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PARTE I – ORGANIZAÇÃO, GÉNERO E LIDERANÇA

1. G ÉNERO E NQUANTO C ONSTRUÇÃO S OCIAL

As primeiras aproximações ao conceito de género assentavam no determinismo biológico inerente ao termo “sexo”, determinante dos papéis socialmente aceites para homens e mulheres. No entanto, “é impossível que a dicotomia sexual seja baseada em factores anatómicos” (Titiev, 1963: 216), pese embora o facto de existirem hábitos e costumes associados de tal forma a cada género humano, que parecem ser biologicamente determinados.

1.1.CONCEITO DE GÉNERO

Na literatura que contempla estudos relativos ao género é comum estabelecer-se a distinção entre sexo e género. Esta categoria, emergente após o Movimento Feminino, provocou uma alteração significativa a nível epistemológico. Por género passa entender-se o modo como “as diferenças sexuais dos corpos humanos são trazidas para a prática social e tornadas parte do processo histórico” (Connel, 1995: 189 cit. in Louro, 2003: 26). O sexo, por sua vez, refere-se às diferenças sexuais de nível biológico. Esta nova abordagem é de grande significância pois permite diminuir a distância conceptual entre feminino e masculino. Como consequência desta nova concepção,”deixava de fazer-se uma história, uma psicologia ou uma literatura das mulheres, e passava a analisar-se a construção social e cultural do feminino e do masculino” (Louro, 2003:14). Assim, o conceito aponta para uma quebra entre “a rígida polaridade binária entre masculino e feminino” (idem: 15).

Moreno (2000) apoia-se na definição de género apresentada por Lagarde (1997) segundo a qual “El género se define como una construcción simbólica que contiene un conjunto de atributos socioculturales asignados a las personas a partir de su sexo” (Lagarde, 1997: 27 cit. in Moreno, 2000: 12).

Com o intuito de dar a entender esta mudança de paradigma, Oliveira (2000) propõe o esquema apresentado na Figura 12. Na opinião da autora, o género é uma categoria de análise da realidade, tal como a classe social, o nível sócio-económico ou a etnia. Assim, a autora considera que é conveniente fazer uma análise prévia do que consiste o sistema

sexo-género e tratar de mostrar como este sistema funciona a nível biológico, psicológico e

político. No seu entender, o sistema desenvolveu mecanismos de alta segurança conducentes ao conformismo e à aceitação do status quo nas consciências individuais. Como exemplos destes mecanismos a autora aponta o conformismo da família, o controlo educativo, o desenvolvimento de uma tecnologia para o consumo, a censura oculta, a desinformação e a manipulação dos meios de comunicação e da sociedade em geral. A autora conclui que é conveniente resistir a esta forma de possessão das nossas

consciências, abrindo as portas a um processo desalienante que nos permita pensar de outra maneira.

Figura 12 – Diferenças sexuais

(Adaptado de Oliveira, 2000: 77) Porém, o conceito de género tem gerado alguma controvérsia, sobretudo entre feministas que consideram que esta nova categorização discrimina ainda em função da raça, classe e tendência sexual. Segundo Louro (2003), o conceito de género continua, para muitos, a ser discriminatório pois reforça o dualismo homem/mulher e pressupõe a

heterosexualidade, em detrimento da “desconstrução da oposição binária

masculino/feminino” (Louro, 2003: 15).

Na opinião de Moreno (2000), o papel tradicional atribuído às mulheres deve-se a um modelo ideológico patriarcal sustentado por duas componentes que se reforçam mutuamente: a divisão sexual do trabalho e o controlo da natalidade. Por um lado, a sociedade assume que cabe à mulher uma maior dedicação à família, ao lar e às tarefas domésticas. Por outro lado, a identificação entre maternidade biológica e função social da maternidade, conduz a mulher ao desempenho do papel de responsável pelos seus descendentes. Seguindo Cremades (1991), a autora alerta para o facto da maternidade enquanto função social ser uma relação psicossocial que se estabelece com o(a) filho(a) e que abarca o cuidado, a protecção, a dedicação, a criação, a educação e a socialização, não cabendo por isso exclusivamente à mulher, contrariamente à maternidade biológica. 1.2.ESTEREÓTIPOS DE GÉNERO

Os processos e mecanismos de transmissão de papéis, atribuídos a mulheres e homens, são tão complexos e subtis que por vezes não temos consciência dos mesmos.

