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PENSANDO SOBRE O PENSAMENTO

No documento Superprevisoes - Dan Gardner.pdf (páginas 30-35)

Nada m ais natural do que identificar nosso pensam ento com as ideias, im agens, planos e sentim entos que fluem pela consciência. O que m ais poderia ser? Se eu pergunto: “Por que você com prou aquele carro?”, você pode alegar um a porção de m otivos: “Baixa quilom etragem . Modelo bonito. Ótim o preço”. Mas pode partilhar pensam entos apenas por m eio da introspecção; ou sej a, voltando sua atenção para dentro e exam inando o que se passa em sua cabeça. E a introspecção pode captar apenas um a m inúscula fração dos processos com plexos que se desenrolam em sua m ente — e que estão por trás de suas decisões.

Ao descrever com o pensam os e decidim os, os psicólogos m odernos m uitas vezes se valem de um m odelo de sistem a dual que divide nosso universo m ental em dois dom ínios. O Sistem a 2 é o reino fam iliar do pensam ento consciente. Consiste de tudo em que decidim os nos focar. Por outro lado, o Sistem a 1 é em grande parte um estranho para nós. É o reino da percepção autom ática e das operações cognitivas — com o o que você põe em funcionam ento neste exato m om ento para transform ar a im pressão desta página em um a sentença dotada de significado ou para segurar o livro enquanto estica o braço para pegar um copo d’água e tom ar um gole. Não tem os consciência

desses processos de gatilho rápido, m as não poderíam os funcionar sem eles. Seríam os desligados.

A num eração dos dois sistem as não é arbitrária. O Sistem a 1 vem prim eiro. Ele é rápido e está constantem ente operando em segundo plano. Se um a pergunta é feita e você sabe a resposta instantaneam ente, ela é disparada pelo Sistem a 1. O Sistem a 2 fica encarregado de interrogar essa pergunta. Ela se presta ao escrutínio? É apoiada pela evidência? O processo exige tem po e esforço, e é por isso que a rotina-padrão na tom ada de decisões é a seguinte: prim eiro, o Sistem a 1 fornece um a resposta, e só então o Sistem a 2 pode se envolver, com eçando por um exam e do que o Sistem a 1 decidiu.

Se o Sistem a 2 vai mesmo se envolver são outros quinhentos. Tente responder isto: “Um bastão e um a bola de beisebol custam j untos 1,10 dólar. O bastão custa um dólar a m ais do que a bola. Quanto custa a bola?”. Se você é com o praticam ente todo m undo que um dia j á respondeu essa fam osa pergunta, instantaneam ente lhe veio um a resposta: “Dez centavos”. Não pensou com cuidado para chegar a ela. Não fez cálculo algum . A resposta sim plesm ente apareceu. Isso é atribuído ao Sistem a 1. Rápido e fácil, nenhum esforço exigido.

Mas “dez centavos” está correto? Pense na pergunta com cuidado. Você provavelm ente percebeu duas coisas. Prim eiro, o pensam ento consciente é exigente. Refletir sobre o problem a exige foco contínuo e leva um a eternidade, em com paração com o j ulgam ento num estalo que lhe vem após um a rápida olhada. Segundo, “dez centavos” está errado. Parece certo. Mas não é. Na verdade, é um erro óbvio — se você reconsidera o problem a com sobriedade.

A pergunta do bastão e da bola é um dos itens de um a engenhosa m edição psicológica, o Teste de Reflexão Cognitiva, que dem onstrou que a m aioria das pessoas — inclusive gente m uito inteligente — não se entrega a grandes reflexões. Elas leem a pergunta, pensam “dez centavos” e escrevem “dez centavos” com o sua resposta final sem considerar com cuidado. Assim , nunca descobrem seu erro, m uito m enos chegam à resposta correta (cinco centavos). Esse é um com portam ento hum ano norm al. Tendem os a nos guiar por fortes palpites. O Sistem a 1 segue um a psico-lógica prim itiva: se parece verdade, é.

