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4. O SISTEMA REGULATÓRIO E PRÁTICO DO INTERCÂMBIO DE INFORMAÇÕES

4.1. A Moldura Regulatória do Intercâmbio de Informações Tributárias no Brasil

4.1.4. O Manual de Troca de Informações com o Exterior da Receita Federal, a Lei de

Em 2008, a RFB, através da Portaria n. 001/08323, organizou um documento interno denominado Manual de Troca de Informações com o Exterior. Conforme explicitado no capítulo introdutório deste estudo, trata-se de instrumento geral e abstrato, pelo qual a administração tributária brasileira norteia as atividades dos agentes fiscais em relação à realização do intercâmbio de informações, abordando os mecanismos e os aspectos formais e técnicos da troca de informações tributárias no Brasil. A referência para a elaboração deste documento foi o Manual on the Implementation of Exchange of Information for Tax Purposes”, da OCDE, elaborado em 2006324

, que estabelece procedimentos standards para a realização da cooperação internacional em matéria de intercâmbio de informações tributárias.

A OCDE relata que:

In April 2008, the RFB issued the “Manual on Exchange of

Information” which establishes the limits, procedures, forms and other

technical information to be observed by the officials concerned with the current EOI organisational process.The Guidelines to be followed to obtain and provide information pursuant to an EOI are largely based on

the 2006 OECD “Manual on the Implementation of Exchange of

322MCINTYRE, Michael J. How to End the Charade of Information Exchange. Tax Notes, November 9,

2009 e COCKFIELD, Arthur − Protecting taxpayer privacy rights under cross-border tax information exchange. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1356841. Acesso em: 1/1/2013. Ver também RUST, Alexander; FORT, Eric. Exchange of Information and Bank Secrecy. Kluwer Law International: Netherlands, 2012.

323Portaria Conjunta ASAIN/COANA/CODAC/COFIS/COPEI n. 1/2008.

324OECD (2013), Global Forum on Transparency and Exchange of Information for Tax Purposes Peer

Information for Tax Purposes” and, in particular, on the modules

concerning general and legal aspects of exchange of information […] This manual sets the general framework for the EOI process and procedures to be followed325.

Diante do percurso narrado na introdução deste estudo e dos obstáculos impostos para o acesso ao Manual de Troca de Informações com o Exterior, algumas reflexões podem ser feitas sobre a importância desse documento, a eficácia da Lei de acesso à informação e a postura da administração tributária brasileira.

Primeiramente, a LAI determina, em seu artigo 30326, que os órgãos públicos devem publicar relatórios anuais com informações a respeito de documentos sigilosos e,

ainda, “manter extrato com a lista de informações classificadas, acompanhadas da data, do grau de sigilo e dos fundamentos da classificação”. O portal de transparência do

Ministério da Fazenda não apresenta nenhum documento de caráter confidencial

classificado pela CORIN327, isto porque o Termo de Solicitação de Classificação (TRC)

do Manual de Troca de Informações com o Exterior só foi apresentado em 5 de julho de 2013, ou seja, a solicitação de sigilo do documento foi efetuada após a realização do pedido de acesso ao documento. Nesse sentido, a decisão proferida pela CGU é um precedente importante, porquanto impede que a administração pública faça classificações

somente quando provocada e estenda o prazo de sigilo de documentos públicos.

Também se observa que o Decreto n. 7.724/2012, que regulamenta a lei de acesso à informação, restringe o sigilo de documentos públicos: (i) às hipóteses de sigilo previstas na legislação, como fiscal, bancário, de operações e serviços no mercado de capitais, comercial, profissional, industrial e segredo de justiça; e (ii) às informações referentes a projetos de pesquisa e desenvolvimento científicos ou tecnológicos, cujo

325Ibidem. p. 113.

