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PISCANDO E PENSANDO

No documento Superprevisoes - Dan Gardner.pdf (páginas 37-43)

Por m ais im perfeita que possa ser a visão da ponta de seu nariz, você não deve descartá-la inteiram ente.

Livros de divulgação m uitas vezes traçam um a dicotom ia entre intuição e análise — “piscar” versus “pensar” — e escolhem um a ou outra com o o m odo a se proceder. Estou m ais para alguém que pensa do que para alguém que pisca, m as piscar-pensar é m ais um a falsa dicotom ia. A escolha não é um -ou-outro, m as com o com biná-los em situações em plena evolução. Essa conclusão não é tão inspiradora quanto um a sim ples exortação a escolher um cam inho em detrim ento de outro, m as tem a vantagem de ser verdadeira, com o os pesquisadores pioneiros por trás de am bas as perspectivas vieram a com preender.

Enquanto Daniel Kahnem an e Am os Tversky docum entavam as falhas do Sistem a 1, outro psicólogo, Gary Klein, exam inava a tom ada de decisão entre profissionais com o com andantes de corpos de bom beiros e descobria que conclusões rápidas podem funcionar surpreendentem ente bem . Um com andante contou a Klein sobre ter ido a um incêndio de cozinha rotineiro e ordenado a seus hom ens para ficar na sala e debelar as cham as com a m angueira. O incêndio cedeu inicialm ente, m as depois voltou a arder com força. O com andante ficou perplexo. Tam bém percebeu que a sala estava surpreendentem ente quente, considerando a proporção do incêndio na cozinha. E por que fazia tanto silêncio? Um incêndio capaz de gerar tam anho calor devia produzir m ais ruído. Um a vaga sensação de incôm odo dom inou o com andante e ele ordenou a todos que deixassem a casa. Assim que os bom beiros chegaram à rua, o piso da sala desabou — porque a verdadeira origem do incêndio era o porão, não a cozinha. Com o foi possível o com andante saber do terrível perigo que corriam ? Ele disse a Klein que tinha percepção extrassensorial, m as isso era apenas um a historinha que contava a si m esm o para encobrir o fato de que não tinha explicação para o fato de saber. Ele sim plesm ente soube — a m arca registrada de um j uízo intuitivo.

Extraindo conclusões aparentem ente tão diferentes de j ulgam entos num estalo, Kahnem an e Klein poderiam ter se entrincheirado em suas posições e travado um a batalha de argum entos. Mas, com o bons cientistas, uniram -se para resolver o quebra-cabeça. “Concordam os com a m aior parte das questões m ais im portantes”, concluíram , em um artigo de 2009.19

bom beiros. É um reconhecim ento-padrão. Com treinam ento ou experiência, as pessoas podem codificar padrões nas profundezas de suas m em órias em um a vasta quantidade e com detalhes intricados — com o as cerca de 50 a 100 m il j ogadas que os m estres enxadristas têm em seu repertório.20 Se algo não se encaixa em um padrão — com o um incêndio de cozinha em itindo m ais calor do que um incêndio desse tipo deveria em itir —, um especialista com petente percebe de im ediato. Mas com o vem os toda vez que alguém enxerga a Virgem Maria num a torrada queim ada ou no bolor da parede da igrej a, nossa capacidade de reconhecer padrões vem ao custo da suscetibilidade a falsos positivos. Isso, além dos m uitos outros m odos pelos quais a perspectiva ponta-do-seu-nariz pode gerar percepções claras, convincentes e erradas, significa que a intuição pode fracassar tão espetacularm ente quanto funcionar.