No m undo paleolítico em que nossos cérebros evoluíram , esse não é um m odo ruim de tom ar decisões. Recolher toda a evidência e rum inar a respeito talvez sej a a m elhor m aneira de obter respostas precisas, m as um caçador- coletor que consulta estatísticas sobre leões antes de decidir se deve ou não se preocupar com a som bra m ovendo-se na savana tem pouca probabilidade de viver por tem po suficiente para legar seus genes m axim izadores de precisão à geração seguinte. Julgam entos num estalo às vezes são essenciais. Com o afirm a Daniel Kahnem an: “O Sistem a 1 é proj etado para tirar conclusões precipitadas com base em um a evidência m ínim a”.13

Então, e quanto àquela som bra atrás do capim alto? Será que devem os nos preocupar? Bem , você consegue se lem brar de um leão em ergindo do capim e dando o bote em alguém ? Se essa m em ória lhe vem facilm ente — não é o tipo de coisa que as pessoas tendem a esquecer —, você vai concluir que ataques de leões são com uns. E depois ficar preocupado. A descrição desse processo faz com que pareça desaj eitado, lento e calculista, m as ele pode ocorrer inteiram ente dentro do Sistem a 1 — sendo realizado de form a autom ática, rápida e com pleta em alguns décim os de segundo. Você vê a som bra. Pim ba! Leva um susto — e sai correndo. Essa é a “heurística de disponibilidade”, um a das m uitas operações — ou heurísticas — do Sistem a 1 descobertas por Daniel Kahnem an, seu colaborador Am os Tversky e outros pesquisadores na florescente ciência do j uízo e da escolha.

Um a característica definidora do j uízo intuitivo é sua insensibilidade quanto à qualidade da evidência sobre a qual o j uízo se baseia. Precisa ser dessa form a. O Sistem a 1 só pode realizar seu trabalho de fornecer conclusões robustas à velocidade da luz se nunca parar para se perguntar se a evidência disponível tem falhas ou é inadequada, ou se há um a evidência m elhor em algum outro lugar. Ele deve tratar a evidência disponível com o confiável e suficiente. Esses pressupostos tácitos são tão vitais para o Sistem a 1 que Kahnem an os batizou com um rótulo deselegante m as estranham ente m em orável: WYSIATI (What You See Is All There Is, ou “O que você vê é tudo que há”).14

Claro, o Sistem a 1 não pode concluir o que bem entender. O cérebro hum ano exige ordem . O m undo deve fazer sentido, o que significa que devem os ser capazes de explicar o que estam os vendo e pensando. E em geral conseguim os fazer isso — porque som os confabuladores criativos proj etados para inventar histórias que im ponham coerência ao m undo.

Im agine que você está sentado a um a m esa em um laboratório de pesquisa, olhando um a série de fotos. Você escolhe um a, a foto de um a pá. Por que está apontando para ela? Claro que você não pode responder sem dispor de m ais inform ação. Mas se estivesse de fato nessa m esa, com o dedo apontando para a foto de um a pá, sim plesm ente dizer “Não sei” seria bem m ais difícil do que à prim eira vista pode parecer. É de se esperar que pessoas sãs tenham m otivos aparentem ente sensatos para suas ações. É em baraçoso dizer aos outros, sobretudo neurocientistas vestindo um j aleco branco: “Não faço a m enor ideia — estou apontando, só isso”.