326Lei n.º 12.527/2011 − Artigo 30 − A autoridade máxima de cada órgão ou entidade publicará,

anualmente, em sítio à disposição na internet e destinado à veiculação de dados e informações administrativas, nos termos de regulamento:

I − rol das informações que tenham sido desclassificadas nos últimos 12 (doze) meses;

II − rol de documentos classificados em cada grau de sigilo, com identificação para referência futura; III − relatório estatístico contendo a quantidade de pedidos de informação recebidos, atendidos e

indeferidos, bem como informações genéricas sobre os solicitantes.

§ 1o Os órgãos e entidades deverão manter exemplar da publicação prevista no caput para consulta pública em suas sedes.

§ 2o Os órgãos e entidades manterão extrato com a lista de informações classificadas, acompanhadas da data, do grau de sigilo e dos fundamentos da classificação.

327Disponível em:<

http://www.fazenda.gov.br/acessoainformacao/informacoes_classificadas/rol_definitivo_informacoes_class ificadas_27062013.pdf>. Acesso em: 1/7/2013.

sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, na forma do § 1º do art. 7º da Lei nº 12.527, de 2011. Percebe-se, portanto, que as previsões de sigilo são inaplicáveis a um documento abstrato e geral, que estabelece as diretrizes da troca de informações no âmbito da RFB. Ademais, as atividades realizadas pela RFB não dizem respeito a questões de segurança nacional328, tratando-se tão somente de fiscalização administrativa. Daí não se poder estender à autoridade fazendária exceções que só fazem sentido no campo da defesa e segurança do Estado, como, por exemplo, procedimentos militares em casos de ataque ao território nacional.

Outrossim, o artigo 23, VIII, da Lei n. 12.527/2011329 estabelece como passível de

acesso restrito apenas aqueles documentos que possam “comprometer atividades de

inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com

a prevenção ou repressão de infrações”. Verifica-se, assim, que a restrição se aplica a “investigação ou fiscalização em andamento”, ou seja, procedimento específico contra

um ou mais contribuintes/investigados, a fim de proteger até mesmo os direitos individuais de privacidade dos cidadãos afetados, mas jamais às regras, gerais e abstratas, que devem ser aplicadas pela RFB na condução de tais investigações ou fiscalizações.

Ademais, é imperioso que o Estado demonstre que a divulgação de dada informação causaria prejuízo substancial à segurança da sociedade ou do Estado, algo que é insustentável tratando-se de regras gerais e abstratas emitidas pela administração pública e que afetam a todos os administrados. É preciso que o Estado evidencie que o acesso à informação causaria prejuízo à segurança da sociedade ou do Estado. Isto porque os atos denegatórios devem ser consistentemente motivados, pois são exceções ao regime

328 Cf. Regulamento Interno da Receita Federal do Brasil.

329Lei nº 12.527/2011 − Artigo 23 − São consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do

Estado e, portanto, passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam:

I − pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional;

II − prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País, ou as que

tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais;

III − pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população;

IV − oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País; V − prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas;

VI − prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim

como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional;

VII − pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus

familiares;

VIII − comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento,

geral de transparência consagrado pela Constituição e operacionalizado pela LAI330. Nesse sentido, observa-se também que as justificativas da RFB não informam ou comprovam concretamente a ofensa à segurança da sociedade ou do Estado que adviria da publicidade do documento solicitado. A administração tributária limitou-se a invocar a razão de Estado para justificar o sigilo.

A publicidade do Manual de Intercâmbio de Informações com o Exterior não compromete as atividades investigativas ou fiscalizatórias, pois trata-se de documento que orienta a atuação geral dos agentes fiscais. Até mesmo o documento da OCDE que foi utilizado como padrão para a elaboração do documento brasileiro encontra-se

livremente disponível na internet331. Ainda que se admitisse que o documento solicitado

constitui uma norma interna corporis, persistiria o dever de publicidade, uma vez que a obrigação de divulgar os atos administrativos aplica-se a qualquer hierarquia, conforme mandamento constitucional332.