A diferenciação e categorização entre homens e mulheres remontam para antes do nascimento do indivíduo. A escolha da cor da roupa, rosa ou azul, a decoração do quarto ou a escolha dos brinquedos são exemplos de diferentes tratamentos. Estes comportamentos estão tão interiorizados como próprios de um dado sexo, que quase parecem ser determinados geneticamente. Constituindo-se os chamados “papéis de género” (Moreno,

Sexo Diferenças biológicas relativas à reprodução Género Diferenças sócio culturais relativas ao sexo DIFERENÇAS SEXUAIS Papel Diferenças de comportamentos e atitudes Estereótipo Diferenças de modelos e atitudes

2000: 14), estes comportamentos podem definir-se como um conjunto de tarefas e funções atribuídos a uma pessoa, ou a um grupo de pessoas, dentro de uma cultura ou um determinado grupo social. Na nossa sociedade, são eles que estipulam a divisão sexual do trabalho e introduzem a desigualdade e a hierarquização no trato recebido consoante o género, sendo por isso claramente sexistas (Moreno, 2000). Reiterando esta posição, Simón (2000) afirma que “Referido al género, la diferencia de trato, de gustos, habilidades y comportamientos se aloja e cultiva en los grupos de los iguales. Los niños y las niñas juegan separados, a juegos y con juguetes distintos, hablan de temas muy diferentes, compran cosas diversas, adoptan estéticas diferenciadoras, participan en actividades colectivas de forma opuesta, incluso”. (Simón, 2000: 34-35). Assim, ao processo de socialização subjaz um sistema que diferencia o indivíduo em função da sua condição sexual. Para Ramos (1996), este sistema é construído com base em paradigmas sócio-culturais, religiosos, legais e políticos de cada sociedade, que definem as características próprias de homens e mulheres tanto no espaço público, como nas relações familiares, no cuidado do lar e dos filhos. Neste sentido, Simón (2000) questiona a existência duma coeducação na escola, dado que o processo de socialização acarreta a diferenciação entre homens e mulheres. Conforme refere a autora, “la socialización entre «iguales» se efectua más bien como una socialización entre «desiguales»” (Simón, 2000: 35).

Segundo Moreno (2000), os processos de transmissão de papéis, atribuídos a homens e mulheres ocorrem em três espaços: iniciam-se na família, completam-se e legitimam-se na

escola e são reforçados pelos meios de comunicação social. A autora considera que estes

processos se operam da seguinte forma (Moreno, 2000: 11):

i) A família

Na família são assimilados comportamentos, modelos e valores de género, transmitindo- se um modelo que responsabiliza a mulher pelo espaço privado ou doméstico e o homem pelo espaço público. Como o homem não assume, partilha ou desempenha os papéis femininos, as crianças são educadas neste ambiente, visando responder às demandas e expectativas sociais sobre o seu género. Também Simón (2000) refere que as crianças aprendem por imitação a comportar-se segundo estes parâmetros, sem que ninguém lhos ensine expressamente.

Por sua vez, a desigual dedicação ao espaço privado por parte de homens e mulheres provoca que o espaço público não seja partilhado de forma igualitária. Estes modelos reflectem-se também na escolha de profissões das raparigas, que tendem a optar por “profissões femininas” (Moreno, 2000: 12). A este respeito, Simón (2000) afirma que apesar dos resultados académicos das raparigas serem globalmente melhores que os dos rapazes em todas as áreas, as escolhas académicas, laborais e profissionais são efectuadas tendo em conta o género. Para esta autora, as mulheres tendem a escolher profissões que lhes permitam ter algum tempo disponível para se dedicarem às tarefas do espaço doméstico.

Enquanto que os homens utilizam o seu tempo de forma linear, as mulheres têm de fazê-lo de forma circular espiral, tendo em conta a dupla jornada com que se deparam todos os dias, o que conduz à segregação entre homens e mulheres. A autora acrescenta ainda que as mulheres não têm tanta visibilidade quanto os homens por falta de tempo.

Para Moreno (2000), a partilha da responsabilidade nas tarefas domésticas é um dos princípios pelos quais se deveria pautar a educação familiar, principalmente por três motivos: primeiro, porque a influência precoce, directa e constante da família, provoca efeitos duradouros; segundo, porque não existe nenhuma política capaz de mudar a vida privada, os seus valores e comportamentos; terceiro, porque a partilha das tarefas na família propicia uma relação mais democrática entre os seus membros, potenciando as possibilidades e capacidades de cada um.

ii) Os meios de comunicação

Os meios de comunicação consolidam as representações sociais que são introduzidas pela família, não se limitando a transmitir um reflexo da realidade social, mas antes a configurá-la subtil e indirectamente. Apoiando-se em García Vicente (1995), a autora refere que a imagem da mulher na televisão veicula papéis claramente regressivos que não encontram ponto de contacto com a realidade social das mulheres, baseando-se sobretudo na reprodução biológica e na produção doméstica.

Reconhecendo o poder que a publicidade tem em transmitir valores e mudar mentalidades, Moreno (2000) acredita que a publicidade poderá também contribuir para fomentar a imagem pública das mulheres de acordo com a realidade actual.

iii) A escola

Embora a educação conjunta de rapazes e raparigas tenha contribuído para a correcção da desigualdade entre géneros, na opinião de Moreno (2000) a escola continua a transmitir conteúdos (explícitos e ocultos) a partir de um modelo hegemónico masculino que pretende a igualdade entre os dois sexos. Apoiando-se em Piussi (1997), a autora refere que a escola

de todos foi primeiramente uma escola de homens, pelo que é necessário que a escola

tome consciência do importante papel que desempenha no constante processo de construção da identidade sexual e valorização social de ambos os géneros.

