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Seria difícil separar a circulação de sentidos de Harry Potter das ações empreendidas por apreciadores que se dedi- cam à reinterpretação da obra. Há de se ter cuidado ao referir-se a eles como “especialistas”, pois sua especialização é estrutura- da segundo critérios do grupo de fãs a que se associam. De todo

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modo, eles se diferenciam do espectador/leitor ocasional que gosta da história pelo emprego de tempo em busca de informa- ções sobre a narrativa e criação de produções secundárias. E é a partir das enunciações desses consumidores-criativos que a par- cela de público que prefere unicamente contemplar os discursos da ficção irá observar. Com frequência, de fato, o processo de midiatização permite inclusive a transposição dos fluxos sobre Harry Potter para fora do círculo de admiradores. Simplificando, quando um produto cultural capta o interesse de um indivíduo, este passará a se ocupar com a leitura de discursos relacionados à obra original, diferenciando-se entre o consumidor que vo- luntariamente se debruça sobre construções secundárias e sua difusão (fã) e aquele que se mantém distanciado, sem partici- pação ostensiva nesse mercado simbólico. Obviamente o termo é problemático – como qualquer categorização – porque é um operador comum que não distingue os diferentes graus de en- volvimento nas ações sobre a narrativa-modelo e o próprio cole- tivo de fãs, o que envolve o fator tempo de trabalho. Entretanto, o foco aqui é ressaltar a generalidade das práticas nessa modali- dade de recepção, sem pretender uma classificação.

Com efeito, a figura do fã tem recebido maior atenção nos últimos anos, sobretudo após os ensaios publicados por Henry Jenkins sobre as “comunidades” que se formam ao redor dos objetos culturais. O autor estadunidense (1992, p. 10) fez uma contextualização do termo que fora admitido segundo um estereótipo de pessoa de capacidade intelectual limitada e vida social nula. A vanguarda do universo dos fãs na atualidade cor- responderia às mobilizações empreendidas em torno da série Star Trek, veiculada nos EUA. Condição importante nesses pri- mórdios foi a reclamação de admiradores do programa televi- sivo contra o cancelamento das transmissões, então no final da década de 1960. Mas as manifestações de simpatia pela ficção não se limitaram a isso.

Antes mesmo do encerramento da trama, a confecção

de materiais chamados fanzines2 misturava matrizes linguísticas

visuais e verbais para formar uma amálgama de contribuições à parte – mas análoga – do enredo da série televisiva. A primeira

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publicação, Spocknalia, obedecia a uma economia colaborativa mantida entre os fãs à base de contribuições e trocas.

Por outro lado, a verdade é que o termo fã remete sem- pre ao conjunto de outros fãs que se articulam sobre o mesmo objeto de culto, o que no jargão dos grupos é chamado de fan-

dom3. O termo é usado frequentemente para diferenciar a admi-

ração por produtos distintos – por exemplo, o fandom de Harry Potter e o fandom de Star Trek. A adesão a esses coletivos des- centralizados é voluntária, entretanto há diferentes graus de re- conhecimento nas comunidades. Portanto, o mesmo fã poderá participar de mais de um fandom simultaneamente.

Jenkins (ibid., p. 77) avaliará a prática, pelo menos par- cialmente, como necessidade de interação entre fãs, numa dinâ- mica em que o coletivo integra a função de identificação entre eles. A contribuição de Patrice Flichy é igualmente relevante. Embora dedique atenção especial aos fenômenos contemporâ- neos, ele aponta (2010, p. 13) que o amador, quando cria, o faz pensando menos no potencial artístico do artigo elaborado do que considerando a possibilidade de entretenimento ou mesmo identificação.

Tanto em relação a pesquisas estadunidenses (BLACK, 2006) como em exemplos verificados em sites brasileiros – que discutiremos a seguir – nota-se a inclinação colaborativa tecida entre fãs nos seus espaços de interação em rede. Essa articula- ção supera aquela estabelecida em torno de Star Trek, pois o relacionamento via Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) reduz o intervalo entre os enunciados dos participantes, permitindo que o fandom não apenas remeta material para di- vulgação, mas também o comente, seja com críticas, elogios ou sugestões. Aí se encontra o ponto-chave tensionado pelas pes- quisas de Educação que se interessam pelo tema, da qual Black é um expoente. A formação juvenil em rede, principalmente ali- nhada a um fandom, proporcionaria complementaridade àque- la do ambiente escolar. É necessário ressaltar, entretanto, que esses núcleos de afinidade cultural precisam estabilizar-se no tempo, o que à época das fanzines de Star Trek era problemático,

3 Composição entre os termos fan e kingdom (ou domain), de língua inglesa, que caracterizam certo “domínio de fãs”.

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pois os projetos exigiam maior tempo de trabalho e investimen- to financeiro.

No sentido da apropriação que fãs fomentam em rela- ção a suas séries prediletas, Jenkins (1992, p. 33) retomará o pensamento de Michel de Certeau acerca da resistência na re- cepção comunicativa e desenvolverá uma interpretação adicio- nal, como fenômeno derivado e inclusive de reação às indústrias de conteúdo. Este trabalho de Jenkins antecede a digitalização da comunicação, o que, em comparação à sociedade regida por meios de comunicação de massa, conduz a uma maior visibili- dade dessas apropriações. Mesmo com a conclusão de Jenkins, para quem o fã é um poacher, uma espécie de contrabandista de sentidos, retornamos às suas premissas: em qual medida os fãs obtêm sucesso em subtrair os objetos culturais da indústria? Ou, invertendo a ordem, como se alcança ir além da recepção como resistência numa sociedade reticular, à base das TICs?