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PARTE I – ORGANIZAÇÃO, GÉNERO E LIDERANÇA

3. O P APEL DA M ULHER NA E SCOLA

3.1. A S M ULHERES E A E SCOLA DE M ASSAS

Portugal foi precoce no lançamento da escola de massas, na medida em que declarou o seu interesse mais cedo do que os países centrais. Com efeito, os primeiros documentos oficiais que demonstram este interesse datam de 1835 e 1836. É de referir que “a Reforma de Educação de 1844 reafirmou o princípio da educação obrigatória para as crianças, sublinhando que todas deviam frequentar a escola, entre os 7 e os 15 anos” (Araújo, 2000: 74). Apesar desta intenção, o desenvolvimento da escola de massas foi precário, não se traduzindo em realizações concretas, e só com a Reforma Educativa de 1878 se alargou a escolaridade obrigatória às raparigas. Por um lado, o número de escolas aumentava muito lentamente neste período, que se queria de grande expansão. Por outro lado, existia uma grande diferença entre o número de escolas masculinas e o número de escolas femininas, o que aponta para uma educação estatal definida como masculina. Apenas a partir de 1850 é que o aumento número de escolas femininas se torna mais visível. Aludindo a Nóvoa (1987), Araújo (2000) refere que entre 1860 e 1900 o aumento do número de escolas superou o triplo, e no caso das escolas femininas aumentou mais de vinte vezes. O crescimento da escola de massas encontra-se também patente no número de professores existentes na altura. Conforme pode observar-se no Quadro 2, entre 1854 e 1881 o número de professores duplicou, ao passo que o número de professoras cresceu de tal maneira que, em 1910, estas constituíam mais de metade dos profissionais da docência.

Quadro 2 – Número de Professores e Professoras (1854 – 1910) Anos Professores Professoras Número Total Nº % Nº % 1854 1146 95,6% 53 4,4% 1199 1868 __ __ 362 __ __ 1881 2364 72,1% 914 27,9% 3278 1899 2825 62,8% 1670 37,2% 4495 1910 2777 47,8% 3031 52,2% 5808 (Adaptado de Araújo, 2000: 77)

A par da Reforma Educativa de 1878, o Estado alargou o direito de voto a todos os homens chefes de família, ainda que analfabetos, numa tentativa de integrar os cidadãos na política local e na educação. Segundo Araújo (2000), esta Reforma integrou as mulheres no Estado de duas formas: em primeiro lugar, na igualdade de acesso das raparigas à escola de massas; em segundo lugar, na integração das mulheres, já alfabetizadas, nas escolas públicas enquanto professoras, reconhecidas que eram as suas aptidões para educadoras. Podemos assim concluir que, no período de 1870-1910, os fenómenos da escola de massas e feminização da profissão docente ocorrem simultaneamente e seguem ritmos idênticos de crescimento. Com efeito, as mulheres passaram do lugar de alunas para o lugar de professoras, incorporando-se no Estado. Parafraseando Ramirez e Weiss (1979), Araújo (2000) refere que essa transição se deu através do voto, da escola de massas e do mercado de trabalho.

Não tendo origem nem na sociedade civil nem na economia, a Reforma de Educação de 1878 tinha como base duas preocupações: por um lado, o controlo social e, por outro, o contributo que a educação traria ao desenvolvimento económico do país. Note-se ainda que a universalidade de escolarização de massas pressuponha que as raparigas “se comportassem de acordo com um código de moralidade muito restrito, onde eram assinalados os seus deveres como subordinadas ao mundo masculino” (Araújo, 2000: 85). O recrutamento de mulheres para a expansão da escola de massas ocorreu um pouco por todos os países da Europa e Estados Unidos da América, o que fez com que se tratasse de um processo visto como uma “similaridade transnacional” (Ramirez e Boli, 1987 cit. in Araújo, 2000: 93).

