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CAPÍTULO 3: O CONHECIMENTO CIENTÍFICO CONTEMPORÂNEO:

3.4 A Constituição e a Consolidação do Campo Científico

3.5.2 Condições Teórico-Metodológicas da Interdisciplinaridade

3.5.2.1 Metodologias e Práticas Interdisciplinares

Após discutir os tipos de interdisciplinaridade, Japiassu (1976) constata a inexistência de uma teoria que a fundamente e, nesse sentido, destaca a necessidade de não alimentar ilusões. O ponto de partida para contornar esse vazio teórico é apontado como o confronto de experiências já realizadas e os estímulos a novas experiências daquelas decorrentes, com o intuito de precisar em que condições são realizados os estudos e os progressos dos conhecimentos, nesse campo de estudo. Com efeito, o autor esclarece que os encontros entre especialistas, nesse domínio, são, na maioria das vezes, fortuitos, promovendo uma imaginação criadora e combinatória, que condicionam a coordenação de conceitos e métodos diversos, originando combinações imprevisíveis.

Nesse contexto teórico-metodológico, é necessário considerar preliminarmente que:

no nível da pesquisa propriamente dita, não pode haver nenhum confronto sólido entre as disciplinas sem o concurso efetivo de representantes altamente qualificados de cada uma delas. É preciso que estejam todas abertas ao diálogo, que sejam capazes de reconhecer aquilo que lhes falta e que podem ou devem receber das

outras. Só se adquire essa atitude de abertura no decorrer do trabalho em equipe interdisciplinar [...] (JAPIASSU, 1976, p. 82).

A abordagem de metodologias e práticas interdisciplinares se encontra no ponto de interseção entre o que Japiassu (1976) denominou de disciplinas operantes e cooperantes. A interdisciplinaridade pressupõe a existência de dois ou mais domínios disciplinares estabelecidos e a possibilidade de inter-relações entre eles. Embora já tenha sido abordado logo acima, parece necessário destacar que esse pressuposto metodológico estabelece que “o interdisciplinar não realiza apenas no domínio da informação recíproca entre as disciplinas, quer dizer, no nível da permuta de informações entre duas formações disciplinares” (JAPIASSU, 1976, p. 118, grifo do autor).

Em uma perspectiva formal, por assim dizer, de modo geral, uma disciplina é desenvolvida basicamente a partir de quatro fases: elaboração de conceitos operatórios, transformação desses conceitos em quantidades mensuráveis, construção de hipóteses e deduções a partir dessa estrutura (JAPIASSU, 1976). Contudo, como o próprio autor esclarece, essas operações são muito difíceis de serem realizadas no âmbito interdisciplinar. Essa dificuldade está presente inicialmente na aquisição de conceitos pelos pesquisadores de disciplinas diferentes daquelas em que atuam. Essa questão, conforme discutida mais abaixo, apresenta-se como um dos principais obstáculos às práticas interdisciplinares.

O fato é que a principal questão metodológica da prática interdisciplinar se encontra, em última análise, na efetiva convergência teórico-metodológica entre campos disciplinares. Essa convergência impõe a organização de uma infraestrutura de pesquisa e estudos que vai desde a organização de equipes de pesquisadores multidisciplinares, com seus vínculos organizacionais e teórico-metodológicos, à exposição do conjunto dos resultados de pesquisas por elas realizadas. Trata-se, então, de um processo que envida esforços conjuntos e desprendimento de projetos individuais. É preciso clarificar que esse desprendimento não implica uma atividade desinteressada, mas tão somente colocar seus projetos individuais no espaço dos projetos comuns.

Japiassu (1976) explica que essas exigências fazem apelo, ao mesmo tempo, à convergência e a uma concertação das diversas disciplinas envolvidas. Mais do que isso, “esta tendência ou transformação, que pode ser considerada como reflexo, no plano científico, daquilo que é, no plano industrial, a ‘produção em massa’, parece ter futuro assegurado” (JAPIASSU, 1976, p. 119, grifo do autor).

Outra questão muito importante no âmbito metodológico diz respeito ao domínio em que são colocados os problemas de estudo e são desenvolvidas as práticas interdisciplinares.

