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Cultura não é um termo simples de conceituar dada a sua amplitude e variedade de significados, especialmente porque a palavra está ligada à própria noção de história ou de evolução do ser humano em sociedade. A primeira ideia de cultura parte da habilidade do ser humano cultivar a terra, transformando-a para extrair dela produtos para sua sobrevivência.

A partir dessa concepção, então, cultura também é um estado geral de desenvolvimento intelectual e moral de uma sociedade como um todo, é processo de transformação dos bens encontrados na natureza, ou, ainda, nas palavras de Luiz Celso de Piratininga é

―conjunto global de produtos humanos e de hábitos humanos de vida e convivência que define um certo agrupamento de indivíduos articulados o suficiente para compor uma estrutura social características próprias.‖ 101

Nesse sentido, a cultura é inseparável da comunicação que transfere historicamente os produtos humanos e os seus hábitos entre as gerações.

A cultura é então um sistema de bens culturais. O bem cultural se identifica num suporte e em seu significado. O suporte ordinariamente é qualquer material físico que ganha significado, mas também há o suporte psíquico e o ideal.

Citamos a respeito Miguel Reale:

―Merece, por conseguinte, reservas o entendimento de Ernst Cassirer quando sustenta que os objetos culturais, tanto como quaisquer outros objetos, ocupam também seu lugar no espaço e no tempo, situam-se aqui e agora, nascem e perecem, com a manifestação de um sentido que não pode ser separado do elemento físico, ao qual aderem e nos quais estão encarnados.

O reconhecimento da existência de bens culturais dotados de suporte ideal- além dos de suportes de ordem física ou psíquica - parece-me essencial à compreensão daquelas formas de vida que só se realizam e se aperfeiçoam quando atingem o plano da normatividade, como é o caso da experiência ética, em geral, e da jurídica, em particular, sendo ambas impensáveis sem regras, isto é, sem enlaces lógicos servindo de suporte a valores ou sentidos de comportamento social reputados necessários à comunidade.

Uma norma moral ou jurídica, como objetos culturais que são, surgem, não há dúvida, com a sua vigência, em um determinado momento e em certo lugar,

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mas não há que confundir a sua "expressão gráfica" com o que é pertinente à sua estrutura, ao suporte lógico-ideal portador de um significado.

Parece-me rica de conseqüências, no plano da teoria da cultura, essa afirmação de que também um objeto ideal - como é o caso de todo juízo lógico - pode, de per si, ser suporte de valores, o que evita a "reificação" do mundo da cultura e nos leva a discordar da tese de Cassirer quanto à existência tão- somente de valores vinculados a elementos naturais. De outro lado, somente assim se preserva a autonomia dos estudos axiológicos, além de correlacioná- los com o plano do normativo.‖ 102

A publicidade pode então ser considerada um bem cultural. O seu suporte físico pode estar em suas diversas formas de materialização, como no panfleto, no cartaz, no outdoor etc., produzindo um significado autônomo e abstrato. Podemos identificar no suporte da publicidade todas as mídias, ou meios de comunicação que, ao seu modo e peculiaridade, criam emoções, influenciam comportamentos, inovam relações entre os seres humanos entre si e com os objetos ao seu redor. Ela (publicidade) é um fenômeno marcante na cultura das mídias, caracterizada pelo fator provisoriedade da informação e mobilidade desta entre as várias mídias.103

Observada como bem cultural, a publicidade não pode ser analisada apenas sob o enfoque mercantilista ou econômico, apenas a serviço da economia de mercado, com o fim de levar o consumidor à aquisição de um produto ou serviço.104 Se postulada como arte, ou seja, bem cultural por excelência, deve se submeter à análise diversa. O seu viés de análise é, portanto, o da liberdade de expressão. E esta tem limites em outros valores reconhecidos socialmente como, por exemplo, a dignidade da pessoa humana, o respeito às crenças religiosas ou a privacidade.

Daí se falar em publicidade abusiva, aquela cujo significado extraído do suporte (mídia) é repudiado socialmente porque extrapola os limites da liberdade de expressão, ou manifestação artística. A preocupação do legislador no Código de Defesa do Consumidor ao proibir a publicidade abusiva é, em última análise, a preocupação com a publicidade no aspecto cultural, isto é, publicidade como bem cultural artístico que, sob o manto da liberdade de expressão, não venha a atentar contra os direitos da personalidade (v.g o direito autoral), valores religiosos, morais ou sociais.

