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185 11 Publicidade comparativa e abuso de direito

A teoria do abuso de direito não é nova e sua origem remonta ao período clássico do direito romano. É tema discutido na doutrina e de aplicação pela jurisprudência em muitos países cuja legislação é omissa, como na Bélgica e na França, mas reconhecida em alguns diplomas legais estrangeiros, por exemplo, Áustria, Alemanha e Suíça.

A noção de abuso do direito não é pacífica na doutrina, a razão decorre da sua contrariedade terminológica abuso-direito, utilizada para retratar um fato que agride ao senso de justiça, já que intuitivamente se repudia a ideia de que o titular de um direito o faça valer a ponto de prejudicar outrem nos planos econômico, social ou moral.

Fábio Ulhoa Coelho, após sintetizar a crítica de Planiol, sumaria a evolução doutrinária com a sua peculiar capacidade didática e crítica:

―Mas se a noção de abuso de direito é irrefreavelmente ilógica, isso não tem impedido sua adequada operacionalização na superação de conflitos de interesses. Tanto assim que, a despeito das críticas que sofreu, desenvolveu-se a teoria do abuso de direito pelos países de tradição jurídica romanística. Passou a apresentar, em sua trajetória evolutiva, duas formulações distintas. De um lado, a concepção designada subjetiva, que reputa abusivo o exercício do direito com a intenção única de provocar danos a outras pessoas, sem proveito ao titular. Essa concepção está mais próxima da figura do ato emulativo do direito romano. De outro, a designada objetiva, que não se ocupa das intenções do sujeito e considera ilícito o exercício do direito sem a observância de sua finalidade econômica e social ou da moral. Na primeira corrente, os limites ao exercício do direito são fixados pela intenção do titular, que não pode ser senão a de satisfazer interesse legítimo; o abuso se caracteriza pela emulação, pela vontade de prejudicar. Na segunda, são dados pela finalidade econômica e social do direito exercido e pelos preceitos da moral; abusa do direito quem, ao exercê-lo, desvia sua finalidade ou desconsidera regras éticas de convivência em sociedade.‖ 228

A dificuldade na aceitação da teoria do abuso de direito, apontada por Marcel Planio e Georges Ripert,229 reside na contrariedade entre os termos abuso e direito, pois, não pode o exercício do direito representar um exercício abusivo. A teoria

228 Curso de Direito Civil, pp. 362-363. 229 Traité élementaire de droit civil, p. 297.

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repousa numa linguagem insuficiente e a repressão de certas práticas parte da noção da ilicitude delas, e não da ideia de que um direito venha se transformar em ato ilícito. Retrata um conflito entre a moral e o direito.

O Código Civil Brasileiro de 2002 a adotou expressamente no artigo 187, sem nominá-lo expressamente, ao dispor que,

―Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa- fé ou pelos bons costumes.‖

É redação muito semelhante a do artigo 334 do Código Civil Português: ―É ilegítimo, o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito.‖

A doutrina pátria, antes da atual redação do artigo 187 do Código Civil, acolhia a tese do abuso de direito, partindo da interpretação a contrario sensu da norma do artigo 160, inciso I, do Código Civil de 1916, que definia o exercício regular do direito como lícito. Logo, se o exercício regular de um direito é lícito, o seu exercício irregular configura ilícito.

A introdução da teoria no direito brasileiro deu-se a partir da responsabilização por atos ilícitos. Em razão dessa configuração de responsabilidade civil, em que os elementos psicológicos da ação ou omissão do agente causador do dano são determinantes, alguns doutrinadores preferiram considerar o ato abusivo do direito como figura ilícita atípica, isto é, na opinião de Pedro Baptista Martins, uma

―categoria autônoma, impondo uma revisão nos fundamentos da teoria da responsabilidade, que se estende e se amplia na razão direta da expansão da lei sociológica da solidariedade.‖ 230

Ocorre que, a concepção de abuso do direito retirada da antiga norma do artigo 160, inciso I, do Código Civil de 1916, manteve-se em redação repetida no novo Código Civil de 2002, no artigo 188, como apontado por Marcus Elidius Michelli de Almeida:

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―Conseqüentemente, o direito brasileiro passa a disciplinar a matéria do abuso do direito além da forma analógica ao contrário (contrario sensu) também de forma direta, determinando a caracterização de ato ilícito em razão da utilização de um direito de forma a exercer manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.‖ 231

A opção do legislador nos permite concluir que, apesar de se considerar o abuso do direito um ato ilícito por disposição expressa no artigo 187 do novo Código Civil, não se deve aceitar o seu caráter reparatório à análise da culpa ou dolo, próprio do ilícito tratado no artigo 186 do diploma civil, figura de responsabilidade civil subjetiva. Reconhecendo-se a dificuldade de fixar a responsabilidade pelo ato abusivo a partir da responsabilidade subjetiva, a teoria do abuso do direito passou de uma categoria autônoma, antes apreciada à luz do artigo 160, inciso I, do Código Civil de 1916, para a categoria de ilicitude objetiva em razão da interpretação dos artigos 187 e 188, inciso I, do novo Código Civil de 2002.

A leitura do artigo 187 do novo Código Civil mostra que o direito brasileiro adotou a concepção objetiva e finalística, dispensando-se a avaliação do elemento psicológico e a prova do dano para ficar caracterizado o abuso de direito. Apurada a ocorrência do fato que agride a boa-fé objetiva, os bons costumes e o exercício do direito de acordo com seus fins econômicos e sociais, a solução dada pelo ordenamento jurídico é a sua tipificação como abuso do direito, sujeitando o infrator objetivamente à indenização. Confirma-se essa interpretação na doutrina pátria,232 como já previa Caio Mário da Silva Pereira:

―Num estágio final, é de se prever que, estruturada a teoria do abuso de direito como instituto autônomo, marchar-se-á para o critério de apuração objetiva. Responderá por perdas e danos o titular do direito que o exercer além dos limites da normalidade ou regularidade, causando dano a outrem, independentemente de penetrar no psiquismo do sujeito, e indagar de seu propósito ou de sua consciência do dano causado. Bastaria, então, verificar se o titular do direito o exerceu excedendo os limites impostos pela destinação econômica ou social dele. Com esta conotação, Phllippe Le Tourneau sustenta que o abuso de direito não impõe uma falta intencional; bastaria ‗o exercício

231 Abuso do Direito e Concorrência Desleal, p.83.

232 José de Aguiar Dias, Da responsabilidade civil, p. 693; Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil – Parte

Geral, p. 499; Carlos Roberto Gonçalves, Responsabilidade Civil, pp.57-61; Cláudio Antônio Soares Levada, Anotações sobre o abuso de Direito, In: Revista de Direito Privado, v. 11 – julho-setembro, 2002. Coordenação Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, RT, pp. 68-78.

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anormal de um direito, em condições diferentes daquelas com que se conformam os indivíduos prudentes e diligentes‘ (ob. cit., nºo 1.031).‖ 233

O critério objetivo-finalístico restou consagrado na Primeira Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, sob a coordenação do Superior Tribunal de Justiça, em setembro de 2002, com a edição do enunciado nº 37, nos seguintes termos:

―A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e

fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico‖.

A abusividade no direito é um conceito jurídico indeterminado ou abstrato, visto ser impossível ao legislador prever todas as situações em que se pode dar o abuso do direito, como pondera Pedro Baptista Martins:

―O abuso do direito pode assumir formas tão variadas que seria ingenuidade do legislador pretender fixá-las discriminadamente na lei, cuja importância para regular inteiramente a matéria da vida jurídica já foi proclamada por Gurvitch. É, por isso, medida de alta prudência legislativa editar leis que se distingam pela sua fórmula abstrata, pelo seu cunho de generalização, a fim de que todas as relações sociais e todas as exigências econômicas possam acomodar-se, senão à sua letra, pelo menos ao seu espírito, em consonância com as finalidades que as teriam determinado. A natureza evolutiva dos fatores econômicos e sociais, que integram a ordem jurídica, reclama leis de conteúdo maleável, que possam estender-se e desdobrar-se indefinidamente para abranger todas as hipóteses que a vida lhes costuma deparar, porque ao juiz nunca será lícito eximir-se de julgar, sob pretexto de que a lei é omissa, obscura ou ambígua.‖234

