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Capítulo 2 Primeiros momentos da trajetória de Goiás: início como um SPR de altos

2.3 Transformações na agricultura brasileira e a retrocesso de Goiás ao SPR restritivo

2.3.1 O complexo econômico cafeeiro e a formação do capital humano

As mudanças mais significativas na agricultura brasileira ocorreram na segunda metade do século XIX, motivadas pelo poder político e econômico que o setor adquiriu. Na

28 Segundo Boaventura (2007, p. 65), “Goiás, ao final da primeira metade do século XVIII, possuía uma vila, mais

esfera política, colaborou a ausência de atividades que diversificassem a produção local, o que fez com que a classe agrícola surgisse como a única de maior expressão (FURTADO, 2007b, p. 144) e peso nas decisões do Estado. Na esfera econômica, destacou-se o potencial atingido pelo café ao se transformar na principal atividade exportadora do país, permitindo a crescente geração de superávits na balança comercial e um alto ritmo de acumulação de capital (PRADO JÚNIOR, 2008, p. 168; CANO, 1983, p. 7).

O crescimento da produção cafeeira foi responsável por criar “um sólido núcleo de estabilidade na região central mais próxima da capital do país, a qual passa a constituir verdadeiro centro de resistência contra as forças de desagregação que atuam no norte e no sul” (FURTADO, 2007b, p. 147). Nessa parte do país, mais especificamente, em São Paulo, a internalização das relações capitalistas e, desse modo, a expansão baseada no trabalho assalariado permitiram o crescimento e a diversificação na esfera produtiva, opondo-se às demais regiões, onde permanecia um regime escravista (CANO, 1983, p. 18-19). A criação da mão de obra assalariada, em conjunto com o novo fluxo de imigrantes europeus, ocasionou uma massa de salários no mercado interno e mudou os hábitos de consumo do país (FURTADO, 2007b, p. 220; MAMIGONIAN, 2004, p. 19).

Assim, diferentemente do ciclo anterior – a produção de ouro, que se organizou a partir de uma alta especialização na atividade principal –, a cafeicultura paulista favoreceu uma economia dinâmica e uma série de complementos ao meio local. Esse processo, como demonstra Cano (1983, p, 20), é responsável pela formação de um complexo econômico29 cafeeiro em São Paulo. Para efeitos de análise, separamos a dinâmica espacial desse complexo em dois componentes: aqueles que ficaram limitados à capital paulista e aos principais núcleos do interior e as partes que se estenderam para além das fronteiras do Estado.

O primeiro caso inclui a atividade produtora de equipamentos e beneficiamento de café, assim como ramos industriais voltados para o mercado consumidor, em especial a produção têxtil; o sistema bancário; o avanço da infraestrutura urbana (CANO, 1983, p. 21); e o mais importante para nossa tese: os centros de pesquisa e ensino relacionados à agricultura, que marcam a gênese de alguns dos segmentos do primeiro nível do SAG da cana-de-açúcar.

Os centros de pesquisa foram essenciais à produção cafeeira, na medida em que, como demonstram Albuquerque, Ortega e Reydon (1986, p. 84), se descobria que

29 Cano (1983, p. 17) define complexo econômico como um conjunto de atividades integradas que compõem e

atuam no processo de crescimento econômico. Esse complexo forma-se a partir de uma atividade principal e predominante.

era necessário não só explorar a região a fim de conhecer seus solos, suas reservas botânicas, seus recursos minerais, mas também iniciar estudos práticos e científicos tanto sobre a principal cultura, que se expandia rapidamente, como sobre outras culturas que se mostrassem viáveis nas diversas localidades da região.

Uma das primeiras medidas no sentido de gerar conhecimento para a agricultura ocorre no final do Império, no ano de 1886, quando se criou a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (CCGSP)30 no intuito de atender à necessidade, já iminente, de se ter um levantamento dos solos mais férteis para o cultivo do café, assim como dos elementos topográficos e geográficos da região (FIGUEIRÔA, 2008, p. 775-776).

Entretanto, somente com a proclamação da República, em 1889, e o gradual aumento de uma mão de obra assalariada é que se inicia um ambiente mais favorável para o progresso científico. Como demonstram Gonçalves e Resende (1993, p. 8), “no terreno econômico a República rompe com o conservadorismo que o Império mantinha, com a eclosão de um espírito que, se não era novo, se mantinha na penumbra: a ânsia de enriquecimento e de propriedade material”. Em conjunto, foi central o fato de a classe empresarial, vinculada ao café, ter compreendido “desde cedo a enorme importância que podia ter o Governo como instrumento de ação econômica” (GONÇALVES; RESENDE, 1993, p. 8) e que, além de ser “importante acompanhar o avanço tecnológico de outras nações, era preciso ter pessoal nacional, habilitado à altura da envergadura desse projeto” (GONÇALVES; RESENDE, 1993, p. 9).

