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Regulação social e moralidade

Sem obrigar, ou brigar a respeito, Silvia sempre tentou introduzir as filhas na vida religiosa, levando-as aos cultos para as crianças e jovens quando eram pequenas e mantendo o convite para acompanhá-la nos rituais. Porém, nenhuma das duas é batizada e quase não vão à Congregação Cristã do Brasil; a Natália, a caçula, teria mais interesse que a Jéssica em congregar. A primogênita se declara feminista e traz essa pauta para dentro de casa, discutindo ou questionando o pai, que, segundo Sílvia, não possui flexibilidade de compreensão da doutrina religiosa como ela, que constantemente fala do respeito aos homossexuais e sobre feminismo, algo criticado no interior da denominação em que a mulher assume papel de submissa. Assim, há uma disputa no interior familiar entre a concepção religiosa dos pais e a concepção de mundo das filhas, o que já foi motivo de discussões.

Apesar de não serem ativamente religiosas, Natália e Jéssica nasceram em um lar evangélico e receberam ao longo da educação familiar os valores religiosos prezados pelos pais. Silvia afirma passar sua religiosidade para as filhas não como algo punitivo, educando-as a fazerem o que julga correto sem pressionar para que se salvem perante Deus. “Eu também tento tomar um certo cuidado pra não fazer “Oh, se você fizer isso Deus vai te castigar; se você fizer isso, Deus vai cobrar de você”. Não, eu sei que eu não posso dizer isso, mas eu sei que tem pessoas que falam isso”.

Considerando que a religiosidade é importante para todos os aspectos da sua vida, ordenando sua maneira de ser e pensar o mundo, Silvia acredita que ser religiosa colaborou para educar as filhas no ensinamento de valores e orientando-a no matrimônio, a partir de grupos que aconselham o casal a não discutirem da frente dos filhos e a estarem próximos deles a partir do diálogo. Por outro lado, entende que é preocupação de todos os pais, religiosos ou não, em saber com quem os filhos possuem amizade, qual é a família dos amigos, quais lugares frequentam etc.

Seu principal cuidado para assegurar uma educação que julga adequada para as filhas foi o controle de sociabilidade ao longo da infância e adolescência, permitindo que

brincassem apenas em casa e não na rua como é comum pela Vila Harmonia, evitando que elas tivessem amigos no bairro (há apenas duas irmãs que são amigas da Jéssica e da Natália no território); estratégia facilitada também pelo fato das meninas não estudarem ali.

Silvia também, reforçado por sua formação e trabalho, buscou ter uma relação próxima de suas filhas a partir da conversa e do aconselhamento, permitindo-a a ter muitos conhecimentos sobre a vida privada das filhas e estabelecendo uma relação de confiança. Ela afirma que sempre conversou muito com as filhas, recorrendo ao diálogo para resolver problemas e aconselhando, tentando estabelecer não apenas uma relação de mãe e filhas, mas também entre amigas; o que parece ter sido distinto da sua relação com a própria mãe. Elas conversam sobre diversos assuntos, como flertes, amizades, sexualidade e uso de drogas. Essa relação construída ao longo da educação das meninas faz com que Silvia confie (não sem preocupação) nas suas filhas adolescentes, permitindo que saiam a noite – principalmente a Jéssica que já está na faculdade – e não restringindo as amizades. Silvia sabe que as filhas possuem amigos usuários de drogas, mas não inibe essa relação por fatores que lhe permite, de certa maneira, ter um controle dessa amizade: ela conhece o amigo e a sua família; e confia nas filhas que lhe contam sobre as amizades de maneira geral, acreditando que elas nunca tenham experimentado e que até mesmo podem ajudar o amigo a deixar de ser usuário de drogas.

“A gente tem muita confiança, porque ela chega em mim e fala tudo, ela chega em tal hora. E eu até falo brincando “Você não vai sair, porque enquanto você estiver na minha casa vai ficar embaixo da minha asa” [risos]. Mas eu tento ser flexível, porque eu vejo que se eu ficar muito nesse “vai - não vai”, em vez de tá trazendo ela pra mim eu tô afastando ela, né? Porque eles gostam muito de tá no perigo, né? [risos]”

Sobre a sexualidade, Silvia afirma que ambas as filhas são virgens, algo que seria raro entre as jovens de 17 e 19 anos. Ela conversa com as filhas sobre esse assunto no intuito de aconselha-las a se prevenirem de doenças e de gravidez indesejada; mas confessa que não se sente tão confortável com esse assunto, “Porque né, por mais que a gente seja uma mãe aberta, tem assuntos que a gente se fecha um pouquinho pra falar, né?”. A OSC chegou a organizar uma atividade sobre sexualidade voltada para o público jovem, a qual as filhas da Silvia fizeram parte e que segundo ela, foi muito positivo para educação das filhas e dela mesma enquanto mãe e educadora.

Apesar de em sua narrativa se descrever como uma “mãe aberta”, Silvia busca regular a vida das filhas, mesmo que a partir do diálogo, preocupando-se principalmente com a moralidade delas. Jéssica chegou a passar em 4º lugar no vestibular em Biologia da Faculdade Federal do Mato Grosso, mas não chegou a se matricular por receio dos pais do que poderia acontecer ao estar longe deles, por mais que reconhecessem a qualidade de uma educação superior pública. A primeira justificativa dada por Silvia para impedir a ida da filha foi em relação ao clima, afirmando que Jéssica poderia sofrer com suas alergias de pele em um local muito quente. Em seguida, afirmou seu receio da filha morar em uma república de estudantes30, alegando que uma conhecida da sua irmã foi nessas condições para o Rio de

Janeiro e teria voltado uma “pessoa estranha”, com uma personalidade que não condizia mais com os valores da família, tornando-se moradora de rua posteriormente.

O fato de Jéssica e Natália possuírem um comportamento, até certo ponto, ascético e de terem sucesso escolar – entrada no ensino superior logo após a educação básica – estão intimamente relacionados a toda influência que receberam de serem nascidas no evangelho e de toda as estratégias de investimento escolar e de regulação moral que receberam da mãe: evangélica, pedagoga e bibliotecária na OSC do bairro que lhe proporciona o contato com discussões educacionais e com pessoas com alta escolarização. O fato de Edilson também ser evangélico parece ter sido muito importante para que a estratégia de regulação moral impulsionada pela igreja fosse efetivada na educação das filhas, em que o casal como um todo compartilha a mesma visão de mundo, chegando até mesmo a participar de atividades da igreja para orientação familiar. Porém, Jéssica e Natália não são evangélicas e até mesmo questionam em alguns momentos a doutrina religiosa da Congregação, sugerindo que a efetivação de tal estratégia dependa de outras condições dessa família para que seja efetiva: a posição social que ocupam no bairro; as estratégias de evitação do território; e a relação da Silvia com a educação, a sua formação profissional e o trabalho que exerce.

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