O documento solicitado é instrumento geral e abstrato de orientação e consulta dos servidores e unidades administrativas da RFB, em relação ao intercâmbio de informações com administrações tributárias estrangeiras. A resposta apresentada pela

própria RFB afirma que o manual solicitado “contém normas, procedimentos e formulários aplicáveis à execução” da troca de informações tributárias. Assim, por se

tratar de instrumento pelo qual a administração tributária norteia suas atividades e serviços em relação à troca de informações tributárias com outros Estados, o Manual de Intercâmbio de Informações com o Exterior amolda-se à regra do artigo 7º, V, da LAI:

Art. 7º O acesso à informação de que trata esta Lei compreende, entre outros, os direitos de obter:

V − informação sobre atividades exercidas pelos órgãos e entidades,

inclusive as relativas à sua política, organização e serviços; [...].”

330SANTI, Eurico Marcos Diniz de; ZUGMAN, Daniel Leib; BASTOS, Frederico Silva. Poder Público

viola sistematicamente Lei de Acesso. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-jul-25/orgaos- publicos-utilizam-sigilo-evitar-divulgacao-informacoes>. Acesso em: 10/10/2013.

331

Disponível em< http://www.oecd.org/ctp/exchange-of-tax-information/36647823.pdf>. Acesso em 10/10/2013.

332Constituição Federal de 1988 − Artigo 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos

Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...].

A título de exemplo, o regimento interno da Receita Federal do Brasil também pode ser considerado um documento que orienta as ações, as políticas e a execução de atividades dos servidores e das unidades administrativas da RFB. No entanto, ao contrário do que ocorre com o documento solicitado, o regimento interno da RFB encontra-se publicado no sítio virtual do órgão fazendário333. O mesmo vale, ainda ilustrativamente, para os regimentos internos dos tribunais, todos igualmente acessíveis ao público em geral.

Nos Estados Unidos, o Internal Revenue Service dispõe de documento de mesma natureza que o Manual de Troca de Informações com o Exterior para orientar a ação de seus agentes. No entanto, ao contrário da RFB, o documento da administração tributária americana encontra-se disponibilizado livremente em seu sítio virtual334. A partir dos exemplos, verifica-se que a natureza do documento solicitado não ofende e tampouco causa prejuízos à atividade da administração tributária.

Conhecer as práticas que a administração tributária adota para intercambiar informações com outros Estados não obstaculiza o trabalho de inteligência, investigação e fiscalização contra contribuintes específicos. Sob esse aspecto, observa-se que a publicidade do rito adotado pela RFB para a realização do intercâmbio de informações não viola nenhuma espécie de sigilo fiscal, visto que, em normas gerais e abstratas, não há dados fiscais específicos sobre nenhum contribuinte.

Além disso, a publicidade do Manual de Intercâmbio de Informações com o Exterior garantiria à sociedade controle sobre as atividades administrativas que afetam diretamente garantias e direitos fundamentais assegurados aos contribuintes brasileiros, bem como permitiria aferição do tratamento isonômico que deve ser conferido a esses cidadãos, assegurando, pois, transparência e legitimidade à atuação da administração tributária.

Pressuposto do Estado Democrático é a sujeição do poder público à lei e ao Direito e ao escrutínio do povo. O Estado de Direito está fundado na publicidade das

“regras do jogo”. É, portanto, preocupante o fato de o Brasil assinar diversos acordos

prevendo a cooperação em matéria tributária para troca de informações, mas resguardar

333Disponível em: http://www.receita.fazenda.gov.br/Legislacao/LegisAssunto/reginter.htm

334 Internal Revenue Service − Part 4. Examinig Process – Chapter 60. Internal Procedures – Section 1.

dos cidadãos a procedimentalização dessa cooperação no âmbito doméstico335. Ainda mais quando se tem em conta que o art. 198, § 2º336, do CTN exige que exista procedimento regular para a realização do intercâmbio de informações.