Nessas condições, formaram-se, em São Paulo, instituições relacionadas ao ensino e à pesquisa na área agrícola. Um dos passos mais significativos nessa direção foi dado com a atuação do Instituto Agronômico, hoje IAC. Embora sua fundação date de 1887, somente a partir de 1892 o instituto passou a imprimir uma ação mais próxima do setor produtivo (GONÇALVES; RESENDE, 1993, p. 9). Na época, o Instituto Agronômico contribuiu com “estudos sobre economia rural, composição química e adubação do cafeeiro, composição química das gramíneas forrageiras, adubação da cana-de-açúcar, conservação do esterco de curral, controle da saúva e secamento do café” (RODRIGUES, 1987, p. 34). Desde então, empenhava-se em dialogar com os agricultores para informar os resultados de pesquisas e prestar serviços diversos relacionados a análise de terras, adubação, sementes, épocas de

30 É certo que, em 1808, um ano após a chegada da Família Real à colônia, foi inaugurado o Jardim Botânico no

Rio de Janeiro, que, segundo Rodrigues (1987, p. 24), constituiu “o primeiro marco institucional de pesquisa agrícola no Brasil”. Essa medida permitiu iniciarmos os estudos sobre o campo agronômico nas áreas de ciência e agrotécnica (RODRIGUES, 1987, p. 24), porém, “do ponto de vista tecnológico, qual seja de procurar através da investigação científica superar obstáculos que se antepunham ao avanço da agricultura, o Jardim Botânico do Rio de Janeiro não desempenhou papel relevante, a não ser na introdução de espécies cultivadas em outras partes do mundo” (GONÇALVES; RESENDE, 1993, p. 4).

plantio, sistemas de preparação do solo e métodos de cultivo, por exemplo (ALBUQUERQUE; ORTEGA; REYDON, 1986, p. 86; RODRIGUES, 1987, p. 34).

O Instituto Agronômico passaria por uma importante reestruturação na segunda metade da década de 1920 que, segundo Gonçalves e Resende (1993, p. 12), deu

início a uma das mais bem sucedidas iniciativas públicas para a agricultura em todos os tempos. O Brasil foi o segundo país do mundo a produzir seu próprio híbrido de milho e essa ação expandiu-se para o café, o arroz e a cana-de-açúcar, abrangendo as principais culturas econômicas da agricultura paulista.

Pierre Monbeig foi um dos primeiros a observar a importância do conhecimento científico – mais especificamente daquele desenvolvido pelo IAC – na agricultura paulista. Com base no algodão, o autor aponta que as pesquisas para melhorar a qualidade da fibra fizeram com que, em 1934, 99% da produção medisse entre 26 mm e 28 mm, ao passo que, dez anos antes, “23% mediam 22 mm, 46% de 22 a 24 e 11% de 24 a 26” (MONBEIG, 1984, p. 292). Demonstra-se, assim, “um extraordinário exemplo do que a ciência pode levar à agricultura dos países novos e, ao mesmo tempo, ilustra uma maneira brilhante como um esforço educativo, apoiado em uma boa organização técnica, é capaz de fazer” (MONBEIG, 1984, p. 292).

Juntamente com a pesquisa, o desenvolvimento da área de ensino foi central para a qualificação da mão de obra. Nesse caso, destacou-se a Escola Agrícola Prática de Piracicaba, a atual Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (ESALQ), fundada em 1901. Dada a escassez e a precariedade das demais instituições de ensino, a ESALQ, já em 1905, torna-se o local com maior número de agrônomos formados no país (CAPDEVILLE, 1991, p. 231-232). Desde então, sua importância aumenta ainda mais, sendo responsável por 45,5% da formação desses profissionais entre 1905 e 192031 (CAPDEVILLE, 1991, p. 232).

É certo que, se, em São Paulo, a agricultura se inseriu no comércio internacional e criou um SPR com maior grau que criava raízes locais e vínculos com atividades complementares, o mesmo fenômeno não se repetiu em Goiás. Mas, conforme dissemos anteriormente, parte dos componentes que coordenavam o complexo econômico cafeeiro se estendia para fora dos limites de São Paulo, incluindo-se a atividade produtora de alimentos e o sistema de ferrovias. A criação desse elo com a economia paulista, ainda que de forma modesta, permitiu a Goiás iniciar uma recuperação da crise que se alastrava desde o fim da mineração.

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