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O Estado Democrático de Direito e o exercício da cidadania através da Participação Popular

1. As cidades garantirão o direito a todos

5.4. A cidadania como instrumento da qualidade de vida

5.4.1.2. O Estado Democrático de Direito e o exercício da cidadania através da Participação Popular

Em pleno Estado Democrático de Direito, não obstante o homem e a sociedade moderna em sua maioria, adotarem a democracia representativa como forma de governo, elegendo para tanto seus representantes pelo voto direto e se- creto, os instrumentos da soberania popular atuam como meios de fiscalização e participação dos cidadãos na busca da garantia ao direito à qualidade de vida e nos destinos da Cidade, do Estado e da Nação.

Ora, a democracia no Estado Republicano é entendida como o regime da Soberania Popular, que é fundada no “exercício da liberdade, na afirmação da igual-

dade e no respeito à res pública, no qual aquilo que for comum a todos é insuscetível de apropriação privada”.358

Noutro giro, o estado democrático encontra o seu fundamento “no prin- cípio da soberania popular que ‘impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que não se exaure, como veremos, na simples formação das institui- ções representativas, que constituem um estágio da evolução do Estado Democrático, mas não o seu completo desenvolvimento’. Visa, assim, a realizar o princípio democrático como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana”.359

A expressão “Estado Democrático de Direito”, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, foi “cunhada pelo espanhol Elías Diaz que a empregou no livro Estado de

Derecho y sociedad democrática, com o significado de Estado de transição para o socialis-

mo. Está ela no art. 1º da Constituição brasileira de 1988, como sinal da intenção, a final não concretizada, de alguns constituintes” (grifado no texto).360

Para Celso Ribeiro Bastos, a Constituição brasileira acolhe os dois princípios: o Democrático e do Estado de Direito, posto que “o princípio republicano, por si só, não se tem demonstrado capaz de resguardar a soberania popular, a submissão do administrador à vontade da lei, em resumo, não tem conseguido preservar o princípio democrático nem o do Estado de Direito” (grifado no texto).361 Canotilho, por sua vez, ensina que o Estado constitucional não basta apenas ser Estado de direito. “Tem de estruturar-se como Estado de direito democrático, isto é, como uma ordem de domínio legi- timada pelo povo. A articulação do <<direito>> e do <<poder>> no Estado constitucional significa, assim, que o poder do Estado deve organizar-se em termos democráticos” (grifado no texto).362

Analisando a Constituição da República Portuguesa de 1976, Canotilho assevera que a dimensão do Estado de direito “encontra expressão jurídico-

358 Nelson Saule Júnior, Novas perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Ordenamento Constitucional da

Política Urbana. Aplicação e Eficácia do Plano Diretor, p. 47.

359 José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, pp. 106/107. 360 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Estado de Direito e Constituição, p. 63. 361 Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, p. 245.

constitucional num complexo de princípios e regras dispersos pelo texto constitucional” (gri- fado no texto).363

José Afonso da Silva, no mesmo sentido, leciona que o “Estado Demo- crático de Direito reúne os princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito”, a despeito do que aconteceu na Constituição brasileira de 1988, que em seu artigo 1º, o acolhe como um conceito chave do regime adotado, “tanto quanto o são o conceito de Estado de Direito Democrático da Constituição da República Portuguesa (art. 2º) e o de

Estado Social e Democrático de Direito da Constituição Espanhola (art. 1º)”.364 Ao cuidar da expressão Estado Democrático de Direito adotada pela nossa Constituição Fede- ral, o mesmo autor assevera que não basta apenas unir formalmente os conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito. “Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status

quo. E aí se entremostra a extrema importância do art. 1º da Constituição de 1988, quando

afirma que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, não como mera promessa de organizar tal Estado, pois, a Constituição aí já o está procla- mando e fundando” (grifado no texto).365

Surge assim uma nova indagação: por que o Estado constitucional é também um Estado democrático? A resposta é no sentido de que “a legitimidade do domínio político e a legitimação do exercício do poder radicam na soberania popular (artigos 2º e 3º) e na vontade popular (artigo 9º)”, através de seus instrumentos (grifado no tex- to).366

Comando similar é encontrado na Constituição brasileira que consagra o sistema Republicano e o Estado Democrático de Direito (art. 1º), e o princípio da Soberania Popular (art. 14).

363 José Joaquim Gomes Canotilho, Estado de Direito, p. 30.

364 José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 102. Vide ainda na mesma página a nota

de rodapé nº 31, onde o autor demonstra a influência sofrida pela Constituinte em face das doutrinas portugue- sa, espanhola e alemã sobre a adoção do conceito de Estado Democrático de Direito

365 José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 108. Ao conceber essa explicação, o autor

aproveita para diferenciar o sistema português que “instaura o Estado de Direito Democrático, com o ‘demo- crático’ qualificando o Direito e não o Estado”.