Com base no conceito do círculo de Ph. Roqueplo, que simboliza os problemas postos pelo diálogo interdisciplinar, Japiassu (1976, p. 82-83, grifo do autor) esclarece:

Trata-se de uma imagem da roda, segundo a qual podemos invocar duas estruturas de diálogo, conforme a interdisciplinaridade seja essencialmente confiada ao anel central ou ao arco externo. Haverá interdisciplinaridade segundo o anel central, quando ela aparece como cientificamente necessária aos olhos de cada uma das disciplinas, pelo objeto mesmo sobre o qual é centrada a pesquisa. Por outro lado, haverá interdisciplinaridade segundo o arco externo, quando o objetivo primordial do diálogo for o próprio diálogo, repercutindo sobre as diversas disciplinas em questão.

Além da definição dos domínios em que se estabelecem as práticas interdisciplinares, Japiassu (1976) apresenta cinco etapas a serem desenvolvidas na realização de pesquisas interdisciplinares. A primeira corresponde à constituição de uma equipe de trabalho, que se apresenta como condição necessária ao desenvolvimento de pesquisas interdisciplinares. Segundo Japiassu (1976, p. 126), “uma coisa precisa ficar clara: nenhuma pesquisa realmente interdisciplinar pode ser encetada por um único indivíduo, pois no mínimo que se pode dizer é que ela correria o risco de padecer de um autodidatismo injustificável”.

Contudo, este trabalho não pode ser resultado de um espontaneísmo qualquer. Só revela sua fecundidade e sua eficácia na medida em que for institucionalizado. Em outras palavras, é imprescindível que a equipe de trabalho se confira uma organização e estabeleça metodologias mínimas e comuns que deverão submeter-se a todos os componentes do empreendimento interdisciplinar (JAPIASSU, 1976, p. 126).

Domingues (2005) defende que o trabalho transdisciplinar exige a constituição de inteligentes coletivos em torno dos problemas de pesquisa. Complementando, Japiassu (1976) esclarece que essa equipe visa à constituição de um grupo de reflexão em que cada especialista seja capaz de expor suas pesquisas e reconhecer, ao mesmo tempo, as contribuições e os limites de sua disciplina no trabalho interdisciplinar.

A segunda etapa da atividade interdisciplinar concerne à definição de conceitos-chaves que compõem o domínio comum da atividade científica desenvolvida pela equipe. Esse procedimento visa aos esclarecimentos iniciais necessários sobre a terminologia básica a ser utilizada. Isso implica que “cada um dos especialistas reunidos em torno de uma equipe interdisciplinar é convidado, antes de levar a efeito a pesquisa comum, a refletir sobre os termos que vai empregar, bem como as significações que, por acaso, possa tomar a outras disciplinas afins (JAPIASSU, 1976, p. 128).

Essa questão se coloca diante de um dos principais obstáculos à prática interdisciplinar já que, conforme destacou Pombo (1993), tem como horizonte a difícil superação da incomensurabilidade de linguagem presente entre os domínios disciplinares. O fato é que “se

os especialistas não se puserem de acordo quanto aos termos e aos conceitos que irão utilizar, correrão o risco de construir um diálogo interdisciplinar fundado em pré-conceitos, em mal- entendidos e em equívocos” (JAPIASSU, 1976, p. 128). Diante dessa dificuldade, o autor esclarece que não se trata de definir uma unidade da linguagem, que promoveria o sacrifício terminológico de cada especialista e a emergência de uma terminologia unificada. Trata-se da necessidade da compreensão por parte dos pesquisadores das particularidades da terminologia que se impõe no empreendimento interdisciplinar. Essa diferenciação é inclusive parte de um dos fundamentos do empreendimento interdisciplinar na medida em que:

o que realmente importa, no diálogo interdisciplinar, aquilo que não é somente desejável mas também indispensável é que a autonomia de cada disciplina seja assegurada como uma condição fundamental da harmonia de suas relações com as demais. Onde não houver independência disciplinar, não pode haver interdependência das disciplinas (JAPIASSU, 1976, p. 129).