O fato de a intuição gerar ilusão ou insight depende de você trabalhar em um m undo cheio de indícios válidos que pode inconscientem ente registrar para futuro uso. “Por exem plo, é bem provável que haj a indicativos iniciais de que um prédio está prestes a desabar em um incêndio ou que um a criança em breve vai apresentar sintom as óbvios de infecção”, escreveram Kahnem an e Klein. “Por outro lado, é im provável que haj a inform ação disponível ao público em geral que possa ser útil para prever até que ponto determ inada ação pode ir bem na bolsa — se um a inform ação válida com o essa existisse, o preço da ação j á refletiria esse fato. Assim , tem os m ais m otivos para confiar na intuição de um calej ado com andante do com bate ao fogo sobre a estabilidade de um edifício ou na intuição da enferm eira sobre um a criança do que tem os para confiar na de um corretor da bolsa.”21 Mas outros padrões são m uito m ais difíceis de dom inar, com o as cerca de 10 m il horas de prática exigidas para aprender aquelas 50 a 100 m il j ogadas de xadrez. “Sem essas oportunidades de aprendizado, um a intuição válida só pode ser atribuída a um acidente fortuito ou à m agia”, concluíram Kahnem an e Klein, “e não acreditam os em m agia.”22

Mas há um porém . Com o Kahnem an e Klein observaram , em geral é difícil saber quando há suficientes indícios válidos para fazer a intuição funcionar. E m esm o quando ela claram ente é capaz de fazê-lo, é aconselhável cautela. “Muitas vezes, não posso explicar determ inado lance, só sei que deve estar certo, e parece que m inha intuição produz m ais acertos do que erros”, observou o prodígio norueguês Magnus Carlsen, cam peão m undial de xadrez e m ais j ovem j ogador da história a ocupar o prim eiro lugar no ranking. “Se estudo um m ovim ento por um a hora, em geral com eço a andar em círculos, e provavelm ente nada útil vai m e ocorrer. O norm al é eu saber o que vou fazer depois de dez segundos; de resto, é a revisão cuidadosa.”23 Carlsen respeita sua intuição, no que faz bem , m as tam bém executa um bocado de “revisão cuidadosa”, pois sabe que às vezes a intuição pode tapeá-lo e que o pensam ento consciente pode aprim orar seu j uízo.

É um hábito excelente. A perspectiva ponta-do-seu-nariz pode operar m aravilhas, m as tam bém pode dar terrivelm ente errado, de m odo que se você tem tem po de pensar antes de tom ar um a decisão im portante, faça isso — e estej a preparado para aceitar que o que parece obviam ente verdadeiro no m om ento pode se revelar falso m ais tarde.

É difícil discordar de um conselho que parece quase tão controverso quanto as banalidades dos biscoitos da sorte. Mas ilusões ponta-do-seu-nariz são com frequência tão convincentes que ignoram os o conselho e seguim os nosso instinto. Considere um a previsão feita por Peggy Noonan — colunista do Wall Street Journal e ex-redatora de discursos de Ronald Reagan — um dia antes da eleição presidencial de 2012. Rom ney sairá vitorioso, escreveu Noonan. Sua conclusão estava baseada no grande núm ero de gente com parecendo aos com ícios de Rom ney. O candidato “parece feliz e agradecido”, observou ela. E alguém que com pareceu a um local de cam panha contara a Noonan sobre “a intensidade e alegria da m ultidão”. Acrescente-se isso, concluiu Noonan, e “as vibrações estão certas”. É fácil fazer pouco das vibrações de Noonan. Mas quem entre nós nunca sentiu a certeza equivocada de que um a eleição, ou algum outro evento, cam inharia num a ou noutra direção só porque parecia que seria assim ? Talvez você não tenha dito algo com o “as vibrações estão certas”, m as o pensam ento é o m esm o.24

Esse é o poder da perspectiva ponta-do-seu-nariz. É tão persuasiva que por m ilhares de anos os m édicos não duvidaram de suas convicções, causando sofrim ento desnecessário num a escala m onum ental. O progresso com eçou apenas quando eles adm itiram que a visão que tinham da ponta de seus narizes não era suficiente para determ inar o que funcionava.

Com m uita frequência, a previsão no século XXI parece bastante com a m edicina do século XIX. Há teorias, asserções e discussões. Há figuras fam osas, tão confiantes quanto bem rem uneradas. Mas pouca experim entação, ou qualquer coisa que possa ser cham ada de ciência, então sabem os m uito m enos do que as pessoas im aginam . E pagam os o preço. Em bora previsões ruins raram ente levem a consequências tão obviam ente danosas quanto a m edicina ruim , elas nos conduzem sutilm ente na direção de decisões ruins e tudo que deriva disso — incluindo prej uízos financeiros, oportunidades perdidas, sofrim ento desnecessário e até guerra e m orte.