Num a pesquisa célebre, Michael Gazzaniga proj etou um a situação bizarra em que pessoas sãs de fato não fizessem a m enor ideia do m otivo por que estavam fazendo o que estavam fazendo. Os participantes de seu experim ento eram pacientes com “cérebro dividido”, ou sej a, os hem isférios cerebrais esquerdo e direito não podiam se com unicar um com o outro porque a ligação entre eles, o corpo caloso, fora cirurgicam ente seccionada (um tratam ento

tradicional para epilepsia grave). Essas pessoas são notavelm ente norm ais, m as sua condição perm ite aos pesquisadores acessar diretam ente apenas um de seus hem isférios cerebrais — m ostrando um a im agem apenas ao cam po de visão esquerdo ou direito — sem que a inform ação sej a com unicada ao outro hem isfério. É com o conversar com duas pessoas diferentes. Nesse caso, era exibido ao cam po de visão esquerdo (que envia a inform ação ao hem isfério direito) a foto de um a nevasca, e pediam à pessoa que apontasse a foto relacionada a ela. Assim , bastante razoavelm ente, a pá era apontada. Ao cam po de visão direito (que m anda a inform ação para o hem isfério esquerdo) era exibida a im agem de um pé de galinha — e então perguntavam à pessoa por que sua m ão estava apontando para um a pá. O hem isfério esquerdo não fazia a m enor ideia. Mas a pessoa não dizia “Não sei”. Em vez disso, elaborava um a história: “Ah, m uito sim ples”, disse um paciente. “O pé da galinha pertence à galinha e a gente precisa de um a pá para lim par o galinheiro.”15

Essa com pulsão por explicar aparece com a regularidade de um relógio toda vez que a bolsa é encerrada e um j ornalista diz algo com o “O índice Dow Jones subiu 95 pontos hoj e com a notícia de que...”. Um a rápida conferida m uitas vezes vai revelar que a notícia que supostam ente im pulsionou o m ercado de ações surgiu bem depois de o m ercado ter subido. Mas esse nível m ínim o de escrutínio dificilm ente é exercido. É um dia raro quando o j ornalista diz: “O m ercado subiu hoj e por algum a dentre um a centena de razões diferentes, ou por um a com binação delas, então ninguém sabe”. Em vez disso, com o um paciente com o cérebro dividido explicando por que apontou para a foto de um a pá quando não faz a m enor ideia do m otivo, o j ornalista elabora um a história plausível com o que tem à m ão.

O im pulso para fornecer explicações costum a ser algo bom . De fato, é a força propulsora por trás de todos os esforços hum anos para com preender a realidade. O problem a é que passam os rápido dem ais da confusão e incerteza (“Não faço a m enor ideia de por que m inha m ão está apontando a foto de um a pá”) para um a conclusão clara e confiante (“Ah, é sim ples”) sem gastar tem po algum entre um a coisa e outra (“Essa é um a explicação possível, m as há outras”).

Em 2011, quando um enorm e carro-bom ba m atou oito pessoas e feriu m ais de duzentas em Oslo, capital da Noruega, a prim eira reação foi de choque. Ali era Oslo, um a das cidades m ais prósperas e pacíficas do planeta. A especulação tom ou conta da internet e dos noticiários. Tinha de ser coisa do islam ism o radical. Era um carro-bom ba planej ado para m atar o m aior núm ero possível. E fora estacionado diante do prédio de escritórios onde trabalhava o prim eiro-m inistro. Só podia ser coisa de terroristas islâm icos. Com o nos atentados de Londres, Madri e Bali. Com o no Onze de Setem bro. As pessoas correram ao Google para ver se conseguiam encontrar algum a inform ação que apoiasse isso.

E conseguiram : a Noruega tinha soldados no Afeganistão com o parte de um a m issão da Otan; a Noruega tinha um a com unidade m uçulm ana pobrem ente integrada; um pregador m uçulm ano radical fora acusado de incitam ento um a sem ana antes. Então surgiu a notícia de que um crim e ainda m ais bárbaro fora com etido não m uito depois do atentado. Um tiroteio em m assa — dezenas de m ortos — em um acam pam ento de verão para j ovens adm inistrado pelo Partido Trabalhista. Tudo se encaixava. Esses eram ataques coordenados por terroristas islâm icos. Não havia dúvida disso. Se os terroristas eram locais ou ligados à Al- Qaeda, ainda estava por verificar, m as era óbvio que os crim inosos tinham de ser extrem istas m uçulm anos.

