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CAPÍTULO 3: O CONHECIMENTO CIENTÍFICO CONTEMPORÂNEO:

3.4 A Constituição e a Consolidação do Campo Científico

3.5.2 Condições Teórico-Metodológicas da Interdisciplinaridade

3.5.2.3 Obstáculos à Interdisciplinaridade

De modo geral, a estrutura técnico-científica que foi construída sob a égide da ciência moderna constitui, em maior ou menor grau, a base do desenvolvimento científico e aponta, ao mesmo tempo, para um conjunto de condições e obstáculos ao desenvolvimento do pensamento e das práticas interdisciplinares, seja como entraves ou inércias. Esses obstáculos vão desde questões intrinsecamente epistemológicas a questões culturais mais amplas e se manifestam de forma particular em espaços diferenciados. É preciso considerar que, assim como há uma ampla e dispersa gama de possibilidade de realização de práticas interdisciplinares, existe também uma série de condições e dificuldades para levá-las a efeito.

A primeira condição ao empreendimento interdisciplinar se refere à tomada de consciência do seu real significado no contextos social, político, econômico e cultural atuais em que ele se desenvolve. Trata-se, conforme Morin (2006), de promover a aproximação entre a cultura científica e a cultura das humanidades, que significa colocar a prática científica no rol das práticas culturais com toda a sua carga de determinações sócio-históricas. Longe de se constituir na unidade dos saberes, esse empreendimento representa a reforma do modo de fazer ciência a partir do reconhecimento de sua condição de atividade interessada, desunificada e de autonomia relativa.

Assumir a complexidade da prática interdisciplinar nesse contexto parece significar um bom começo, se consideradas a dificuldade e a insuficiência teórico-metodológicas que a condicionam. Além das condições de fragmentação e desorganização do conhecimento,

Antes de tudo, existe uma pressão superadaptativa, que leva a adequar o ensino e a pesquisa às demandas econômicas, técnicas e administrativas do momento; o conformar-se aos últimos métodos, às últimas estimativas do mercado, a reduzir o ensino geral, a marginalizar a cultura humanística. Ora, na vida como na história, a superadaptação a condições dadas nunca foi um indício de vitalidade, mas prenúncio de senilidade e morte pela perda da substância inventiva e criadora (MORIN, 2006, p. 83).

A crítica moriniana deve ser levada a cabo em todos os sentidos das práticas científicas, inclusive na tendência a assumir o empreendimento interdisciplinar em uma perspectiva espontânea, considerando os discursos contemporâneos em torno da complexidade da natureza e do pluralismo epistemológico por aquela exigida. É preciso considerar que a interdisciplinaridade tem como condição teórico-metodológica a abertura das disciplinas ao contexto em que se encontram circunscritas, o que, longe de qualquer

relativismo ou anarquismo epistemológico, significa a produção do conhecimento disciplinar interligado com os demais domínios disciplinares.

É nesse sentido que Morin (2006) destaca a necessidade de dois processos de conscientização. O primeiro e, nas suas palavras, o menos elucidativo na historia oficial das ciências, refere-se ao entendimento de que “intelectualmente, as disciplinas são plenamente justificáveis, desde que preservem um campo de visão que reconheça e conceba a existência das ligações solidárias. E mais: só serão plenamente justificáveis se não ocultarem realidades globais” (MORIN, 2006, p. 112-113). O segundo, igualmente necessário, concerne à consciência da interdependência entre as ciências. E, nesse sentido, Morin (2006, p. 113-114) entende que “o grande problema, pois, é encontrar a difícil via da interarticulação entre as ciências, que têm, cada uma delas, não apenas sua linguagem própria, mas também conceitos fundamentais que não podem ser transferidos de uma linguagem à outra”.

O conjunto de condições às práticas interdisciplinares é sintetizado por Morin (2006, p. 115) ao esclarecer que “não se pode demolir o que as disciplinas criaram; não se pode romper todo o fechamento: há o problema da disciplina, o problema da ciência, bem como o problema da vida; é preciso que uma disciplina seja, ao mesmo tempo, aberta e fechada”. Assim, não desconsiderando os demais elementos, a disciplina corresponde à primeira condição da epistemologia interdisciplinar na medida em que “[...] ela realiza a circunscrição de uma área de competência, sem a qual o conhecimento tornar-se-ia intangível [...]” (MORIN, 2006, p. 107-108). A epistemologia interdisciplinar se encontra, pois, para usar as palavras do autor, entre a virtude da especialização e o risco de hiperespecialização.

A interdisciplinaridade tem pela frente uma série de desafios e obstáculos epistemológicos, institucionais, psicossociológicos e culturais, que se apresentam de diferentes formas nos diversos domínios do conhecimento.