Felizm ente, os m édicos hoj e conhecem a cura para tudo isso. É um a boa colherada de dúvida.

* No original, bait and switch: tática de vendas fraudulenta que consiste em fisgar (bait) o com prador com a prom essa de determ inado item e pressioná-lo depois a trocar (switch) por outro, em geral m ais caro e/ou de qualidade inferior. (N. T.)

Q

De olho nos números

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UANDO OS MÉDICOS FINALMENTE aprenderam a duvidar de si m esm os, voltaram -se para estudos randôm icos controlados a fim de testar cientificam ente quais tratam entos funcionavam . Levar o rigor da m edição à prática da previsão pode parecer m ais fácil de fazer: j untar previsões, avaliar seu acerto, som ar os núm eros. E pronto. Em dois tem pos, saberem os até que ponto Tom Friedm an é bom de verdade. Mas nem de longe é tão sim ples assim . Considere um a previsão que Steve Ballm er fez em 2007, quando era CEO da Microsoft: “Não existe a m enor chance de que o iPhone obtenha um a fatia significativa do m ercado. Nenhum a chance”.

O prognóstico de Ballm er é fam osam ente infam e. Dê um a busca no Google — ou no Bing, com o ele teria preferido — e digite “Ballm er” + “piores previsões tecnológicas” e você o verá ocupando o panteão da vergonha j unto com outros clássicos, com o o presidente da Digital Equipm ent Corporation declarando em 1977 que “não há m otivo para alguém um dia querer um com putador em sua casa”. E isso parece apropriado porque a previsão de Ballm er soa espetacularm ente furada. Com o o autor das “Dez piores previsões tecnológicas de todos os tem pos” notou em 2013, “o iPhone dom ina 42% do m ercado de sm artphones nos Estados Unidos e 13,1% no m undo todo”.1 Isso é bastante “significativo”. Com o escreveu outro j ornalista, quando Ballm er anunciou sua saída da Microsoft, em 2013, “Só o iPhone hoj e gera m ais receita que toda a Microsoft”.2

Mas analisem os a previsão de Ballm er com cuidado. A expressão-chave é “fatia significativa do m ercado”. O que pode ser qualificado com o “significativo”? Ballm er não disse. E de que m ercado ele estava falando?

Am érica do Norte? O m undo? E m ercado do quê? Sm artphones ou celulares em geral? Todas essas perguntas não respondidas contribuem para um grande problem a. O prim eiro passo para descobrir o que funciona e o que não funciona na prática de fazer previsões é j ulgar as previsões, e, para isso, não podem os fazer suposições sobre o que a previsão significa. Tem os de saber. Não pode haver a m enor am biguidade quanto a se um a previsão é precisa ou não, e a de Ballm er é am bígua. Sem dúvida, parece errada. Mas estará errada inteiram ente além da dúvida razoável?

Não culpo o leitor por achar que isso está soando m uito com o a conversa m ole de um rem atado rábula, lem brando um pouco outra declaração fam osam ente infam e, essa de Bill Clinton: “Depende de qual é o significado da palavra ‘é’”.3 Afinal, o que Ballm er quis dizer parece evidente, m esm o que um a interpretação literal de suas palavras não dê suporte a isso. Mas considere sua declaração com pleta, dentro do contexto, num a entrevista de abril de 2007 para o USA Today: “Não existe a m enor chance de que o iPhone obtenha um a fatia significativa do m ercado. Nenhum a chance. É um item subsidiado de quinhentos dólares. Eles podem ganhar m uito dinheiro. Mas se você efetivam ente olhar para o 1,3 bilhão de aparelhos vendidos, eu preferia ter nosso software em 60%, 70%, 80% deles do que ter 2% ou 3%, que é o que a Apple deve conseguir”. Isso esclarece algum as coisas. Para com eçar, Ballm er estava claram ente se referindo ao m ercado global de celulares, então está errado m edir sua previsão em função da fatia de m ercado do sm artphone nos Estados Unidos ou no m undo. Usando dados do Gartner Group, um a em presa de consultoria de TI, calculei que a fatia do iPhone nas vendas m undiais de celulares no terceiro trim estre de 2013 foi de aproxim adam ente 6%.4 Isso é m ais do que os “2% ou 3%” previstos por Ballm er, m as, ao contrário da versão truncada com tanta frequência citada, não é algo tão furado que j ustifique alguém rir às gargalhadas. Observe tam bém que Ballm er não disse que o iPhone seria um fracasso para a Apple. Na verdade, ele disse: “Eles podem ganhar m uito dinheiro”. Mas, m esm o assim , paira certa am biguidade: quanta coisa além dos 2% ou 3% do m ercado global de celulares o iPhone teria de m order para obter o que se pode considerar com o “significativo”? Ballm er não disse. E de quanto ele estava falando quando disse que a Apple podia ganhar “m uito dinheiro”? Mais um a vez, não disse.