Embora não defenda a unificação da linguagem, o autor destaca a relevância de superar as flutuações de vocabulário, inclusive nos componentes internos de um mesmo domínio disciplinar. Agora, se por um lado no domínio disciplinar se faz necessária uma linguagem comum, deve-se almejar também uma linguagem própria à pesquisa interdisciplinar com conceitos integrativos, que não corresponde à constituição de uma linguagem interdisciplinar. E, nesse sentido, acrescenta Japiassu (19976, p. 130), “um dos caminhos para atingir tal objetivo deve passar pelo questionamento que os pesquisadores deveriam fazer de alguns de seus conceitos”.

A terceira fase da atividade interdisciplinar apresentada por Japiassu (1976) diz respeito à construção do problema da pesquisa. Esse processo é bastante relevante porque ele se constitui na correlação entre as definições teórico-conceituais e as definições metodológicas específicas ao empreendimento interdisciplinar. A primeira fase, portanto, apresenta-se como base para esta, “daí a importância da análise das condições de aparecimento dos conceitos, quer dizer, em última instância, das condições que tornam o problema formulável. É nesse sentido que a problemática da interdisciplinaridade é um momento decisivo do método” (JAPIASSU, 1976, p. 131, grifo do autor).

Além das questões teórico-conceituais e metodológicas, para Japiassu (1976), a definição do problema assume um caráter eminentemente estratégico, notadamente, pelas relações de força existente entre os domínios disciplinares envolvidos. Cada especialista procura favorecer, na medida do possível, o ponto de vista de seu domínio disciplinar na constituição do problema de pesquisa. Há aí a necessidade de definir o nível de participação de cada pesquisador na pesquisa. Com efeito, em pesquisa interdisciplinar, o grau de

participação dos especialistas interfere sobremaneira na definição do problema de pesquisa e nas demais atividades.

A questão da estratégia colocada acima impõe a organização das atividades, que se constitui na quarta fase da pesquisa interdisciplinar. Esta se encontra centrada basicamente na repartição e distribuição das atividades a serem desenvolvidas pelos membros que compõem a equipe de pesquisa. Japiassu (1976) esclarece que se faz necessário o estabelecimento dos estatutos e dos papéis dos pesquisadores, lembrando-se de que esses lhes são atribuídos, em detrimento de sua autoconferência, pelas instituições em que trabalham ou mesmo pela sociedade. O funcionamento adequado de uma equipe interdisciplinar requer um ambiente democrático, visando à integração coerente dos dados, dos pontos de vista e dos métodos. Torna-se indispensável a divisão do trabalho e a definição de liderança de uma disciplina concorrente. Essa liderança de disciplina, em detrimento de um pesquisador, possibilita a colocação do processo interdisciplinar à frente de qualquer interesse particular.

A última fase da pesquisa interdisciplinar apontada por Japiassu (1976) corresponde à exposição comum de todos os dados e/ou resultados finais ou parciais obtidos pelos diferentes especialistas. Essa fase envida maior esforço metodológico, na medida em que se constitui na etapa mais relevante da pesquisa interdisciplinar, além de exigir a análise prévia de todos os resultados, buscando aprofundamento e possíveis generalizações no âmbito do projeto comum.

Embora tenham sido expostas de forma aparentemente linear, compreende-se que todas essas etapas devem ser levadas a cabo nas pesquisas interdisciplinares de forma coordenada, em busca de melhores resultados, em uma perspectiva de um programa interdisciplinar. Essas práticas interdisciplinares têm sua atuação ampliada quando suas modalidades forem definidas a partir de programas interdisciplinares específicos, que se encontram além de equipes de pesquisa. Na linha de pensamento de Japiassu (1976), as modalidades de colaboração interdisciplinar estão vinculadas à natureza específica das disciplinas e, nesse sentido, nos programas interdisciplinares devem-se observar essas diferenças, vinculando às suas finalidades. Esse conjunto de fases da pesquisa interdisciplinar impõe o estabelecimento de uma nova inteligência fundamentada no movimento complexo de interdependência entre os domínios disciplinares.