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1. As cidades garantirão o direito a todos

5.3. Qualidade de vida (III)

5.3.1. Qualidade de vida: os conceitos existentes

No curso do presente trabalho alguns conceitos sobre qualidade de vida foram trazidos.344

José Roberto Marques, em tópico dedicado exclusivamente à qualida- de de vida, traz alguns elementos sobre os conceitos existentes. Acentua que o mí- nimo indispensável ao ser humano proporciona-lhe qualidade de vida. Informa ainda que a qualidade de vida está ligada, intrinsecamente, ao desenvolvimento econômi- co, mas que irá depender da efetividade dos direitos sociais apontados no art. 6º da Constituição Federal, pois estes conferem dignidade à pessoa humana. Também observa que a humanidade já percebeu que nem sempre qualidade de vida é favo- recida pelo desenvolvimento e mais: “ela em muitos casos pode ser diretamente com- prometida pelo mesmo”. Traz o mesmo autor à colação os artigos 37 e 39 do Estatuto da Cidade que ao tratar do impacto de vizinhança, aborda a questão da qualidade de vida. E conclui, conforme já demonstrado neste trabalho que a ”sadia qualidade de vida implica a disponibilidade de recursos que ultrapassam o aspecto físico do meio ambi- ente”.345

Alguns autores admitem dificuldades para uma avaliação da qualidade de vida. Schwartzman destaca alguns critérios: liberdade de escolha, satisfação de necessidades psicológicas fundamentais e a extensão do conceito de participação. Citando Marshall e Bendix, o autor considera a existência de ligação da qualidade de vida com a expansão e consolidação dos direitos civis, políticos e sociais. E finaliza

344 “A qualidade de vida é um elemento finalista do Poder Público, onde se unem a felicidade do indivíduo e o

bem comum, com o fim de superar a estreita visão quantitativa, antes expressa no conceito de nível de vida”. In Paulo Affonso Leme Machado, Direito Ambiental Brasileiro, p. 48. Ou ainda: “Qualidade de vida é o somató- rio de todos os fatores positivos, ou ao menos de sua parte significativa, que determinado meio reúne para a vida humana em conseqüência da interação Sociedade-Meio Ambiente, e que condiciona a vida como fato bi- ológico, de modo a atender às suas necessidades somáticas e psíquicas, assegurando índices qualitativos ade- quados ao nível da vida que se leva e do meio que a envolve” (grifado no texto). In Liliana Allodi Rossit, Das Cidades Fortificadas aos Loteamentos Fechados, In A Cidade e seu Estatuto, p. 73.

no sentido de que qualidade de vida não é consumo. Implica em “uma noção clara e explícita de uma política de desenvolvimento social”.346

Jannuzzi, ao cuidar do conceito de condições de vida, entende-o como

“nível de atendimento das necessidades materiais básicas para sobrevivência e reprodução social da comunidade”. E conclui dizendo que essas necessidades seriam condições de saúde, habitação, trabalho e educação dos indivíduos da comunidade.347

Marcelo Lopes de Souza, além de indicar a existência de relação entre qualidade de vida e satisfação de necessidades de grande parcela da população, vincula qualidade de vida também com justiça social e autonomia. “Uma vez que o caminho democraticamente mais legítimo para se alcançarem mais justiça social e melhor qualidade de vida é quando os próprios indivíduos e grupos específicos definem os conteú- dos concretos e estabelecem as prioridades com relação a isso, podem-se considerar justiça social e qualidade de vida como subordinados à autonomia individual e coletiva enquanto princípios e parâmetro. Daí as duas faces da autonomia, a individual e a coletiva deverem ser entendidas como parâmetros subordinadores (...). Mais justiça social e uma melhor qua- lidade de vida são, de um ponto de vista operacional, parâmetros subordinados àquele que é o parâmetro essencial do desenvolvimento sócio-espacial, que é a autonomia”.348

Para mesurar qualidade de vida, Anamaria Sant’Anna Murta vale-se dos conceitos de necessidade e demanda. E conclui: “Acredito que a eficiência do Pla- nejamento Urbano esteja diretamente relacionada à satisfação de demandas e à sua mate- rialização em espaços urbanos que propiciem melhores condições de vida para seus habi- tantes. Assim, para efeito deste trabalho, o conceito de qualidade de vida será entendido como um conjunto de condições pessoais, grupais e comunitárias de liberdade, justiça social e direito à participação dos bens de uma sociedade de acordo com suas características pró- prias” (grifado no texto).349

346 Simon Schwartzman, Seminário sobre Política de Desenvolvimento Social, Revista de Ciências Sociais, p.

107. Fortaleza: 1974, v. 5, n. 2, p. 101-111.

347 Paulo de Martino Januzzi, Indicadores Sociais no Brasil. Conceitos, Fontes de Dados e Aplicações. 3ª Edi-

ção, Ed. Alínea, Campinas, São Paulo, 2004, p. 19.

348 Marcelo Lopes de Souza, Mudar a Cidade. Uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos.

Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2002, p. 71.