Na impossibilidade de uma abordagem exaustiva, resta discutir aqueles que se apresentam como mais frequentes e também como potencialmente mais operantes. Essas informações são, porém, para ele, suficientes para o questionamento sobre a significação e a pertinência das operações interdisciplinares em determinados campos científicos. Acrescente- se a isso que nem todos os obstáculos são facilmente identificáveis e previsíveis, contudo, como esclarece Pimenta (2008), é importante ter consciência desse conjunto de dificuldades ontológicas, epistemológicas, organizativas e psicológicas.

A prática interdisciplinar está, nesse sentido, sujeita a todos aqueles obstáculos epistemológicos propriamente ditos apontados por Bachelard (1996) e discutidos anteriormente, com um agravante de que ela se realiza em um espaço epistêmico

caracterizado por indefinições e/ou insuficiências teórico-metodológicas. Assim, todos eles se apresentam de forma sublinhada e até mesmo ampliada. Um breve retrospecto na epistemologia interdisciplinar possibilita a identificação do imediatismo, notadamente, no que concernem às positividades de práticas pretensamente interdisciplinaridades. Isso fica bastante patente, em Japiassu (1976), ao discutir a interdisciplinaridade heterogênea e a pseudo-interdisciplinaridade. Além disso, principalmente considerando o estágio fragmentário, há um acentuado generalismo nas análises e discussões que são fundadas em abordagens e experiências, quase sempre, pontuais e bastante superficiais. Embora esses dois obstáculos possam parecer mais evidentes, no ambiente de relações entre disciplinas, deve-se dar atenção àquelas dificuldades decorrentes do uso abusivo de imagens usuais, principalmente, a partir de analogias e traduções.

Uma ciência, através de seus cientistas, só está aberta à relação e contaminação pelas outras ciências se na própria formulação de seu objecto científico houver, espontânea ou expressamente, a consideração do outro, a consideração do que é para ser estudado e o que não é para ser estudado. Por outras palavras, se uma ciência considerar que tudo o que existe na realidade-em-si é estudável por ela e que toda a realidade-para-si entre no seu objecto de estudo, estão fechadas todas as possibilidades de interdisciplinaridade (PIMENTA, 2008, p. 71).

Essas dificuldades se encontram, segundo ele, no âmbito das ciências imperialistas. Trata-se de dificuldades epistemológicas propriamente ditas, mas têm uma acentuada relação com os comportamentos individuais e coletivos dos pesquisadores envolvidos em atividades interdisciplinares. O individualismo e a competição, que são características de formações capitalistas, apresentam-se como grandes desafios ao desenvolvimento de práticas interdisciplinares. E, nesse sentido, um dos principais obstáculos ao desenvolvimento de práticas interdisciplinares corresponde ao que Pimenta (2008) denominou de atitude imperialista dos cientistas.

Essa atitude epistemológica imperialista pode ser desenvolvida tanto por parte de alguns pesquisadores que compõem uma equipe de trabalho quanto por um pesquisador isolado. Com efeito, “a cooperação interdisciplinar exige, por definição, qualidades de tolerância mútua, de abnegação e, até mesmo, de apagamento dos indivíduos, em proveito do grupo. Em casos limites, ela chega mesmo a exigir o desejo do anonimato” (JAPIASSU, 1976, p. 135, grifo do autor).

Ora, no caso das convergências interdisciplinares, não se trata apenas de disciplinas abstratas, mas de disciplinas que, sociologicamente, correspondem a corpos sociais organizados, entre os quais entram em jogo rivalidades e competições. No interior de cada disciplina há sempre certo projeto inconsciente de

dominar o mundo intelectual, porque o homem é um ser ambicioso e expansivo (JAPIASSU, 1976, p. 117-118).

Considerar os aspectos institucionais no desenvolvimento da epistemologia interdisciplinar, como promoção ou entraves, significa situá-la em um espaço discursivo em que a produção de conhecimento e sua respectiva compreensão consideram seus contextos e suas condições de produção, organização e comunicação. A ciência e as disciplinas científicas que a constituem se originam, desenvolvem-se e se institucionalizam em um complexo de interesses sociais, políticos, econômicos e ideológicos. O fato é que, segundo Japiassu (1976), as instituições de ensino e pesquisa se constituem nas marcas da história do conhecimento. Essa questão é bem presente nas universidades, nos institutos e nos departamentos de ensino e pesquisa. Embora as questões institucionais pareçam estar mais relacionadas a uma perspectiva pedagógica, elas se colocam no espaço epistemológico como efetivas condições a realizações interdisciplinares.

