• Nenhum resultado encontrado

A potência e a intensidade dos protestos de junho de 2013 parecem revelar o sintoma de um sentimento de indigna- ção em relação a problemas sociais históricos. Entretanto, em termos analíticos, podemos considerar que se trata da própria dinâmica do imaginário social sendo tensionada pelo processo dialético utopia/ideologia. Provavelmente, cientistas políticos e sociólogos dariam ênfase a uma investigação do segundo nível proposto por Ricoeur (1997), em que uma utopia política que clama por espaço entra em conflito com a ideologia de domi- nação vigente. Todavia, nossas análises, focalizadas no papel preponderante das TIC na formação de um imaginário tecnocul- tural, apontam para o papel da utopia como dimensão criativo- -experimental que atua na tentativa de renovação da ideologia que estabiliza a integração dos grupos.

Se considerarmos as propostas de Flichy (2001), per- ceberemos que, quando se trata da internet, uma “utopia de rup- tura” já havia sido imaginada na década de 1960 quando surgiu a ideia de usar os computadores não só para cálculos complexos

12 Artigo de O Globo Online sobre a invasão da conta da presidente Dilma Rousseff no Instagram. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/conta-de-dilma- -no-instagram-hackeada-8724516>. Acesso em: 12 ago. 2013.

196

Redes digitais: um mundo par

a os amador

es. No

vas r

elações entr

e mediador

es, mediações e midiatizações

e gerenciamento de bancos de dados, mas como dispositivo ca- paz de conectar pessoas e saberes em redes. A partir do projeto ARPANET e das primeiras tentativas de computação cooperativa surgidas no MIT, a noção de “inteligência coletiva” estava lan- çada. A partir daí, tem sido levada adiante por atores de dife- rentes setores com projetos de desenvolvimento experimental. Algumas destas “utopias projetos” tiveram êxito, como o caso da internet comercial. Outras tantas ainda mantêm suas caracterís- ticas de experimento, como é o caso de uma democracia de cida- dãos conectados. O que é mais importante, como lembra Flichy (2001), é que o imaginário relacionado à internet tem caracte- rísticas globais.

Talvez por isto, poderíamos dizer que as manifestações no Brasil, salvo suas particularidades, são convergentes a uma onda de protestos que vêm ocorrendo no mundo todo pelo me- nos desde a década de 1990, como se viu nas manifestações con- tra o encontro da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle no ano de 1999, nos “Indignados” da Europa (Espanha, Grécia, Portugal e Itália) em 2011, no Occupy Wall Street, em 2011, e muitos outros. Todos estes movimentos, apesar da he- terogeneidade geográfica, parecem compartilhar um imaginário comum e apresentar características semelhantes: mobilização nas redes digitais por causas sociais concretas mesmo que di- ferentes entre si, manifestações convocadas pela internet, des- crédito nas soluções apresentadas pelas formas de represen- tatividade política tradicional e a descentralização das pautas reivindicatórias.

Nesta perspectiva, as três formas do agir político atra- vés das TIC encontradas nos materiais analisados nos levam a inferir que emergiu o discurso da “experimentação” de um tipo diferente de cidadania política. A tecnologia é apresentada como a base de um novo funcionamento social, no qual os diversos atores teriam a possibilidade de participação direta nos proces- sos políticos. O uso das redes sociais e de plataformas de com- partilhamento serviu para a disseminação das ideias dos pro- testos, com o intuito de mobilizar mais cidadãos a aderirem às causas propostas (ainda que estas tenham se apresentado difu- sas). Já em ações como a do Mídia Ninja, o uso das TIC levam à experimentação de novas formas de apropriação dos meios de

Redes digitais: um mundo par a os amador es. No vas r elações entr e mediador

es, mediações e midiatizações

197

produção da informação. Podemos considerar que tal iniciativa sugere uma alternativa à organização do trabalho jornalístico, propondo mudanças no fluxo midiático, diminuindo o controle das organizações sobre o trabalho dos indivíduos, ao servir-se do discurso de que todo cidadão pode produzir conteúdo de for- ma independente.

E, de forma mais radical, os ciberataques do Anonymous às instituições políticas e às organizações foram tomados como símbolos da investida contra as ideologias políticas em voga. Os discursos do grupo postulam genericamente, como metas, a construção de uma cultura da participação global, a promoção da liberdade de expressão e a busca por um mundo mais justo. Sendo assim, podemos considerar que, apesar de conter carac- terísticas de uma “utopia fantasmática”, esta forma do agir polí- tico atua com pretensões a uma “ideologia legitimante”.

Nesta perspectiva, as duas frentes (socioantropológica e sociotécnica) atuaram de maneira imbricada, sendo a princi- pal característica comum a busca por um fortalecimento através da resistência anônima de cidadãos comuns (conforme Flichy, o cidadão político na era digital, em sua maioria, tem sua identida- de mascarada, disfarçada), seja no rosto coberto adotado pelos ativistas da tática Black Bloc, seja pela máscara do personagem Guy Fawkes (do HQ e do filme V de Vingança, 2008), que tornou- -se símbolo do Anonymous em todo mundo e apareceu de forma muito expressiva nas manifestações de rua e em imagens que circularam na web.