A pluralidade de hipóteses de abuso do direito justifica, portanto, o critério objetivo-finalístico para reprimir toda conduta distante do fim social, apesar do pressuposto de o infrator ter iniciado sua prática a partir de um direito reconhecido. Nesse sentido, vamos adotar como ponto de partida a lição de Alvino Lima:

―O maior prejuízo social constitui, pois, o critério fixador do ato abusivo de um direito. Daí se poder concluir que a culpa não reside, no caso do abuso de direito, causando danos a terceiros, num erro de conduta imputável moralmente ao agente, mas ao exercício de um direito causador de um dano

233 Responsabilidade Civil, pp. 276-277. 234 O abuso do direito e o ato ilícito, p. 88

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socialmente mais apreciável. A responsabilidade surge, justamente, porque a proteção do exercício deste direito é menos útil socialmente do que a reparação do dano causado pelo titular deste mesmo direito.‖ 235

A publicidade comparativa, sob a ótica da teoria do abuso de direito, não encontra respaldo no ordenamento jurídico brasileiro. Ao se apreciar o conceito de publicidade comparativa, suas evidentes desvantagens para o consumidor e as violações às regras de concorrência, é possível se atestar sua ilicitude por uso abusivo do direito de publicidade.

Conceitualmente, a publicidade comparativa consiste em método, ou técnica, de confronto empregado por um anunciante, destinado a assemelhar ou enaltecer, direta ou indiretamente, as qualidades ou preço de seus produtos ou serviços, em relação a produtos ou serviços de um ou mais concorrentes.

É impossível a negação do direito de fazer publicidade, conferido pela natureza da atividade empresária e pela ordem constitucional que assegura a livre iniciativa e a livre concorrência. A publicidade comparativa, no entanto, se apresenta como um método ou técnica mais poderoso, mais astuto, uma arma da tecnologia publicitária que vai além de proteger as próprias criações industriais, posto que ingressa frontalmente na apreciação dos produtos e serviços da concorrência.

O procedimento propaga a ideia de que não basta anunciar os próprios produtos e serviços para conquistar a preferência da clientela. É preciso mais. Por isso, o anunciante, na peça comparativa, não formula o apelo simples de ―compre meu produto‖, por essas ou aquelas qualidades. Vai além para dizer ―não compre o produto do concorrente porque ele é de menor qualidade‖. Noutras palavras, há na noção de comparação, a ideia de que é preciso atingir a concorrência em seu direito de anunciar os seus produtos e serviços. Assim, a publicidade comparativa é técnica de obstrução aos anúncios dos concorrentes, sob o manto de ser útil à clientela ou ao consumidor. O comportamento do anunciante vai além de seu direito de fazer a publicidade de seus produtos ou serviços, extraindo-se daí ser manifestamente ofensivo ao senso de justiça, e representa a violação do fim econômico da publicidade tradicional.

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As desvantagens ao consumidor, indicadas em capítulo anterior, caracterizam o descumprimento da finalidade social da publicidade, sobretudo se observado o direito do consumidor de obter informações precisas e seguras em relação a muitos produtos ou serviços.

No plano da concorrência, ainda, há a agressão ao princípio da boa-fé objetiva, ou correção profissional reconhecida no artigo 10 bis da Convenção da União de Paris, que dá corpo à tese de que se trata de comportamento abusivo, com fundamento repressivo no artigo 187 do Código Civil.

Ao adotar a publicidade comparativa como estratégia de competição, o anunciante viola o direito e deverá se submeter à reparação do dano, tanto patrimonial como moral, para satisfação do concorrente comparado.

No caso de inexistir prejuízo, o anúncio deverá ser considerado abusivo ao ordenamento jurídico em si, o que possibilita a propositura de ações para a proibição da veiculação da publicidade comparativa, sob pena de sanções cominatórias. Numa interpretação mais alargada, aceita por nós, o fato de a publicidade comparativa representar em si mesma uma prática abusiva, poder-se-á considerá-la em contornos de uma violação abstrata à coletividade de consumidores, sujeitando inclusive o anunciante à reparação de danos morais coletivos.

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