349 Anamaria Sant’Anna Murta. Projeção Inversa: da prática do Orçamento Participativo à apropriação do

Todos os autores mencionados buscam delimitar o conteúdo da quali- dade de vida, concluindo-na, em síntese, como condições satisfatórias para a vida do homem, incluindo nessas condições alguns direitos sociais, civis e políticos.

Para os fins deste trabalho, a questão é outra, por envolver qualidade de vida como direito fundamental, abordando a função social da cidade enquanto uma questão urbana.

5.3.2. Qualidade de vida: uma proposta de conceito

Outras possibilidades igualmente foram abordadas no sentido de se iniciar a construção de um conceito preliminar com elementos da qualidade de vida.

Assim, a qualidade de vida como direito fundamental será composta e con- cretizada através da cidadania, dos valores sociais do trabalho, da livre iniciativa, da cons- trução de uma sociedade livre, justa e solidária, da garantia do desenvolvimento nacional, da erradicação da pobreza e da marginalização e com a redução das desigualdades sociais e regionais. Acrescente-se ainda, os recursos disponíveis na sociedade e que possibilitem uma existência digna para que o homem possa desenvolver as suas potencialidades, atra- vés dos direitos individuais e coletivos, e dos direitos sociais, garantindo-se, para tanto, o seu bem-estar físico, mental e social e a satisfação e afirmação culturais. E por fim, deverá preponderar o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Também a qualidade de vida teria como elementos “os fundamentos da República, seus objetivos fundamentais, pelos direitos individuais e coletivos, pelos direitos sociais e pelo acesso de todas as pessoas aos serviços públicos que deverão ser justa- mente distribuídos. A tudo isso, acresça-se o princípio da dignidade da pessoa humana, mas em seu aspecto material”.

Fruto do presente trabalho, chegou-se ao binômio vida-dignidade que só pode ter sentido de validade se a ele se acrescentar o vocábulo qualidade (propri-

edade, excelência, virtude). Esse binômio só vai atender o seu sentido constitucional

se for entendido como qualidade de vida, em especial no sentido de excelência de vida, o que de per si deve afastar o medo e inseguranças, que são considerados fatores impeditivos ao objetivo – qualidade de vida.

Da mesma forma, as mutações históricas e as evoluções sociais indi- cam novos rumos para a qualidade de vida, não mais como uma satisfação somen- te, mas como direito, e direito fundamental decorrente do próprio direito à vida.

Poder-se-ia argumentar que qualidade de vida estaria incluída na se- gunda acepção do direito à vida consistente no direito de se ter uma vida digna quanto à subsistência. Todavia, essa abordagem implica em reducionismo de direi- tos do ser humano. É perfeitamente possível o homem ter uma vida digna, mas sem qualidade, entendendo-se dignidade como algo de natureza moral. A assertiva é verdadeira e para exemplificar, basta acompanharmos os problemas atuais da soci- edade onde o homem, até então de classe média, que detinha possibilidades de possuir ou locar uma moradia em local provido de serviços públicos, além de manter a prole em uma escola particular, ou então do Poder Público, mas possibilitando o acesso a cursos (inglês, música, academia, etc), e ao lazer (clube, férias, etc).

O visível estrangulamento sofrido pela classe média através de impos- tos e demais encargos, a falta de emprego e o rebaixamento do padrão de vida alte- ram esse quadro. Atualmente, é comum encontrar famílias vivendo de aluguel, mas aluguel de sub-moradias (favelas, cortiços) ou em loteamentos irregulares sem qual- quer infra-estrutura; os filhos estudando em escolas públicas, quando conseguem vaga, e via de regra, longe do local de moradia; o lazer passa a ser um sonho dis- tante e circunscrito às áreas e equipamentos públicos, quando existentes, e de pos- sível utilização (vide declínio dos espaços públicos).

Essas pessoas podem perfeitamente estar vivendo dentro de um pano- rama de dignidade moral, mas não uma realidade de dignidade material. Caso con- trário, estar-se-ia negando a existência da pobreza, da marginalização e das desi- gualdades sociais e regionais, causadoras de exclusão social.

É por isso que o saudoso constitucionalista Celso Bastos ensina que a preocupação do constituinte foi mais de ordem material.350

350 Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, pp. 248/249. Destaca ainda o autor o aspecto da “di-

gnidade da pessoa” como um repúdio a qualquer forma de humilhação em todos os sentidos, o que entende como um acerto da Carta de 1988, “pois coloca a pessoa humana como fim último de nossa sociedade e não como simples meio para alcançar certos objetivos, como, por exemplo, o econômico”.

Ao contrário do pensamento de alguns autores, qualidade de vida e bem-estar não se confundem, e este não inclui aquela.351 Bem-estar, segundo dicio- nários da língua pátria, equivale à satisfação, conforto. Qualidade de vida é direito decorrente do próprio direito fundamental à vida em uma terceira acepção.

Assim, para os fins deste trabalho, a qualidade de vida é um direito fundamental decorrente do direito à vida em uma terceira acepção, e que por si só exige o respeito à dignidade da pessoa humana em seu sentido material, a obser- vância dos direitos individuais e coletivos, dos direitos sociais, da política urbana com o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade, da preservação do meio ambiente e do acesso de todos aos serviços públicos que de- verão ser justamente distribuídos.

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