Assim, há de se concluir que um Estado só é constitucional se for de- mocrático. Tal como só existe um Estado de direito democrático, também só existe um Estado democrático de direito, isto é, sujeito às regras jurídicas.367 Ante o ex- posto, perde importância a discussão se é melhor o <<governo das leis>> que o <<governo de homens>>. O governo dos homens é sempre, um governo sob leis e através de leis, culminando na fórmula Estado democrático de direito.368

J. H. Meirelles Teixeira, ao cuidar da soberania, não se dedica apenas ao Estado como titular desta, mas vai além. “Frente, entretanto, à teoria da soberania nacional que, como já vimos é expressamente adotada pela nossa Constituição (art. 1º), e pelas Constituições dos Estados democráticos modernos, trata-se, em todos aqueles casos, da manifestação da vontade do povo, isto é, da própria soberania nacional. (...) E, na verda- de, a essência da democracia direta, consiste, nada mais nada menos, que no exercício direto destes poderes pelo seu titular, isto é, pelo povo, detentor da soberania nacional”.369

Em face da colocação de Meirelles Teixeira, Maria Garcia em seu tra- balho de organização e atualização da obra do saudoso mestre, em nota de rodapé (nº 199, p. 480), assevera que “o art. 1º da Const. de 1988 erige, como um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, ‘a soberania’, referida como ‘soberania popular’ (art. 14), como ‘soberania nacional’ (art. 170, I)”.

Ao discorrer sobre República soberana e soberania popular, Canotilho ensina que “a República Portuguesa, além de ser soberana no sentido de comunidade au-

todeterminada e autogovernada, é ainda soberana ao acolher como título de legitimação a

soberania popular (artigo 2º)”, e que a forma republicana de governo associa-se à idéia

de democracia deliberativa. E continua: “Por democracia deliberativa entende-se uma ordem política na qual os cidadãos se comprometem: (1) a resolver colectivamente os pro- blemas colocados pelas suas escolhas colectivas através da discussão pública; (2) a aceitar como legítimas as instituições políticas de base na medida em que estas constituem o qua- dro de uma deliberação pública tomada com toda a liberdade” (grifado no texto).370

367 José Joaquim Gomes Canotilho, Estado de Direito, p. 31. No mesmo sentido, vide Celso Ribeiro Bastos,

Curso de Direito Constitucional, p. 245.

368 José Joaquim Gomes Canotilho, Estado de Direito, p. 33. 369 J. H. Meirelles Teixeira, Curso de Direito Constitucional, p. 480.

O Estado democrático encontra o seu fundamento “no princípio da sobe- rania popular que ‘impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, partici- pação que não se exaure, como veremos, na simples formação das instituições representa- tivas, que constituem um estágio da evolução do Estado Democrático, mas não o seu com- pleto desenvolvimento’. Visa, assim, a realizar o princípio democrático como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana” (grifado no texto).371

Ora, se a essência da democracia direta reside no exercício dos pode- res pelo povo, um questionamento merece ser levantado: qual a origem do poder no Estado de direito? “Só o princípio da soberania popular, segundo o qual <<todo o poder vem do povo>>, assegura e garante o direito à igual participação na formação democrática da vontade popular. Assim, o princípio da soberania popular concretizado segundo procedi- mentos juridicamente regulados serve de <<charneira>> entre <<Estado de direito>> e o <<Estado democrático>>, possibilitando a compreensão da moderna fórmula Estado de di-

reito democrático” (grifado no texto).372

Ante o exposto, podemos concluir que a soberania popular encontra o seu conceito na essência do poder que é originário e exercido pelo povo, assegu- rando e garantindo o direito de participação igualitária na formação democrática da vontade popular, emprestando legitimidade ao domínio político e dando legitimação a esse mesmo poder. Ou como diz Maria Helena Diniz, soberania popular ou sobe- rania do povo, é “o direito que tem o povo de autogovernar-se, escolhendo seus repre- sentantes, seus governantes e o governo”, ou o “princípio segundo o qual todo poder ema- na do povo, e em seu nome é exercido” (grifado no texto).373

Quando se aborda a questão cidadania, ela aparece em um sentido mais amplo do que o de titular de direitos políticos. A cidadania qualifica aqueles que participam da vida do Estado, e reconhece o indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal (art. 5º, LXXXVII). “Significa aí, também, que o funcionamento do Estado estará submetido à vontade popular. E aí o termo conexiona-se com o conceito de sobera-

nia popular (parágrafo único do art. 1º), com os direitos políticos (art. 14) e com o conceito

371 José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, pp. 106-107. 372 José Joaquim Gomes Canotilho, Estado de Direito, p. 30.

de dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), com os objetivos da educação (art. 205), com base e meta essencial do regime democrático” (grifado no texto).374

Uma vez que a legitimidade do domínio político e a legitimação do exercício do poder radicam na soberania e na vontade popular, através de seus ins- trumentos, quais seriam eles? Podemos destacar como sendo os principais instru- mentos o direito de voto em sufrágio universal e a participação democrática dos ci- dadãos na resolução dos problemas nacionais ou locais.

Entre nós, o artigo 14 da Constituição Federal preceitua que a sobera- nia popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular.375 Contudo, podemos incluir como “exercício da soberania e pertencente aos

direitos políticos do cidadão: ajuizamento de ação popular e organização e participação de partidos políticos” (grifado no texto).376

Os instrumentos previstos no artigo 14, incisos I, II e III da Constituição Federal, seriam os únicos considerados aptos ao exercício da soberania popular?