Antes, é importante ter a consciência de que as instituições não correspondem, conforme Lenoir (2004), a abstrações teóricas ou desincorporadas. Pelo contrário, concernem a espaços destinados à coordenação e à incorporação de habilidades. As instituições científicas e disciplinares são espaços de construção de identidades científicas, sociais e culturais. Dessa forma, as “instituições guiam, habilitam e constrangem quase todos os aspectos de nossas vidas. Nos campos científicos, a vida profissional se estabelece inteiramente dentro dos contextos de instituições que aninham, se imbricam, interagem e muitas vezes entram em conflitos” (LENOIR, 2004, p. 12). Os profissionais que incorporam, de algum modo, as habilidades requeridas por determinadas instituições, ou seja, sua cultura institucional ou organizacional, por dizer assim, conseguem se mover no seu interior de forma relativamente espontânea. O sucesso ou o fracasso daqueles que aí atuam está intimamente relacionado ao conjunto de habilidades incorporadas. Por outro lado, sair dos constrangimentos por elas impostos se apresenta em um grande obstáculo.

Em um movimento de empreendimento de integração disciplinar, desenvolver práticas interdisciplinares pode significar ir de encontro aos constrangimentos impostos pelas organizações institucionais e disciplinares. Trata-se de um processo de aculturação ou superação de uma cultura institucional disciplinar arraigada desde a sua estrutura física distribuída em setores, passando pela organização administrativa com todas suas hierarquias e culminando nos currículos e nas práticas de pesquisa. É nesse aspecto que se entende, a partir de Lenoir (2004), que alguns profissionais desenvolvem suas competências nos parâmetros

estabelecidos pelas instituições, conseguindo, contudo, evitar suas coerções e inovar dentro daqueles parâmetros, localizando e explorando brechas.

Dentro de um contexto institucional, quando alguém tenta experimentar algo novo para ocupar uma nova posição no campo de batalha por honra, prestígio ou recurso, autorizado pelas regras do jogo, para agir fora do repertório de movimentos permitidos pela instituição, é que esse alguém testa seu próprio nível de aculturação institucional. Alguém pode deslizar com sucesso para dentro de uma fenda diminuta, mas capacitante, ou pode descobrir que paredes invisíveis subitamente se tornam palpáveis constrangimentos à ação (LENOIR, 2004, p. 13).

A institucionalização da disciplina, que, mesmo considerando a multiplicidade de tentativas e práticas de integração disciplinar, ainda se apresenta como um dos principais fundamentos da produção e da organização do conhecimento, não se dá em um ambiente liberal, politicamente democrático e autônomo, mas em um conjunto de relações de forças sócio-históricas estabelecidas. As instituições têm a função de coordenar as forças advindas de três espaços distintos, mas constitutivos das organizações disciplinares, isto é, da ciência, do mercado e do Estado. Em meio a essas três esferas, encontram-se os especialistas carregados de suas condicionantes psicossociológicas engastadas em uma cultura individualista que prega a livre concorrência e a obtenção de hegemonia no domínio disciplinar em que atuam e naqueles com os quais mantém relações interdisciplinares.

Considera-se, a partir de Japiassu (1976, p. 94-95), que, além da compartimentalização do conhecimento promovida pelas instituições de ensino e pesquisa, “o especialista, na medida em que sua especialidade se transforma cada vez mais em fortaleza, dá curso a sua vontade de poder e de dominação. Sob pretexto de divisão do trabalho, cada um defende suas posições contra os inimigos de fora e de dentro”. No espaço mental do conhecimento, as práticas científicas podem transformar os especialistas em peritos em táticas e estratégias, uma vez que seus interesses estão afetos muito mais a fazer carreira do que promover o desenvolvimento da ciência. Não se pode perder de vista que, contrariamente a essa postura, os empreendimentos interdisciplinares exigem constituição de equipes, definição de objetivos comuns e estabelecimento de um ambiente democrático que permita o desenvolvimento de projetos comuns.

Ainda de acordo com Japiassu (1976), a cultura também representa um grande entrave ao desenvolvimento da epistemologia interdisciplinar na medida em que promove a separação entre as diversas áreas culturais e suas mentalidades particulares. O maior exemplo de dificuldade da realização de práticas interdisciplinares corresponde às diferenças existentes entre as diversas linguagens específicas dos campos disciplinares, em particular, e dos diversos espaços culturais, em geral. Esse estado de coisa tem por base a solidariedade da

tecnociência ao movimento do expansionismo colonial. É evidente que “os cientistas de determinados países trabalham em circuito fechado, pouco se preocupando com o que passa fora de suas fronteiras nacionais” (JAPIASSU, 1976). Isso fica bastante patente ao se comparar as diferentes perspectivas adotadas por norte-americanos e europeus em diversos campos científicos.

CAPÍTULO 4: A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E