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De início, incumbe esclarecer que o princípio do poluidor-pagador não pode ser confundido com o princípio da reparação. Com efeito, não se pode atribuir ao princípio do poluidor-pagador a função de disciplinar as consequências jurídicas apenas do momento posterior à produção do dano ambiental. Na realidade, ele é aplicável a todos os seus

momentos, tanto antes, como depois de sua ocorrência.

Bastante elucidativa, nesse ponto, a lição de Alexandra Aragão. Confira-se:

“Se, ao arrolar os princípios da política do ambiente, se pretendeu obedecer a uma qualquer lógica de precedência temporal, então a inserção sistemática do PPP – o último princípio da lista – poderia avançar a ideia da natureza eminentemente curativa e não preventiva deste princípio, da sua especial vocação para intervir a posteriori e não a

priori. Pensamos que esta ideia está fundamentalmente errada.

Apesar de a formulação do princípio recordar efectivamente o princípio jurídico segundo o qual quem causa um dano é responsável e deve suportar as medidas adequadas à reparação do dano causado, pensamos, com o apoio de uma grande parte da doutrina (entre outros, Jean-Philippe Barde, Emilio Gerelli, Alonso Garcia, Eckard Rehbinder, e Ludwig Kramer; ao nível nacional, Gomes Canotilho e Sousa Franco), que o PPP não se reconduz, de todo, a um simples princípio de responsabilidade civil.

(...)

A prossecução dos fins de melhoria do ambiente e da qualidade de vida, com justiça social e ao menor custo econômico, será indubitavelmente mais eficaz se cada um dos princípios se ‘especializar’ na realização dos fins para os quais está natural e originalmente mais vocacionado:

• a reparação dos danos causados às vítimas, o princípio da responsabilidade;

• a precaução, prevenção e redistribuição dos custos da poluição, o princípio do poluidor-pagador.”96

Já se esclareceu, no item “II.3.”, que o bem ambiental possui titularidade difusa, caracterizado pela Constituição Federal, no caput do artigo 225, como sendo de uso comum do povo, o que significa que pertence a todos indistintamente, mas a ninguém em particular.

Sendo essa a lógica que rege a titularidade do bem ambiental, é certo que aquele que pretende utilizá-lo para exercer determinada atividade econômica, além de obter os devidos atos autorizativos perante o Poder Público, o seu guardião, deve internalizar os custos dessa utilização. Se a sociedade moderna é marcada pela privatização dos lucros oriundos da massificação da produção e do consumo, obtidos mediante a utilização de componentes do

96 In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; e LEITE, José Rubens Morato (orgs.). “Direito Constitucional

bem ambiental, mostra-se acertada a orientação decorrente do princípio do poluidor-pagador pela internalização das externalidades negativas ambientais àquele que aufere benefícios econômicos com o desenvolvimento da atividade.97

Nessa linha, o princípio 16 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento dispõe que “as autoridades nacionais devem procurar promover a internacionalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, tendo em vista a abordagem segundo a qual o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo da poluição, com a devida atenção ao interesse público e sem provocar distorções no comércio e nos investimentos internacionais.”

Nada mais lógico, uma vez que constitui enriquecimento ilegítimo98, nos termos dos artigos 884 e 885 do Código Civil, a apropriação de bem jurídico que tenha como titular pessoa diversa – no caso, a coletividade. Nos dizeres de Marcelo Abelha Rodrigues, “não sendo feito dessa forma, internalizando os custos, certamente que o produtor de um bem (instalação de uma siderúrgica, por exemplo) terá um produto colocado no mercado que não será por todos adquirido, mas cujo custo social será suportado, inclusive, por quem não adquiriu o referido produto. Sob outra ótica, poderia se dizer que há um enriquecimento do produtor às custas de um efeito negativo suportado pela sociedade, já que não teria colocado no custo do seu produto, esse desgaste suportado pela sociedade. É daí que surge a expressão privatização de lucros e socialização das perdas para designar este fenômeno.”99

Essa é, portanto, a lógica que rege o princípio do poluidor-pagador: a utilização do bem ambiental pelo setor produtivo somente pode ocorrer quando internalizadas as externalidades negativas incidentes sobre o bem ambiental, de que é titular a coletividade, impondo-se a adoção de medidas preventivas e eventualmente reparatórias – em caso de ineficácia das ações voltadas a evitar a ocorrência do prejuízo –, a serem suportadas por aquele que realiza a atividade.

97 Nesse sentido, entre outros: DERANI, Cristiane. “Direito Ambiental Econômico.” 3.ª ed. São Paulo: Saraiva,

2008, p. 47.

