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PRIMEIROS SISTEMAS DE CADASTRO MULTIFUNCIONAL

A necessidade de ter e manter actualizado um cadastro de todas as propriedades de um território varia bastante conforme a época e as cultura a que nos reportamos. No entanto esta necessidade é quase universal e há algumas razões que são constantes: o conhecimento do titular da propriedade, a aplicação de impostos e a descrição física dos atributos do terreno (Moyer e Niemann, 1998) são as mais importantes. A necessidade de delimitar e conhecer a propriedade da terra remonta, pelo menos, aos egípcios, que sentiam uma particular necessidade de refazer os limites de propriedade todos os anos após cada inundação do Nilo. Melhor exemplo do que este será difícil de encontrar, mas outros diferentes poderão ser encontrados, directamente ligados à delimitação do território e à defesa dos meios de subsistência de cada indivíduo ou família. Servem estas linhas apenas para sublinhar que a necessidade de manter um cadastro é tão antiga quanto o conceito de propriedade da terra e que, no fundo, só mudaram entretanto as velocidades e dinâmicas com que a propriedade é transaccionada, repartida e alterada. A uma maior pressão sobre o terreno corresponde uma maior necessidade de saber, em qualquer momento exacto do tempo, quem exerce o poder sobre essa parcela de território.

Mesmo assim, conseguimos distinguir diferenças no modo como a sociedade e a legislação aborda a propriedade e os direitos sobre a propriedade. Mesmo nas sociedades ditas capitalistas ou liberais, o sentido de propriedade sobre a terra e o modo como essa condicionante é tida durante o processo de planeamento é diferente. Nos Estados Unidos, alguns autores citados por Moyer e Niemann (1998) introduziram os conceitos relativos à importância do cadastro como factor adicional de planeamento só em 1981, reforçados por Chowdhury em 1994, ano em que as promessas eleitorais referiram a necessidade de indemnizar os proprietários pelas desvalorizações produzidas pelo governo federal nas suas propriedades. Ora na Europa, ou em Portugal, tal situação é cultural e socialmente impensável, havendo desde há muito tempo legislação no sentido de defender os proprietários das investidas do poder público. Recentemente a lei incorporou novos ajustamentos que tornam ainda mais forte a capacidade de defesa e justa compensação por parte do dono da terra.

O conhecimento sobre as características do terreno e a sua propriedade é tanto mais importante quanto as pressões e dinâmicas associadas, bem como a tradição social da defesa dos interesses privados do seu dono.

Nos estados americanos os primeiros passos nas tecnologias de informação cadastral foram dados nos anos 70, tendo finalmente emergido nos anos 90 (Moyer e Niemann, 1998) de forma consolidada. Para o seu desenvolvimento são citados como mais determinantes os contributos do trabalho de várias entidades: a Harvard University (GSD) já amplamente referido neste texto, o U.S. Department of Agriculture (USDA), a American Bar Association e a Universidade de Wisconsin- Madison.

Os desenvolvimentos do Harvard Lab foram já referidos, nas suas componentes de programação que deram pelo nome de SYMAP, GRID, IMGRID e ODYSSEY. Sem este último, que finalmente permitiu de forma eficiente realizar operações de overlay topologicamente correctas, não seria possível ter desenvolvido de forma eficaz sistemas de cadastro da terra, pelo que o seu contributo para esta área, embora indirecto, foi enorme (Moyer e Niemann, 1998).

Os nomes dos estudantes e professores que frequentaram esse grupo de Harvard foram também referidos, muitos deles tendo fundado e incorporado as grandes empresas de SIG a nível global, como a ESRI, a ERDAS, a SYNERCOM e a INTERGRAPH. No caso particular das aplicações de cadastro, devemos ainda acrescentar algumas referências. Um dos percursores do IMGRID, Bruce Rowland, viria a trabalhar na Tenesse Valley Autorithy (TVA), onde ajudou a implementar um sistema de informação que geria tanto a propriedade dos terrenos como a sua gestão de recursos naturais. Um outro, Tim Murray, implementou sistemas de planeamento de corredores de transporte de energia numa grande empresa do ramo, também com aplicações ao nível da propriedade do solo. Outros como Bernard Niemann dedicaram a sua vida de investigação aos sistemas de informação de cadastro, neste caso específico o caso do estado de Wisconsin (Moyer e Niemann, 1998).

O outro organismo com relevo no desenvolvimento dos cadastros americanos foi o USDA, por razões óbvias. Tendo a seu cargo a gestão das políticas de gestão dos recursos agrícolas do país, necessitavam de bases de dados actualizadas das características e propriedade dos terrenos rurais. Naturalmente, à medida que a complexidade da economia se agravou, também aumentou a necessidade de dispor de dados utilizáveis, cada vez mais detalhados e permanentemente actualizados. No início dos anos 60, uma divisão do USDA, o Economic Research Service, iniciou um trabalho de coordenação dos problemas relativos ao uso do solo, em todos os níveis governamentais (Moyer e Niemann, 1998), tendo uma das primeiras tentativas conduzido ao projecto CULDATA (Comprehensive Unified Land Data System). Em 1964 foi contratado Robert Cook, da Universidade de Cincinnati, para desenvolver este projecto durante dois anos. Tratava-se de encontrar um modelo de dados sobre o terreno que pudesse servir um número alargado de potenciais utilizadores. Este modelo foi apresentado numa conferência em 1966, que reuniu investigadores de vários quadrantes diferentes, e com necessidades diferentes. Essa conferência serviu, pelo menos, para a tomada de consciência de que a existência de um cadastro poderia ser um recurso importante e servir uma comunidade bem maior do que a que até agora se interessava pelo tema (Moyer e Niemann, 1998).