A busca utópica dos manifestantes pela multiplicida- de não poderia se traduzir em rostos de líderes, a exemplo de experiências políticas passadas, pois estes se tornam hegemô- nicos (ideológicos) assim que assumem uma imagem de poder. E, neste sentido, o hacker emergiu no imaginário tecnocultural como arquétipo de um novo sujeito político que, em sua clan- destinidade ética, dissemina a cultura da participação através da socialização dos códigos informáticos.

Desenvolvemos esta proposição com base na adesão de boa parte dos manifestantes na web e nas ruas à máscara que representa simbolicamente o Anonymous. Os diversos grupos, desde blogueiros e ciberativistas, passando pelos Black Blocs, até os jovens que compareceram às manifestações urbanas pací-

198

Redes digitais: um mundo par

a os amador

es. No

vas r

elações entr

e mediador

es, mediações e midiatizações

ficas, parecem partilhar de um imaginário comum que deposita confiança na figura do “dissidente digital”, que agiria em prol de causas sociais justas. Esta figura do imaginário teria condições de minar o poder perverso da dominação política e econômica porque operaria por dentro do regime da tecnologia informáti- ca, imprescindível para o funcionamento das instituições atuais.

É interessante notar que os hackers são um grupo de atores que participaram da “utopia de ruptura” que deu origem à própria internet. Neste caso, importam menos os ataques, na forma de barricadas digitais, às materialidades dos símbolos do poder do que a produção simbólica dos sentidos sobre estes ata- ques, que, em última instância, nutre-se do imaginário tecnocul- tural e, ao mesmo tempo, o (re)constrói.

Referências

APPADURAI, Arjun. Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996.

BAZERMANN, Charles. The Languages of Edison’s Light. Cambridge: The MIT Press, 1999.

BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1989.

BOLTER, J. David. Turing’s Man: Western Culture in the Computer Age. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1984.

BRAGA, José Luiz. Sobre ‘mediatização’ como processo intera- cional de referência. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS- GRADUÇÃO EM COMUNICAÇÃO, 15., jun. 2006, Bauru, SP. Anais eletrônicos... São Paulo: Biblioteca COMPÓS, 2006. Disponível em: <http://www.compos.org.br/ data/biblioteca_446.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2016. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e

Redes digitais: um mundo par a os amador es. No vas r elações entr e mediador

es, mediações e midiatizações

199

CASTORIADIS, Cornélius. A instituição imaginária da socieda-

de. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

FAUSTO NETO, Antonio. Midiatização prática social, práti- ca de sentido. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS- GRADUÇÃO EM COMUNICAÇÃO, 15., jun. 2006, Bauru, SP. Anais eletrônicos... São Paulo: Biblioteca COMPÓS, 2006. Disponível em: <http://www.compos.org.br/bus ca_anais.php?idEncontro=MQ==&termoBusca=Faus to%20neto>. Acesso em: 16 nov. 2016.

FERREIRA, Jairo. Uma abordagem triádica dos dispositivos mi- diáticos. Líbero, São Paulo, ano XI, n. 17 p. 137-145, jun. 2006.

FISCHER, Gustavo Daudt. Tecnocultura: aproximações con- ceituais e pistas para pensar as audiovisualidades. In: KILPP, Suzana; FISCHER, Gustavo Daudt (Org.). Para

entender as imagens: como ver o que nos olha? Porto

Alegre: Entremeios, 2013.

FLICHY, Patrice. La place de l’imaginaire dans l’action techni- que: Le cas de l’internet. Réseaux, v. 5, n. 109, p. 52-73, 2001.

GOMES, Pedro Gilberto. Sociedade em midiatização: saudade ou esperança? Paper: PPGCOM – Unisinos. São Leopoldo, 2010. 7 p.

LADEIRA, João Martins. Representações, dados, programações: uma visão contemporânea sobre cultura. In: KILPP, Suzana; FISCHER, Gustavo Daudt (Orgs.). Para enten-

der as imagens: como ver o que nos olha? Porto Alegre:

Entremeios, 2013. p. 33-40.

MIÈGE, Bernard. A sociedade tecida pela comunicação: téc- nicas da informação e da comunicação entre inovação e enraizamento social. São Paulo: Paulus, 2009.

PROULX, Serge. La critique des technologies de l’information et de la communication à l’épreuve des mutations du ca- pitalisme contemporain. In: COLLOQUE OU (EN) EST LA CRITIQUE EN COMMUNICATION ? Congrès Acfas, Montréal, 7-8 mai, 2012.

RICOEUR, Paul. L’idéologie et l’utopie. Paris: Le Seuil, 1997. SHAW, Debra Benita. Technoculture: The Key Concepts. New

York: Oxford, 2008.

TAYLOR, Charles. Modern Social Imaginaries. Durham: Duke University Press, 2004.

YATES, JoAnne. Structuring the Information Age: Life Insurance and Information Technology in the 20th Century. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2005.