98 Cf. MACHADO, Paulo Affonso Leme. “Direito Ambiental Brasileiro.” Ob. cit., p. 93.

99 “O Direito Ambiental no século 21.” In: Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais,

Por certo, a aplicação do princípio em comento tem relevância fundamental para o alcance da proteção do meio ambiente, tendo em vista que, com a internalização das externalidades negativas e dos custos ambientais, seja de prevenção, seja de reparação, ou ainda decorrente da própria utilização dos recursos naturais, os agentes econômicos passam a adotar cautela redobrada com relação aos impactos ambientais decorrentes do processo produtivo, de modo que a variável ambiental passa a integrar, de forma definitiva, o âmbito de decisão dos agentes econômicos. A questão ambiental, portanto, ganha notoriedade nos processos decisórios do setor produtivo, pois passa a ter significado econômico em cada uma das etapas de produção de bens de consumo.100 Se a racionalidade que orienta o setor produtivo tem cunho eminentemente econômico, é por meio da internalização das externalidades negativas ambientais, antes ilegitimamente transferidas à coletividade, que se alcança a efetividade da tutela do meio ambiente.101

Nesse ponto, impende abrir um parêntese para anotar que o princípio do poluidor- pagador não se confunde com o princípio do usuário-pagador, segundo o qual aquele que utiliza os componentes do bem ambiental deve arcar com os custos dessa utilização, objetivando “evitar que o ‘custo zero’ dos serviços e recursos naturais acabe por conduzir o sistema de mercado à hiperexploração do meio ambiente.”102 Tal orientação encontra respaldo normativo imediato no artigo 4.º da Lei n.º 6.938/1981, segundo o qual a Política Nacional de Meio Ambiente visará à imposição “ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos, e mediato na própria Constituição Federal, quando estabelece, no caput do artigo 225, que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é “bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defende-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

100 Sobre o tema, Annelise Monteiro Steigleder pontifica que, com a aplicação do princípio em questão, “o

poluidor passa a ser o primeiro pagador, de modo que é obrigado a integrar plenamente no seu processo de decisão o sinal econômico que constitui o conjunto dos custos ambientais. Segundo Maria Alexandra Sousa Aragão, ‘internalizar as externalidades ambientais negativas significa fazer com que os prejuízos, que para a coletividade advêm da atividade desenvolvida pelos poluidores, sejam suportados por estes como verdadeiros custos de produção, de tal modo que as decisões dos agentes econômicos acerca do nível de produção o situem num ponto mais próximo do ponto socialmente ótimo, que é inferior’.” In: “Áreas contaminadas e a obrigação do poluidor de custear - um diagnóstico para dimensionar o dano ambiental.” In: Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, n.º 25, p. 73.

101 Nesse sentido, vale observar a lição de José Rubens Morato Leite, para quem “o princípio do poluidor-

pagador visa, sinteticamente, à internalização dos custos externos de deterioração ambiental. Tal situação resultaria em uma maior prevenção e precaução, em virtude do consequente maior cuidado com situações de potencial poluição. É evidente que a existência de recursos naturais gratuitos, a custo zero, leva inexoravelmente à degradação ambiental.” In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; e LEITE, José Rubens Morato (orgs.). “Direito Constitucional Ambiental Brasileiro.” Ob. cit., p. 181.

A ligação entre os princípios do poluidor-pagador e do usuário-pagador é notória103 e seus pontos de semelhança e distinção têm sido analisados pela doutrina, aqui representada por Marcelo Abelha Rodrigues, in verbis:

“Bem se vê que a genérica expressão poluidor/usuário-pagador pode ser didaticamente repartida em poluidor-pagador e usuário-pagador em sentido estrito. A primeira diz respeito à proteção da qualidade do bem ambiental, mediante a verificação prévia da possibilidade ou não de internalização de custos ambientais no preço do produto, até a um patamar que não se justifique economicamente a sua produção, ou que estimule a promoção ou adoção de tecnologias limpas que não degradem a qualidade ambiental. Já a segunda expressão – princípio do usuário-pagador – diferentemente do poluidor-pagador, que é voltado à tutela da qualidade do meio ambiente (bastante aplicado em regiões com abundância de recursos), visa proteger a quantidade dos bens ambientais, estabelecendo uma consciência ambiental de uso racional dos mesmos, permitindo uma socialização justa e igualitária de seu uso. Grosso modo, pois, e em sentido estrito, o poluidor-pagador protege a qualidade do ambiente e seus componentes, enquanto que o usuário-pagador protege precipuamente o aspecto quantitativo dos bens ambientais.”104

Por fim, fechando o parêntese, vale anotar, para fins de registro elucidativo, conforme posição unânime da doutrina, que o princípio do poluidor-pagador não pode ser interpretado como a tolerância do Direito à causação de poluição mediante o pagamento de determinado preço. Na lição de Édis Milaré, “trata-se do princípio poluidor-pagador (poluiu, paga os danos), e não pagador-poluidor (pagou, então pode poluir). Esta colocação gramatical não deixa margem a equívocos ou ambiguidades na interpretação do princípio.”105

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