A tendência crescente da feminização da profissão docente e o acesso das raparigas à escola continuaram a verificar-se até 1910. Conforme refere Araújo (2000), Nóvoa (1987) considera que o desenvolvimento do ensino primário, superior nesta época, ocorre simultaneamente com três outros processos: a neutralidade do ensino no que toca à

educação religiosa, a descentralização e a coeducação. Os aspectos de maior relevância

destes processos são os seguintes (Araújo, 2000: 179-189):

i) Neutralidade do ensino

A ideia de uma escola livre de uma influência religiosa é um símbolo do período republicano, sendo a educação católica substituída nas escolas do ensino público pela educação cívica, até ao golpe de 28 de Maio de 1926. Esta escola laica, que então surgia, devia a sua existência às difíceis relações existentes entre a Igreja Católica e o Estado Republicano.

ii) Descentralização

Com a Reforma de Educação de 1911, a administração e controlo do ensino primário passou para os municípios que tinham amplos poderes no que se refere a este nível de ensino. Esta experiência não foi, no entanto, bem aceite pelos professores que recebiam os seus salários atrasados ou que sofriam pressões políticas e sociais, sobretudo em meios pequenos. A insatisfação crescente deu origem à criação das Juntas Escolares, em 1919, compostas por três professores, eleitos entre os seus pares, e cinco funcionários que não participavam das decisões da referida junta. Este novo sistema de descentralização vigorou até 1925.

iii) Coeducação

Até 1911, “não existia coeducação, dado que se assumia que as raparigas e os rapazes tinham identidades distintas, sendo-lhes distribuídas disciplinas diferentes em áreas específicas do currículo” (Araújo, 2000: 182). Apesar de muitas das disciplinas serem as mesmas, existia uma distinção, sobretudo nos trabalhos manuais, que obedecia aos modelos dos papéis para cada género. A frequência de disciplinas como Ginástica e

Costura, por exemplo, era dirigida a alunos e alunas, respectivamente, podendo o professor

dispensar os alunos de um ou de outro género. Criada em 1919, a escola coeducativa viu os seus programas aprovados em 1921 para ser abolida pouco depois do golpe militar de 28 de Maio de 1926. A instabilidade política vivida no país levou a que a escola de massas crescesse de forma irregular e se desenvolvesse com um ritmo mais lento do que era assumido pela retórica educativa (idem: 189).

No período final da República, os professores primários ganharam cada vez mais destaque, o que fez desta época “a idade de ouro dos professores primários” (Nóvoa, 1987: 586). O reconhecimento da sua importância e contribuição para o desenvolvimento dos ideais republicanos conferiram prestígio à profissão num “momento em que o seu estatuto sócio-económico atingiu o ponto mais alto da sua história profissional” (idem: 609). Neste período, em que a profissão docente gozava de melhores condições, o número de professoras aumentou, o que contradiz as explicações da feminização do ensino enquanto um trabalho assalariado. Araújo (2000) refere que, em 1910, a percentagem de professoras era de 52,2%, tendo subido para 60,2%, em 1916/17, e para 66,2%, em 1925/26. Esta

tendência de crescimento foi contrariada por medidas reorganizadoras da formação de professores com o objectivo de combater o desemprego dos professores do género masculino, bem como enfatizar a imagem do professor como “líder da comunidade” (Araújo, 2000: 191). Uma vez que no contexto das relações patriarcais esta imagem era claramente masculina, as medidas adoptadas visavam o afastamento da mulher, “intentando-se que o ensino primário pudesse voltar a alcançar o seu antigo estatuto como profissão masculina” (idem: 191). Como consequência, as mulheres foram reencaminhadas para ocuparem lugares na educação pré-escolar. Nos jardins-de-infância, por exemplo, deveriam trabalhar exclusivamente mulheres que substituiriam, tanto quanto possível, uma mãe.

A feminização do ensino tornava-se problemática para os políticos republicanos e as tensões resultantes deste processo não foram visíveis de imediato. No entanto, os valores

Liberdade, Igualdade e Fraternidade foram soberanos nesta era conturbada, possibilitando

às mulheres pequenas conquistas como o acesso a uma educação e formação igual à dos seus colegas do género masculino ou um salário igual ao dos seus pares do género oposto.

Assim, entre 1910 e 1926, “a feminização do ensino parece ganhar, neste período, alguma «autonomia» face à escola de massas, sugerindo um desenvolvimento que toma o seu próprio ritmo” (Araújo, 2000: 194).