínima”. Trata-se do fundamento material da interdisciplinaridade, que procura atingir o abismo da complexidade, ou seja, ao ultrapassar uma visão atomista, toca zonas do objeto de estudo que o olhar disciplinar especializado não permitiria ver.

O terceiro fundamento do discurso interdisciplinar se refere à construção de novos objetos do conhecimento. Com o progresso do conhecimento científico e a abertura a uma epistemologia contemporânea, é nítida a percepção de que há uma variedade de objetos de que a perspectiva disciplinar não permitiria estudo, sequer constituí-los enquanto objeto do conhecimento. Estes só existem como objeto de estudo em função das possibilidades colocadas pelas construções interdisciplinares (POMBO, 2003).

A segunda frente de atuação do projeto interdisciplinar começa a despontar nos anos 1970, quando há um deslocamento desse discurso interdisciplinar para o âmbito da reordenação disciplinar, que culminou no aparecimento de novas organizações disciplinares, dentre as quais Pombo (2003) destaca três: ciências fronteiras, interdisciplinas e interciências. De formação híbrida, as ciências fronteiras são sempre disciplinas novas originadas nas fronteiras de duas disciplinas tradicionais, tais como a Bioquímica, a Geofísica, a Psicolinguística e a Engenharia Genética. Apesar de as interdisciplinas também se constituírem em novas disciplinas a partir do cruzamento inédito, ele se efetiva da relação entre as disciplinas científicas e o campo industrial e organizacional, a exemplo da Psicologia Industrial e da Sociologia das Organizações.

Diferentemente das duas anteriores, a interciência se apresenta como uma reorganização disciplinar mais ampla, uma vez que não se trata de coordenar duas disciplinas, mas de constituir o que Pombo (2003) denominou de polidisciplina. Trata-se de uma conformação disciplinar que tem o núcleo duro e, ao seu redor, um conjunto de outras disciplinas, sendo impossível estabelecer qualquer tipo de hierarquia entre elas. Exemplo dessa reordenação disciplinar tem-se a Ecologia, as Ciências Cognitivas e a Cibernética. A complexidade dessa reordenação disciplinar se encontra no fato de que, mesmo tendo uma área nuclear, esse núcleo é formado por diversas disciplinas.

Além dessas configurações disciplinares amplas, faz parte também do programa um conjunto de práticas de cruzamento interdisciplinares. Nesse contexto, Pombo (2003) aponta a existência das seguintes práticas: importação, cruzamento, convergência, descentração e comprometimento. As práticas de importação são desenvolvidas nos limites das disciplinas e na compreensão da necessidade de ultrapassar as suas fronteiras. Denominada de

interdisciplinaridade centrípeta, caracteriza-se pela importação do trabalho, das metodologias, das linguagens e de aparelhagens já estabelecidas em outras disciplinas. Nas práticas de cruzamento, diferentemente das anteriores, não existe uma disciplina central que busca elementos em outras circunvizinhas, mas problemas que, originando-se numa disciplina, irradiam-se para as demais próximas. Trata-se da interdisciplinaridade centrífuga, ou seja, na impossibilidade de cada disciplina esgotar o problema em análise, desenvolve-se em cada disciplina uma abertura a todas as demais em um movimento de trocas recíprocas.

Há ainda as práticas de convergência, que se realizam a partir de análises de um terreno comum, mas que envolvem perspectivas diferentes. Esse tipo de interdisciplinaridade é praticado, principalmente, nos estudos de objetos que apresentam certa unidade. As práticas de descentração, por sua vez, são desenvolvidas diante de problemas complexos, que se apresentam como impossibilitados de ser abordados no interior das disciplinas tradicionais. Ao se dedicar a questões amplas, tais como meio ambiente, clima, florestas e paz, a interdisciplinaridade descentrada não tem uma disciplina como ponto de partida, da mesma forma não tem um ponto de chegada. Refere-se ao que Pombo (2003) denominou de policentro de disciplinas em função do crescimento do conhecimento. Por fim, a interdisciplinaridade envolvente ou circular, que se realiza por intermédio de práticas de comprometimento. Esse tipo de interdisciplinaridade exige maior esforço por parte dos participantes porque se dedica a questões muito amplas, exigindo uma polinização cruzada, em que se façam presentes todas as combinações possíveis. Abrange questões complexas como a origem da vida, a razão da fome e a prática de homicídios.

O último elemento que compõe o programa de uma epistemologia interdisciplinar diz respeito às construções teóricas dessa prática. De acordo com Pombo (2003), a teorização corresponde a uma importante questão em aberto nos espaços da interdisciplinaridade, uma vez que não há um programa unificado de sua fundamentação. Há pelo menos quatro perspectivas que procuram estabelecer os fundamentos teóricos da interdisciplinaridade: programa antropológico, programa metodológico, programa epistemológico e programa ecológico.

Segundo Pombo (2003), no programa antropológico, o ser humano se constitui, ao mesmo tempo, no ponto de partida e de chegada de todo e qualquer conhecimento. Assim, o homem corresponde ao polo unificador de toda a prática científica, possibilitando, portanto, o entendimento de todas as ciências como ciências humanas. A autora esclarece que, numa perspectiva realista, a base teórica para entendimento da interdisciplinaridade se encontra na unidade e complexidade do objeto científico em detrimento do sujeito.

O programa metodológico, por sua vez, tem como fundamento a compreensão de que a interdisciplinaridade deve se constituir em um mecanismo de regulamentação da emergência de novas disciplinas e dos diversos discursos que as constituem (POMBO, 2003). O fundamento desse programa se encontra, portanto, numa proposta de rigor metodológico, que, em última análise, corresponderia à convivência equilibrada entre a especialização necessária e os movimentos interdisciplinares. Para tanto, Pombo (2003, p. 18) assevera que, “[...] a interdisciplinaridade recusaria tanto a planificação unitária quanto a dispersão anárquica, tanto a cegueira do especialista quanto a diluição das especificidades disciplinares numa indeterminação globalizante”.

No programa epistemológico, Pombo (2003) apresenta como fundamento Teoria de Sistema de Bertalanffy e o Círculo de Ciências de Piaget. A primeira teoria contribui com o entendimento complexo das relações entre as partes que compõem um sistema de conhecimento, uma vez que tinha como objetivo a constituição de uma nova disciplina que promovesse a integração das diversas ciências naturais e sociais. Refere-se, portanto, a uma teoria geral da organização dos saberes. A segunda, por sua vez, tem como principal contribuição o rompimento do paradoxo entre sujeito e objeto, na construção do conhecimento. Ao mesmo tempo em que Piaget localizava a fundamentação da interdisciplinaridade na complexidade do objeto, destacava também a importância dos mecanismos comuns utilizados pelos sujeitos cognoscentes.

O programa de interdisciplinaridade ecológica apresentado pelo filósofo francês Fêlix Guattari tem como fundamento a articulação entre ciência, ética e política. Essa proposta de programa interdisciplinar parte da constatação do estado de desordem e incerteza nas diversas esferas e, ao mesmo tempo, do entendimento de que a solução a esse estado de coisa se encontra numa revolução que articule e harmonize os três registros fundamentais, quais sejam, o ambiental, o social e o mental. Para Pombo (2003, p. 20), trata-se de um “programa portanto que implica a solidariedade epistemológica dos vários domínios implicados, que assinala a necessidade ética de um compromisso na acção e a virtude estética e reinvenção permanentes e que, necessariamente, transporta consigo a vontade de transformação da condição humana no planeta”.