Uma segunda conferência com o patrocínio do USDA, em 1968, focou-se particularmente em dois aspectos: o primeiro avaliando as questões legais relativas aos aspectos que seria necessário conhecer para uma mais fácil transmissão dos direitos sobre a terra; o segundo, explorando a relação entre a propriedade do terreno e as várias funções que dependem deste título, como os impostos sobre a terra, a localização de infra-estruturas, o planeamento do uso do solo e a aplicação de servidões e

regulamentos (Moyer e Niemann, 1998).

Esta última conferência produziu algumas recomendações que, após algumas discussões adicionais que envolveram também a American Bar Association (ABA), foram parcialmente tidas em conta. Concluiu-se que dos cinco pontos apresentados apenas um deles tinha a possibilidade de ser desenvolvido em tempo útil de forma eficaz (Moyer e Niemann, 1998), tendo-se aí concentrado os esforços das várias entidades envolvidas.

Tratava-se de encontrar um sistema comum, simples e eficaz de identificar cada pedaço de terreno de forma inequívoca. Uma outra conferência organizada pela ABA em 1972 viria a definir o essencial do sistema que depois seria conhecido por SPCS (State Plan Coordinate System), capaz de definir com coordenadas o centróide definidor de cada parcela.

Este sistema, que ainda se encontra em uso nalguns locais tinha várias virtudes, desde a simplicidade e precisão, a flexibilidade e economia, sendo referido por Moyer e Niemann (1998) como “providenciando a longo prazo economias substanciais sem aumentar a dificuldade técnica de implementação e uso”.

No final dos anos 70 as muitas entidades interessadas no desenvolvimento de sistemas de cadastro conseguiram motivar o National Research Council para a necessidade de melhorar estes sistemas de informação. O trabalho dos investigadores produziu resultados em 1980, em que foram publicados os requisitos do modelo de cadastro multifuncional, nomeadamente: um sistema de georeferenciação único, um conjunto de mapas actualizados e precisos de larga escala, um layer com a informação cadastral com todas as parcelas identificadas, um mecanismo de ligação entre identificadores únicos de parcela e as bases de dados e, finalmente, as bases de dados com as descrições das parcelas e um identificador que permitisse a ligação aos ficheiros gráficos (Moyer e Niemann, 1998). Tinha nascido o conceito dos modernos sistemas de cadastro. Três anos depois foi produzido um novo relatório (Procedures and Standards for a Multipurpose Cadastre) que constituiu a base de muito do trabalho que foi sendo desenvolvido posteriormente. Este modelo constituiu também uma mudança do modelo CAD simples para um ambiente SIG em que as operações de overlay e a constituição de relações topologicamente correctas são essenciais. Daí a evolução para sistemas com inclusão de funcionalidades SIG e o aparecimento da expressão GIS/LIS.

Foi entretanto a Universidade de Wisconsin-Madison que proporcionou a junção, no final dos anos 60, do melhor destes sistemas. A investigação nesta área pressupunha uma universidade com características e interesses específicos e esta qualificou-se para desenvolver o trabalho do ERS da USDA (Moyer e Niemann, 1998).

Os primeiros trabalhos de investigação centraram-se nos títulos de propriedade do terreno e tiveram a colaboração, já sentida noutras fases anteriores, do Census Bureau. Outros se seguiram, ultrapassando largamente o âmbito desta resenha. O SYMAP e o GRID foram usados nesta fase, e os nomes de Steinitz, Sinton e Murray são também aqui referidos por Moyer e Niemann (1998) como tendo contribuído para alguns destes projectos.

Um aspecto a reforçar respeita à vertente económica destes projectos. Por um lado concluiu- se que a soma gasta em manutenção tradicional dos registos cadastrais era enorme, o que justifica quase por si o custo de um projecto alargado de GIS/LIS. Por outro, e ao contrário do que se pensava, os gastos eram sobretudo efectuados ao nível dos governos locais e não ao nível federal, pelo que o custo global do investimento em nova tecnologia seria também repartido (Moyer e Niemann, 1998).

O que faltava era efectivamente um modelo de dados que permitisse a recolha, tratamento e uso da informação cadastral por todas as entidades envolvidas, de modo a que o seu custo pudesse também ser suportado por todos.

Este é o conceito que foi subjacente ao “Multipurpose Land Information System” (MPLIS) e que incluía também a faceta de cada agência governamental envolvida ter a capacidade legal para obter e tratar a sua parte da informação. Foi possível assim estrutural sistemas do tipo MPLIS em que cada organismo com tutela sobre um tema específico de uso do solo ou recurso natural produz a seu nível de informação, com os recursos financeiros e legais que lha cabem, mas de forma estruturada e integrada num sistema de âmbito superior que partilha uma base e um conjunto de regras standard comuns (Moyer e Niemann, 1998). O conceito é simples mas difícil de atingir, como veremos nos capítulos seguintes.

Entretanto, a evolução do software permitiu que deixasse de fazer sentido a separação entre LIS e GIS, uma vez que as funções presentes ao tratamento de bases de dados cadastrais são correntes nos actuais software comerciais.