Assim , até que ponto a previsão de Steve Ballm er estava errada? Seu tom foi insolente e depreciativo. Na entrevista do USA Today, ele parece escarnecer da Apple. Mas suas palavras foram m ais nuançadas do que seu tom e am bíguas dem ais para que declarem os com certeza que sua previsão estava errada — m uito m enos tão espetacularm ente errada que m ereça ocupar um lugar no panteão da vergonha das previsões.

Está longe de ser incom um que um a previsão que no início parece tão clara quanto um a j anela recém -lavada se revele opaca dem ais para ser

conclusivam ente avaliada com o certa ou errada. Considere a carta aberta enviada a Ben Bernanke, na época diretor do Federal Reserve, em novem bro de 2010. Assinada por um a longa lista de econom istas e com entaristas econôm icos, incluindo Niall Ferguson, historiador de econom ia de Harvard, e Am ity Shlaes, do Council of Foreign Relations [Conselho de Relações Exteriores], a carta exorta o Federal Reserve a cessar sua política de com pra de ativos em larga escala, conhecida com o “flexibilização quantitativa”, porque “cria risco de aviltam ento da m oeda e inflação”. O conselho foi ignorado e a flexibilização quantitativa continuou. Mas nos anos que se seguiram , o dólar não foi aviltado e a inflação não subiu. O investidor e com entarista Barry Ritholtz escreveu em 2013 que os signatários da carta se m ostraram “terrivelm ente equivocados”.5 Muitos outros concordaram . Mas havia um a resposta óbvia: “Esperem . Ainda não aconteceu. Mas vai”. Ritholtz e os críticos talvez argum entem que, no contexto do debate de 2010, os autores da carta esperavam aviltam ento da m oeda e inflação nos dois ou três anos seguintes caso a flexibilização quantitativa seguisse em frente. Talvez — m as não foi isso que escreveram . A carta não diz coisa algum a sobre o prazo. Não faria diferença se Ritholtz esperasse até 2014, 2015 ou 2016. Independentem ente de quanto tem po passasse, alguém sem pre poderia dizer: “Esperem só. Está quase”.6

Tam bém não fica claro quanto o dólar teria de cair, e a inflação subir, para se considerar um “aviltam ento da m oeda e inflação”. Pior ainda, a carta diz que dólar em queda e inflação em alta são um “risco”. Essa insinuação não é um a consequência lógica. Assim , se interpretarm os a previsão literalm ente, ela está dizendo que o aviltam ento e a inflação podem sobrevir ou não, o que significa que, caso não sobrevenham , a previsão não está necessariam ente errada. Sem dúvida não foi isso que os autores pretenderam com unicar e não foi com o as pessoas interpretaram o docum ento na época. Mas é o que está dito lá.

Assim , eis aqui duas previsões do tipo que norm alm ente encontram os. Elas são as tentativas sérias, de pessoas inteligentes, de lidar com questões graves. O significado delas parece claro. Quando o tem po passa, sua precisão parece óbvia. Mas não é. Por vários m otivos, é im possível dizer se essas previsões estão certas ou erradas além de toda discussão. A verdade é: a verdade é elusiva.

Julgar previsões é m uito m ais difícil do que em geral se presum e, um a lição que aprendi do j eito m ais duro — com a extensa e exasperante experiência.

No documento Superprevisoes - Dan Gardner.pdf (páginas 37-43)