Com o se descobriria, houve um único perpetrador. Seu nom e é Anders Breivik. Ele não é m uçulm ano. Ele odeia m uçulm anos. Os ataques de Breivik foram dirigidos a um governo que no seu entender traiu a Noruega com suas políticas m ulticulturais. Após a prisão de Breivik, m uita gente acusou os j uízos apressados de islam ofobia, e não sem razão, um a vez que alguns pareceram bastante ansiosos em pôr a culpa nos m uçulm anos com o um todo. Mas dados os poucos fatos conhecidos na época, e o histórico de atrocidades terroristas em m assa na década precedente, era razoável suspeitar de terroristas islâm icos. Um cientista descreveria isso com o um a “hipótese plausível”. Mas um cientista teria lidado com essa hipótese plausível de form a bem diferente.

Com o todo m undo, cientistas têm intuições. Na verdade, palpites e lam pej os de insights — a sensação de que algum a coisa é verdadeira m esm o que você não possa prová-la — estão por trás de incontáveis descobertas. A interação entre o Sistem a 1 e o Sistem a 2 pode ser sutil e criativa. Mas os cientistas são treinados para ser cautelosos. Eles sabem que, por m ais tentador que sej a apontar um a hipótese favorita com o a expressão da Verdade Absoluta, explicações alternativas devem ser ouvidas. E precisam considerar seriam ente a possibilidade de que seu palpite inicial estej a errado. Na verdade, para a ciência, a m elhor evidência de que um a hipótese é verdadeira m uitas vezes é um experim ento destinado a provar que ela é falsa, m as que não consegue fazê-lo. Os cientistas devem ser capazes de responder a pergunta: “O que m e convenceria de que estou errado?”. Se não conseguem fazer isso, é sinal de que se afeiçoaram dem ais a suas crenças.

A chave é duvidar. Um cientista pode ficar tão convicto quanto qualquer um de estar de posse da verdade com V m aiúsculo. Mas sabe que deve deixar essa sensação de lado e substituí-la por graus de dúvida precisam ente m ensurados — dúvida que pode ser reduzida (em bora nunca a zero) por m elhores evidências derivadas de m elhores estudos.

Essa cautela científica vai contra o caráter da natureza hum ana. Com o a especulação pós-Oslo revela, nossa inclinação natural é agarrar a prim eira explicação plausível e de bom grado reunir a evidência de em basam ento sem

verificar sua confiabilidade. Isso é o que os psicólogos cham am de viés de confirm ação. Raram ente procuram os um a evidência que contradiga nossa explicação inicial, e quando essa evidência é esfregada em nossa cara, nos tornam os céticos m otivados — encontrar m otivos, por m ais débeis que sej am , para m enosprezá-la ou descartá-la inteiram ente.16 Lem bre-se da sublim e confiança de Galeno de que seu m aravilhoso tratam ento curava tudo, m enos os “casos incuráveis” que m orriam . Isso era puro viés de confirm ação: “Se o paciente está curado, é evidência de que m eu tratam ento funciona; se o paciente m orre, não significa nada”.

Essa é um a m aneira pobre de construir um m odelo m ental preciso de um m undo com plicado, m as um m odo soberbo de satisfazer o desej o por ordem do cérebro, porque fornece explicações ordenadas sem pontas soltas. Tudo é claro, consistente e estabelecido. E o fato de que “tudo se encaixa” nos dá a confiança de estar de posse da verdade. “É sábio levar a sério as adm issões de incerteza”, observa Daniel Kahnem an, “m as as declarações de confiança elevada inform am acim a de tudo que um indivíduo construiu um a história coerente em sua m ente, não necessariam ente que essa história sej a verdadeira.”17

No documento Superprevisoes - Dan Gardner.pdf (páginas 30-35)