102 Paradigmas da cultura contemporânea, p. 18. 103 Lúcia Santaella, Cultura das mídias, p. 27 ss.

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Noutros termos, a publicidade como bem cultural deve ser examinada sob a ótica da liberdade de expressão. De tal modo, se houver abuso da liberdade de expressão ou manifestação artística, com violação de outros bens ou valores sociais, a publicidade deverá ser retirada da mídia.

A publicidade comparativa, observada a partir do enfoque da publicidade como bem cultural, merece reprimenda, sendo impossível deixar de imputá-la como atentatória, por exemplo, aos direitos autorais, o que, por si só, basta para identificá-la como abusiva, ou desprovida de valor aceito pelo padrão social.

O direito autoral de uma peça publicitária, considerado este com um direito da personalidade do seu criador, dificilmente é respeitado numa publicidade comparativa. Tal veiculação atenta contra a publicidade originária já que, a rigor, apropria-se da criação de outrem. Vale dizer, apropria-se da arte de outrem que, num suporte trabalhado a seu modo peculiar, ganhou significado artístico próprio, mas que é tomado em parte pelo terceiro que compara para distorcer a peça publicitária alheia. Não se trata, evidentemente, de apropriação de mera ideia, pois, esta não é suscetível de proteção autoral.

Tomemos, por outro lado, a noção de publicidade subliminar. Essa espécie de publicidade é objeto de muitas controvérsias acerca de sua existência, havendo quem a considere um mito, uma lenda urbana e até um tipo de contrapropaganda da publicidade comercial. A discussão é grande e, no mínimo, o que se exige é o investimento em mais pesquisas sobre o tema. Mas, certo é, todavia, que há o reconhecimento de sua existência não apenas no meio artístico, publicitário e cinematográfico, como também no meio judicial. Em ação civil pública promovida pelo Ministério Público de São Paulo, os promotores de justiça Deborah Pierri, Motauri Ciochett e Vidal Serrano obtiveram, na 12ª Vara Cível da Capital, liminar para suspender mensagens subliminares de um clipe de uma rede de televisão. A inicial funda-se no fato de a vinheta institucional da MTV apresentar no plano consciente imagens regulares com o logotipo da MTV, mas quando as imagens do referido clipe são submetidas a velocidade mais lenta, percebe-se que as mesmas trazem cenas explícitas de prática sexual chamada de sadomasoquismo. A fita de VHS foi enviada ao

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Instituto de Criminalística e foi periciada, ficando comprovadas de fato as cenas de ―perversão sexual mantidas clandestinas". 105

Há publicidades retiradas de veiculação em razão de seu caráter subliminar de patrocínio à indução de condutas ilícitas, imorais, nocivas às crianças ou jovens, ou simplesmente atentatórias contra os bons costumes e a ordem pública. Evidentemente, são mensagens expostas sob a forma subliminar porque não são aceitas como regulares no meio social. Logo, são consideradas abusivas por uso desvirtuado do suporte, que dificulta a identificação da peça publicitária pelo receptor sem deixar de tentar influenciá-lo.

A liberdade de expressão artística nesta modalidade vai além do limite de criação permitido socialmente, subverte a mídia que deveria servir à informação do produto ou serviço para outros fins ilícitos, indefensáveis no plano moral, educacional e, por que não, concorrencial. É a publicidade subliminar, enfim, abusiva porque diz o que não pode ser dito de maneira obscura, indireta e sub-reptícia.

A publicidade comparativa, em que pese sua apresentação ostensiva em grande parte, não deixa de ser subliminar. Mostra-se comparativa no que lhe interessa e oculta naquilo que não lhe aproveita. O que nela mais se tenta passar é a ausência do produto comparado do concorrente em relação ao produto anunciado. Este se diz melhor porque tem exposta as suas qualidades de maneira direta, enquanto o comparado é pior porque seu traço é a ausência de qualidades. A publicidade comparativa, por ter traços da publicidade subliminar, representa um desvirtuamento da liberdade de expressão, configurando-se abusiva.

105 Revista Consultor Jurídico [05/11/2002] Juiz manda MTV retirar clipe do ar e indenizar

telespectadores.

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