A relevância conferida à publicidade do Manual de Intercâmbio de Informações com o Exterior se deve ao fato de que este documento sigiloso é o unico que procedimentaliza e orienta, em alguma medida, as práticas de intercâmbio de informações realizadas pela RFB. Sendo essa instrumentalização sigilosa, não era possível verificar se administrativamente os direitos e garantias dos contribuintes eram respeitados. Na prática, conforme será apresentado em item próprio, verifica-se que a RFB, de fato, não tem se preocupado com o exercício desses direitos e garantias, haja vista que não prevê a notificação nem a participação do contribuinte no trâmite necessário para a realização da troca de informações337. Ademais, merece destacar que entre as partes do documento

encaminhado pela RFB, restam omitidos os trechos referentes à seção “Garantias e Direitos Processuais dos Contribuintes”338

.

O comportamento da RFB segue na contramão das recomendações da OCDE manifestadas no documento que deu suporte à elaboração do Manual de Intercâmbio de Informações com o Exterior e que sugere a possibilidade de que o contribuinte seja informado e se manifeste em algum momento da atividade fiscalizatória. A ausência de participação do contribuinte combinada com a postura em favor do sigilo é, portanto, uma opção consciente da RFB, em flagrante afronta à Constituição Federal e ao Estado Democrático de Direito.

Embora seja instrumento emanado da RFB em matéria de intercâmbio de informações, os agentes fiscais brasileiros não poderiam utilizar o referido documento para orientar suas atividades, justamente em razão do sigilo imposto ao Manual. Isto

335

Valor Econômico. Informações entre autoridades estrangeiras. 3/9/2013. Heloísa Estellita e Frederico Bastos. Disponível em: <http://www.valor.com.br/legislacao/3256274/informacoes-entre-autoridades- estrangeiras>. Acesso em: 11/10/2013.

336 Código Tributário Nacional − Artigo 198 − Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a

divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades.

§ 2º O intercâmbio de informação sigilosa, no âmbito da Administração Pública, será realizado mediante processo regularmente instaurado, e a entrega será feita pessoalmente à autoridade solicitante, mediante recibo, que formalize a transferência e assegure a preservação do sigilo.

337 OECD (2013), Global Forum on Transparency and Exchange of Information for Tax Purposes Peer

Review: Brazil 2013: Phase 2. p. 83.

338

porque o Manual de Troca de Informações com o Exterior é, na verdade, um ato administrativo e, portanto, necessariamente deve conter os elementos do ato-fato administrativo339: (i) agente público competente, (ii) motivo do ato, (iii) procedimento previsto normativamente e (iv) publicidade. Um ato-norma administrativo é eivado de invalidade quando se evidencia o vício jurídico de qualquer um desses elementos. No caso do Manual da RFB, embora o documento tenha sido disponibilizado por meio da LAI, ainda há vício na publicidade do ato, que o torna inválido, porque não foi submetido ao dever de publicidade inerente aos atos estatais.

Assim, uma portaria da RFB sigilosa e despreocupada em assegurar o respeito aos direitos e garantias dos contribuintes, não pode prevalecer sobre a Constituição Federal, norma hierarquicamente superior e pública, e que assegura a proteção aos direitos e garantias sempre que uma relação jurídica importar afronta a esses bens jurídicos. Além disso, a postura adotada pela administração tributária contraria o sentido da LAI − pois esta estabelece que na esfera pública a transparência de informações é regra e o sigilo é exceção, justificável apenas nas hipóteses de risco à segurança do Estado ou da sociedade

−, invalida o Manual de Troca de Informações com o Exterior e cria obstáculos para o

acesso à informação, estimulando a desconfiança e prejudicando a relação Fisco- contribuinte. Por outro lado, a competência recursal da CGU revelou-se fundamental para que se alcançasse o efetivo acesso à informação e, portanto, se avançasse, em alguma medida, em relação à transparência da administração pública.

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