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2. RELIGIÃO: O PENTECOSTALISMO EM SUAS CARACTERÍSTICAS E CONTEXTOS

2.2 A luta contra o mal: a ascese como estilo de vida

A batalha espiritual contra o mal é uma característica presente no movimento pentecostal como um todo e pode ser compreendida na dicotomia entre o que é de Deus (do bem) e o que é do Diabo (do mal), entidades que atuam tanto no mundo espiritual quanto no mundo secular (ALMEIDA, 2009; MARIANO, 2014). Nessa compreensão, “as dificuldades materiais e de outras situações, como familiar e de saúde, são compreendidas como decorrentes das ordens morais e espirituais” (ALMEIDA, 2009, p.40), ou seja, de interferências do mal na vida da pessoa.

Enquanto religião de salvação, em que há a recusa de “males” seculares para se ter “bens” espirituais e seculares, o crente deve evitar ao máximo a proximidade com as “coisas do mundo” que não seriam de Deus, assumindo postura e comportamento que condiga com o que se é esperado no interior de cada denominação evangélica e a sua interpretação bíblica, estando assim mais próximo do sagrado. As “coisas do mundo” se colocam principalmente

em relação a indústria cultural moderna, que pode ir desde as restrições de vestimentas, presente no pentecostalismo clássico, até a negação das diversas maneiras de se compreender a sexualidade e a união familiar, discussões que ganharam espaço político nos últimos anos.

Novaes (1985), Mariano (2014), Scott e Cantarelli (2004) entre outros pesquisadores brasileiros, têm apontado como o moralismo evangélico corresponde a adesão de um estilo de vida que deve ser afastado de vícios – tanto do jogo como de drogas lícitas e ilícitas –, com controle da sexualidade e valorização da família nuclear heteronormativa e, preferencialmente, entre irmãos de fé; o contrário disso pode ser considerado a presença do mal na vida da pessoa. Dessa forma, é na esfera do lazer e da sexualidade que os fiéis mais necessitam se autorregular para se salvarem diante de Deus (MARIANO, 2014):

“Na busca da salvação, portanto, devem resistir às tentações, ser radicais na rejeição do mundo e obedecer aos mandamentos divinos. Devem ser virtuosos, ter autodeterminação e possuir rigidez monástica, para não sucumbirem ao mundanismo e serem arrastados pelo caminho largo dos prazeres da carne e das paixões do mundo” (p.191)

Assim, essa luta contra o mal é uma luta interna ao sujeito, a começar por suas pulsões e desejos, e que pretende interiorizar um determinado princípio (dado por divino) de autorregulação que tenha efeitos duráveis no tempo e ao longo de diferentes esferas da vida social, de modo que o ser evangélico caracteriza uma identidade dos sujeitos.

Em densas pesquisas qualitativas, Matos (2007), Leite (2009), Carly Machado (2014) e Novaes (1985) apontam que em contextos de vulnerabilidade social esse estilo de vida de forte regulação moral adotado pelos evangélicos pode promover melhoras na qualidade de vida, inclusive atribuindo ganhos de reputação: em situações de violência e tráfico, a adesão ao estilo de vida pentecostal aparece como “uma das principais modalidades de afastamento simbólico dos moradores de favelas em relação ao campo da marginalidade e do crime” (LEITE, 2009, p.211). Leite (2009) e Carly Machado (2014), ao analisarem contextos da periferia urbana do Rio de Janeiro e o discurso de violência combatido a partir de valores e rituais religiosos, pontuam como os pentecostais, na crença da transformação do indivíduo por meio da adesão religiosa, tornam-se importantes nesses contextos em que os novos fiéis se afastam dos “erros do passado”. Um outro fator social positivo levantado por Leite (2009) seria a “desvinculação dos “crentes” dos estigmas dirigidos aos favelados em geral” (p.211), sendo mais valorizados social e moralmente entre seus pares, o que fortalecia sua própria autoestima. Dessa forma,

“A conversão religiosa pode ser pensada também como uma alternativa no “campo de possibilidades” dos moradores de favela para enfrentar o contexto de risco, insegurança e isolamento em que vivem. (...) A marca moral positiva emprestada por essa adesão religiosa lhes proporcionaria uma espécie de salvo-conduto nesses locais, permitindo-lhes circular e agir sem se contaminar moralmente” (LEITE, 2009, p.211-212).