A resposta é negativa. A Constituição da República, além das fórmulas adotadas para o exercício da soberania popular, indica outras formas de democracia participativa consagradas em vários artigos.377

374 José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 96.

375 Os incisos I, II e III do art. 14 da CF (plebiscito, referendo e iniciativa popular), já se encontram regulamenta-

dos pela Lei Federal nº 9.709, de 18 de novembro de 1998.

376 Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, p. 194.

377 Constituição Federal de 1988 - Arts. 10 (participação dos trabalhadores e empregados nos colegiados dos

órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários, sejam objeto de discussão e delibera- ção); 11 (nas empresas de mais de duzentos empregados, é assegurada a eleição de um representante destes com a finalidade exclusiva de promover-lhes o entendimento direto com os empregadores); 29, XII (coopera- ção das associações representativas no planejamento municipal, como preceito a ser observado pelos Municí- pios); 31, § 3º (as contas dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei); 74, §

2º (qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denun-

ciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União); 114, VI (Seguridade social – organização com caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a participação da co- munidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados); 194, VII (Seguridade social – caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos traba- lhadores, dos empregados, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados); 198 (Saúde – ações e servi- ços de saúde que integram uma rede regionalizada e hierarquizada constituem um sistema único que deve ser organizado com participação da comunidade); 204 (Assistência social – ações governamentais na área de as- sistência social, tendo como uma das diretrizes a participação da população, por meio de organizações repre-

Outros instrumentos igualmente podem ser utilizados para o exercício da soberania e da vontade popular, que fundados na Constituição Federal, foram transportados, em especial, para as Leis Orgânicas Municipais.

Uma vez que os instrumentos de participação popular são previstos constitucionalmente na qualidade de normas programáticas, “é importante ilustrar que o processo de participação popular de novos agentes sociais tais como as ONGs, associa- ções comunitárias, movimentos e entidades ambientalistas, organizações e movimentos populares, nas Constituintes Municipais,378 permitiu um conjunto de normas regulamentado-

ras desses instrumentos e de outros mecanismos de participação nas Leis Orgânicas, desti- nadas a torná-los auto-aplicáveis” (grifado no texto).379

Ante o exposto, as Leis Orgânicas, ao cuidarem da soberania e da vontade popular, não previram tão somente as figuras do referendo, plebiscito e ini- ciativa popular. É comum encontrarmos no corpo da Lei Maior do Município as “audi- ências públicas, a tribuna popular, os estudos e relatório de impacto ambiental e de vizi- nhança e os sistemas de planejamento e gestão democrática através de Conselhos setoriais e regionais” (grifado no texto),380 não se esquecendo igualmente, do crescimento das Sociedades Amigos de Bairro – SABs, com atuações concretas junto ao governo local.

Esses instrumentos possibilitam o exercício da soberania e da vontade popular e asseguram a participação do povo nas decisões do Poder Público, princi-

sentativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis); 206, VI (Ensino – gestão democrática do ensino público, na forma da lei); 216, § 1º (Cultura – o poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigi- lância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação); 225 (Meio ambi- ente – dever do poder público e da coletividade de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gera- ções); 227 (Criança e adolescente – o Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente com a participação de entidades não-governamentais. Dever da família, da sociedade e do Estado de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade; o direito à vida, à saúde, à ali- mentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a con- vivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, ex- ploração, violência, crueldade e opressão).

378 Discordamos do uso da expressão “Constituinte Municipal”. Conforme já dissemos anteriormente, as Leis

Orgânicas não são produtos do poder constituinte decorrente. É uma lei “sui generis” e não uma Constituição Municipal (art. 29, CF).

379 Nelson Saule Júnior, Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Ordenamento Constitucional da

Política Urbana. Aplicação e Eficácia do Plano Diretor, p. 247.

380 Nelson Saule Júnior, Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Ordenamento Constitucional da

palmente no planejamento da cidade, que deverá ter como parâmetro do direito à qualidade de vida.

Igualmente, não se pode olvidar que o artigo 29, inciso XII, da Consti- tuição Federal, prevê expressamente a “cooperação das associações representativas no planejamento municipal”.

José Afonso da Silva, ao tratar do tema, entende que esse dispositivo constitucional introduziu uma nova concepção de planejamento com a adoção do planejamento participativo: “Outra concepção é a que sai da Constituição de 1988, ao impor a adoção do planejamento participativo, quando, no art. 29, X (sic)381 prescreve que

as leis orgânicas dos Municípios teriam que prever a cooperação das associações repre- sentativas no planejamento municipal” (grifado no texto).382

Outros dois importantes instrumentos de exercício da soberania e da vontade popular, via de regra, inseridos em sede de Lei Orgânica Municipal e regu- lamentado pelo respectivo Regimento Interno do Legislativo local são a Tribuna Po- pular ou Tribuna Livre e as Audiências Públicas, fundamentais na discussão de pro- jetos como o do Plano Diretor.

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