Os modelos que se potenciam na família, nos meios de comunicação e que se reproduzem na escola, favorecem o aparecimento de estereótipos que definem os rapazes como independentes, poderosos e fortes e as raparigas como submissas, dependentes, generosas e frágeis. Neste sentido, a escola não é neutra (Moreno, 2000) uma vez que, constituindo-se um microcosmo, potencia valores impostos pela sociedade.

Na opinião da autora, a mudança deste tipo de comportamentos e crenças requer uma quebra de paradigma. Para tal é necessário que se reconheça a diferença sexual e que a virilidade e agressividade masculinas dêem lugar a comportamentos pautados pela liberdade e pelo civismo (Moreno, 2000).

A escola, ao veicular valores, comportamentos e atitudes que sustentam a manutenção dos papéis geralmente atribuídos a rapazes e a raparigas, acaba por valorizar o papel masculino em detrimento do feminino (idem). Esta veiculação pode ocorrer através do currículo oficial ou através do currículo oculto. Assim, o papel dos agentes de ensino é fundamental pois constituem-se modelos e veículos de socialização, não só através das práticas e dos conteúdos que seguem, mas também através do currículo oculto que transmitem. A autora considera que esta transmissão se faz em vários âmbitos (Moreno, 2000: 19:29):

i) Orientação profissional e vocacional

Apoiando-se na investigação de Gaviria (1994), a autora revela que o sexo condiciona as escolhas profissionais, ainda mais que a classe social a que pertencem os alunos(as). A existência de profissões femininas e profissões masculinas, no seu entender, põe em causa a universalidade e igualdade do sistema educativo.

ii) Currículo

Na opinião da autora, no currículo existe um leque de aspectos que contribuem para a transmissão de modelos sexistas (Moreno, 2000: 21-26):

– A linguagem: o uso de estruturas gramaticais e genéricos masculinos, bem como o tom de voz grave para parecer mais sério, pressupõe uma superioridade do masculino em relação ao feminino. Desta forma, a linguagem é androcêntrica, e à sua luz as mulheres são invisíveis.

– O estereótipo: os livros de texto, ou até os contos infantis, são transmissores duma cultura que sobrevaloriza o masculino. As mulheres protagonistas, ao existirem, são sempre esposas, mães e donas de casa. O final feliz das histórias infantis é o casamento ou o aparecimento de um príncipe encantado, que parece constituir a realização pessoal das personagens femininas. Quando o final não é este, então é porque a mulher que integra a história é uma bruxa, uma madrasta ou uma pessoa má e desequilibrada.

– A invisibilidade: a invisibilidade das mulheres está patente na linguagem, no tratamento que recebe o género feminino nos livros de texto ou nos meios de comunicação e na ausência de conteúdos referentes a mulheres. Esta invisibilidade é histórica e alicerça-se na atenção dada ao espaço público em prejuízo da atenção dada ao espaço privado.

– O desequilíbrio: as actividades realizadas por homens são sobrevalorizadas relativamente àquelas que são realizadas por mulheres, o que se traduz no desprestígio das profissões femininas.

– A irrealidade: as informações detalhadas sobre os feitos dos homens e a omissão dos feitos das mulheres revelam um desfasamento da realidade que é percepcionada pelos alunos e que mais tarde terá repercussões nas suas personalidades.

– A fragmentação: a ausência de uma cultura feminina na escola é de tal ordem que constitui um obstáculo para a ocupação plena da mulher no espaço público. Esta

fragmentação da presença feminina é consequência da realidade social da mulher. A sua presença é muitas vezes secundária ou complementar à do homem.

iii) Modelos de professoras e professores

O corpo docente constitui-se um modelo de referência para os alunos, pelo que é essencial a sua consciencialização no que concerne ao seguimento de atitudes e comportamentos que poderão ser sexistas. Neste sentido, a formação dos professores é um dos principais pilares de combate a atitudes discriminatórias na escola devido ao importante efeito que o docente exerce no processo de ensino-aprendizagem.

iv) Medidas administrativas e legislativas: as medidas administrativas e legislativas dos

países tendem a devolver as mulheres a casa, em vez de propiciarem uma maior participação dos homens nas responsabilidades, como por exemplo na maternidade. Por outro lado, a ascensão profissional e formação normalmente requerida pela mulher formam um ciclo vicioso: se a mulher não faz a formação, então não ascende profissionalmente, se a faz, então terá mais uma sobrecarga além do trabalho e do cuidado do lar ou dos filhos, tornando-se o seu dia numa tripla jornada de trabalho.