• Nenhum resultado encontrado

I. Introdução I Objectivos

1. Enquadramento jurídico e considerações gerais

1.2. O exercício da acção penal e o princípio da legalidade na promoção processual

No Estado de Direito Democrático Português é pacífico o entendimento de que a realização da justiça não estaria completa se ao lado dos juízes independentes e imparciais não existisse uma Magistratura autónoma capaz de dirigir a acção penal11. Para além da legalidade democrática, é neste domínio que a

autonomia do Ministério Público, enquanto órgão estadual responsável pela acção penal, reclama maior importância12.

Com efeito, a autonomia do Ministério Público no âmbito da acção penal é um elemento fulcral para que seja possível garantir, de forma isenta e objectiva a igualdade no tratamento de todos os cidadãos perante a lei, de acordo com o comando do artigo 13.º da CRP e a própria independência dos tribunais, contribuindo para que estes exerçam, com independência, as funções que lhe estão subjacentes. Não basta um juiz independente para que a justiça também o seja, esta não o será se o Ministério Público, o órgão que tem o poder, em matéria penal, de pôr em movimento a Justiça, promovendo-a, não o for. É justamente pelo facto de serem os Magistrados do Ministério Público quem garante a igualdade dos cidadãos perante a lei que eles devem poder exercer as suas funções de forma autónoma relativamente

10 CLUNY, António, “Pensar o Ministério Público Hoje”, cit., págs. 60 e 63.

11 Numa fórmula sintética mas sugestiva para caracterizar estas duas magistraturas, bem pode dizer-se que, enquanto o Ministério Público constitui a magistratura «de pé», os juízes integram antes a magistratura «sentada», ou seja, e por outras palavras, enquanto os juízes aplicam a lei, o Ministério Público promove, além do mais, a sua aplicação em nome do Estado (cf. H. Capitant, Vocabulaire Juridique, 1936, pág. 320).

12 Germano Marques da Silva elucida que o conceito de acção penal não é unívoco, pois umas vezes equivale a processo em sentido amplo, outras vezes equivale a promoção da actividade judicial no processo em sentido restrito e, em sentido ainda mais restrito, pode corresponder à mera prossecução da actividade processual. Cfr. SILVA, Germano Marques da – Curso de Processo Penal Volume I, pág. 256. O artigo 1.º do Código de Processo Penal de 1929 compreendia no conceito de acção penal “toda a actividade dirigida a obter a punição do réu; compreendendo nessa actividade a de todas as pessoas que, cada uma na sua esfera de acção, cooperam para se obter aquele fim”. A acção penal considera-se proposta, intentada ou pendente, logo que seja recebido, pela autoridade competente, o auto de notícia ou a denúncia, artigos 48.º a 50.º, 85.º e 241.º e seguintes do Código de Processo Penal.

ao poder político. Pouco releva a garantia da independência dos juízes se o poder executivo, através do controlo do Ministério Público, tiver a possibilidade de, na prática, coartar a investigação.

A decisão sobre o exercício da acção penal, competência funcional exclusiva do Ministério Público, desenvolve-se em três corolários: a abertura do inquérito (aquisição da notícia do crime por iniciativa própria, ou por comunicação obrigatória e aprecia o seguimento a dar-lhes); a realização de actos de investigação (por mote próprio ou delegação dos OPC) e impulsionar a intervenção do Juiz de Instrução Criminal. Actividade pautada por uma discricionariedade vinculada, em obediência ao princípio da legalidade, o qual encontra-se, igualmente, presente na promoção processual. Como refere Anabela Rodrigues, o princípio da legalidade constitui o ponto de partida da modelação do sistema por se encarar a opção entre o princípio da legalidade e o da oportunidade como tópicos privilegiados para caracterizar o modelo processual em vigor13. Na verdade, quando se fala em princípio da legalidade,

normalmente tem-se em vista um sentido específico, algo diferente da ideia geral segundo a qual os órgãos de soberania em geral, e em particular os que aplicam a justiça, estão sujeitos à lei.

O princípio da legalidade é, neste domínio concreto, composto por dois deveres específicos: sempre que tenha notícia do crime, o Ministério Público está constitucional e estatutariamente incumbido de proceder à abertura de inquérito, ou seja, é o Ministério Público a entidade judiciária com legitimidade para promover o respectivo processo, mesmo quando a instauração deste esteja condicionada a prévia queixa ou acusação particular, artigo 48.º a 50.º e 262.º, n.º 2, do CPP, ou noutros moldes, se não há

crime nem deve ser aberto inquérito – cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 17.12.2008, Relator Carlos

Almeida14; e por outro, pela indispensável e inderrogável dedução acusação caso, no decurso do

inquérito, tenham sido reunidos indícios suficientes sobre a prática de crime e de quem foi o seu agente, artigos 262.º, n.º 2, 281.º, 283.º, n.º 1, e 392.º e seguintes todos do CPP.

Há, desta feita, uma inegável e atomística unidade, onde a dedução de acusação dita o encerramento do inquérito enquanto fase investigatória votada à formulação de um juízo objectivo corporizado na decisão de acusar. Competências funcionais que Pedro Caeiro15, de um modo expressivo, designa

respectivamente, por dever de investigar e dever de acusar16. Cuidar-se-á especial atenção ao primeiro,

sem intenção de esgotante apreciação, atento o objecto do presente trabalho.

13 RODRIGUES, Anabela Miranda, “O inquérito no novo Código de Processo Penal”, Jornadas de Direito Processual Penal – O novo código de processo penal, cit., pág. 74.

14Domínio não pacífico, na verdade, há quem defenda (Caso de Saragoça da Mata, “Old Ways and New needs? Ou “New Ways and Old Needs?” Uma perspectiva das reformas necessárias ao Processo Penal Português, texto publicado na Revista do Ministério Público, n.º 122, pág. 9 e seguintes) que “ todo e qualquer expediente que seja desencadeado pelo Ministério Público ou que lhe seja transmitido, nos termos e modos previstos no Código de Processo Penal, seja objecto de registo e classificação como inquérito, mesmo que seja para um imediato arquivamento, v.g. por inviabilidade manifesta”, e continua o mesmo autor, “ são os próprios princípios constitucionais que impõem que se altere tal modus agendi de lavrar despachos de irrelevância criminal fora do âmbito de um processo penal”.

15 In “Legalidade e Oportunidade”, RMP, n.º 84, 2000, pág. 31 e seguintes.

16 Porém, em qualquer uma das vertentes, são previstas limitações. Quanto à primeira acepção, esses limites são os relativos aos crimes particulares em sentido amplo; quanto à segunda acepção, respeitam aos institutos do arquivamento em caso de dispensa de pena do artigo 280.º e da suspensão provisória do processo do artigo 281.º do Código de Processo Penal.

Outline

Documentos relacionados