Assim, em contextos de vulnerabilidade social esse comportamento valorizado no interior das igrejas pode ser reconhecido como positivo também fora da comunidade religiosa, ao ser concebido como modelo de comportamento no que diz respeito à sexualidade, ao comportamento familiar e aos vícios (NOVAES, 1985, LEITE, 2009). Seriam então, comportamentos religiosos rentáveis em outros contextos. Na escola, é inegável que tais comportamentos também são valorizados.

Sendo essa regulação moral uma característica dos pentecostais, os fiéis e os recém convertidos podem se tornar objeto de vigilância por parte de crentes e não crentes que julgam se os evangélicos estão ou não seguindo a conduta moral esperada. Por essa forte ascese e sua consequente vigilância, as igrejas pentecostais teriam forte influência na subjetividade dos fiéis (MACHADO, 1996; MARIANO, 2004; NOVAES, 1985). A auto exigência de controle moral é a incorporação da exigência da ascese que circula no meio, a qual um fiel cobra do outro esse compromisso promovendo um impulso para o mundo social ascético.

Assim, vemos que a literatura sobre o movimento pentecostal e suas implicações para a vida cotidiana em meios populares aponta para um ganho simbólico dos participantes a partir da socialização religiosa.

Nesse contexto da batalha espiritual contra o mal e do autocontrole moral, a desigualdade social não é percebida como decorrente de problemas estruturais.

“A participação evangélica, por fim, parte da ideia de que a desigualdade e a pobreza decorrem de problemas de ordem individual, e em menor medida da estrutura social. Disso decorre a cobrança desses indivíduos para que sejam disciplinados, ordenados moralmente e estimulados a “subir na vida” pelo esforço pessoal” (ALMEIDA, 2011, p.134).

Assim, de maneira geral, a ascese possui uma ideia de projeção, de ganho futuro, apesar de não ser necessariamente financeiro. Esses pressupostos de prosperidade são mais comuns nas igrejas neopentecostais que pregam a Teologia da Prosperidade, mas não se limitam a elas, como apontado por Mariano (2014) sobre a neopentecostalização de igrejas evangélicas, e

também percebido em igrejas visitadas da presente pesquisa. De maneira geral, há um discurso de responsabilização dos indivíduos que estimula a adesão de um estilo de vida ascético, autorregulado, que parece promover comportamentos rentáveis a outros contextos: pela marca moral positiva (LEITE, 2009) em um contexto mais amplo e/ou em comportamentos específicos que afetam mais diretamente os ambientes por onde os indivíduos circulam, na escola, no trabalho, na família, etc.

É excessivo falar que a educação pressupõe a ascese como estilo de vida ao valorizar determinados comportamentos também religiosos; mas é correto dizer que exige um ordenamento das condutas para os aprendizados escolares, o que pede certa disciplina dos corpos e racionalização a partir da gestão das atividades cotidianas. Além disso, o comportamento ascético que afasta os jovens do tráfico de drogas, dos vícios, da prostituição e da gravidez precoce também é benéfico para as trajetórias escolares. Dessa forma, podemos nos questionar: a ascese religiosa, ao produzir modos de vida que evitam trajetórias negativas, estimulando também uma ordenação dos corpos e pulsões, também seria benéfica a outros contextos sociais, mais especificamente, à escolarização de famílias populares, que tradicionalmente se encontram em desvantagens no espaço escolar? As famílias religiosamente ativas, em contexto de vulnerabilidade social, internalizariam tais valores e comportamentos, tendo também condições de transmitir esses valores e condutas para seus filhos, transformando-os em comportamentos análogos à escolarização?

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